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19/05/2011

Nascimento e morte de empresas: A banha de cobra do empreendedorismo

Anselmo Dias

O empreendedorismo está na ordem do dia. As suas potencialidades são, no dizer dos seus panegiristas, tantas e tamanhas, só comparáveis aos múltiplos benefícios que certos feirantes atribuem à utilização da banha da cobra.
O empreendedorismo é, para a generalidade dos comentadores, não apenas, um conceito moderno: ele é muito mais que isso; ele é pós-moderno; ele é supra-moderno; enfim, ele é muito in.
Mas como quase tudo na vida, também nestas coisas convém relembrar a história do rei que vai nu.
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O propalado empreendedorismo tem apenas servido para um efémero apelo ao auto-emprego, baseado na teoria de que o futuro passa pela existência de uma classe formatada a trabalhadores travestidos em proprietários, donos dos seus próprios meios de produção, de acordo com a teoria de que «small is beatifull», ou seja, o pequeno é bonito.
Os defensores desta via ignoram, ou fingem ignorar, que o empreendedorismo é tão volátil como a moda de Primavera-Verão, ou seja, morre em três tempos, a fazer lembrar a hecatombe que se abate sobre os salmões no período da respectiva desova.
De facto, basta ver a estatística sobre o nascimento e morte das empresas para comprovar que a sobrevivência das mesmas é extremamente remota.
Com efeito, de acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), relativos ao movimento demográfico das empresas, ficámos a saber que, em 2008, a taxa de sobrevivência das empresas, ao fim de dois anos, era de 54%, valor que, hoje, seguramente, será bem menor. Ao fim de dez anos essa taxa é meramente residual.
Dados mais recentes do INE dizem-nos o seguinte:

  • Constituição de pessoas colectivas por escritura pública: foram criadas 6922 empresas no decurso do 4.º trimestre de 2010, às quais correspondia um capital médio de 15 523 euros;
  • Dissolução de pessoas colectivas por escritura pública: foram dissolvidas 8392 empresas no decurso do 4.º trimestre de 2010, às quais correspondia um capital médio de 61 786 euros.
  • Daqui decorre que as «mortes» superaram os «nascimentos» e que os capitais das empresas extintas superavam os capitais das empresas recém-constituídas.
Esta realidade não surpreende se tivermos em conta a natureza e a dimensão das empresas aquando do seu nascimento, ou seja, maioritariamente pertencem ao sector de serviços, com reduzidos capitais próprios e com apenas 1,35 pessoas ao serviço no início da respectiva actividade.
Estamos, naturalmente, a falar de valores médios, valores que ocultam o nascimento e morte de empresas criadas para suportar actividades conjunturais, para negociar as facturas falsas, para sustentar o planeamento fiscal por via do cruzamento de operações tendentes a ludibriar as Finanças, sem esquecer aquelas a quem foi destinada a função de «companheiras de viagem» dos off-shores.
Face a esta matriz empresarial, parafraseando uma expressão popular alentejana, é caso para dizer: «estamos verdadeiramente amolados».

O tecido empresarial português

Em 2009 havia oficialmente em Portugal 1 085 222 empresas, o que significa que há uma empresa por cada 10 habitantes, valor que justificava a atribuição ao nosso País de uma honraria inscrita no Guinness Book of Records.
Igual honraria devia ser atribuída a Lisboa, onde há cerca de 1137 empresas por cada Km2.
A este propósito, repare-se no seguinte exemplo: admitindo que todas essas empresas estavam localizadas no piso térreo dos edifícios, isso significaria que, por cada quadrado de 30 metros de lado, havia uma empresa. É comovente a dimensão empreendedora dos investidores em Portugal! (Vide Anuário Estatístico da Região de Lisboa, Quadro III.3.1, página 147, INE, 2010).
Em termos nacionais, os sectores com mais empresas são os seguintes:
  • Comércio: 250 552 empresas, o que significa que há uma empresa por cada 42 habitantes;
  • Actividades de consultoria e similares: 115 693 empresas, o que significa que há uma empresa por cada 92 habitantes;
  • Construção: 107 536 empresas, o que significa que há uma empresa por cada 99 habitantes;
  • Alojamento e restauração: 81 341 empresas, o que significa que há uma empresa por cada 131 habitantes.
Estamos perante números de ficar com a boca aberta.
Estamos perante números verdadeiramente esmagadores que evidenciam uma estrutura empresarial irracional, fruto da ideia de que o livre funcionamento do mercado contém, em si, a lógica racional que deve direccionar o investimento e suprir as necessidades do País.
Perante esta «verdade única» os seus mentores matam à nascença qualquer hipótese de se questionar quanto custa ao País o desvio dos investimentos para sectores altamente densificados, quando tais investimentos deviam ser canalizados para sectores produtivos, designadamente na área industrial.
Com efeito, um país com 10 637 713 habitantes, servido por 250 552 empresas comerciais e 81 341 empresas ligadas ao alojamento e restauração, é o mesmo país que não produz o suficiente para corresponder ao nosso nível de consumo.
Estamos, pois, confrontados com uma estrutura empresarial sobredimensionada a qual, com as devidas excepções, no seu relacionamento com os trabalhadores, se associa à influência ideológica dos grandes interesses.
Estamos, também, confrontados com uma estrutura empresarial simultaneamente super e infradimensionada.
Superdimensionada na área dos serviços onde se aplicam salários de miséria.
Infradimensionada nas indústrias, designadamente em sectores com média e alta tecnologia.
Mas também infradimensionada no plano da gestão, da técnica, da ciência e da investigação.
Como é possível atingir tais conhecimentos e práticas numa estrutura empresarial em que 99,4% do número de empresas estão inseridas no conjunto das micro, pequenas e médias empresas?
Empresas que, excluindo o sector financeiro, representam 63,7% do pessoal ao serviço e a quem pertencem, apenas, 49,5% do volume de negócios.
Mas os dados mais expressivos, na óptica de uma perspectiva de classe, não são os atrás referidos.
Os dados mais expressivos dizem respeito aos salários dos trabalhadores por conta de outrem que laboram nessas empresas.
Tais salários, incluindo o trabalho extraordinário e subsídios vários, eram, de acordo com os últimos dados dos «Quadros de Pessoal», os seguintes:
  • 657,77 euros nas empresas com um a quatro trabalhadores;
  • 764,36 euros, nas empresas com cinco a nove trabalhadores;
  • 892,11 euros, nas empresas com dez a quarenta e nove trabalhadores.
Tais vencimentos eram inferiores, respectivamente, em cerca de 35%, 24% e 11%, comparativamente ao salário médio praticado no sector privado da economia.
Perante tal realidade é preciso muito cuidado na avaliação do papel das micro, pequenas e médias empresas, não obstante a importante função social que muitas delas representam.
É preciso ter em conta que vários dos seus dirigentes propugnam a redução salarial dos seus trabalhadores ao mesmo tempo que, subservientemente, silenciam o elevado custo dos factores de produção, nomeadamente os que se referem às taxas de juro e ao preço dos combustíveis, da electricidade e das comunicações, ou seja, não molestam os interesses dos grandes accionistas e estão sempre disponíveis para reclamar a alteração do código laboral e a destruição da contratação colectiva, conforme se viu recentemente no beija-mão à delegação do FMI, à qual uma representação patronal foi ao ponto de sugerir a revisão da Constituição por forma a legitimar o despedimento selvagem.
Mas, atenção: não decorre daquilo que atrás foi dito qualquer estigma às micro, às pequenas e médias empresas. Não podemos generalizar a todas os propósitos dos seus dirigentes patronais, cujos objectivos estão mais próximos do ideário da trilogia do dinheiro formada por Américo Amorim, Alexandre Soares dos Santos e Belmiro de Azevedo do que da arraia miúda do pequeno patronato.

O contributo das empresas no âmbito do pagamento de impostos

Já atrás referimos que, de acordo com o INE, havia em Portugal, 1 085 222 empresas das quais, apenas, 390 498 entregaram às Finanças, em 2009, declarações em sede de IRC.
E todas estas pagaram impostos?
Era o que faltava.
No conjunto daquele universo, 155 570 empresas foram abrangidas pela expressão técnica «Resultados líquidos do exercício – negativos», ou seja, cerca de 40% das empresas apresentaram prejuízos fiscais num valor atribuído pelas Finanças em cerca de 12 mil milhões de euros.
E o valor deste prejuízo empresarial foi um caso único, circunscrito apenas a 2009?
Também era o que faltava.
Os prejuízos declarados pelas empresas são situações endémicas, que se repetem ano após ano por forma a fugirem ao cumprimento das obrigações fiscais.
Com efeito, no contexto do mecanismo legal de reporte de prejuízos, os dados disponibilizados pelas finanças evidenciam que esta realidade constitui uma regra destinada às empresas anularem ou reduzirem o pagamento de IRC, tendo em conta que neste momento é possível o abate de prejuízos nos quatro anos seguintes.
Os maiores utilizadores desta técnica são, naturalmente, os donos do sistema financeiro, que não se eximem a pagar bem ao seu staff técnico no sentido de serpentarem as leis, muitas delas manhosamente mal formuladas, para permitirem, dentro da legalidade, a fuga ao pagamento de impostos por parte dos grandes accionistas.
A seguir à banca e aos seguros temos as indústrias transformadoras, o comércio, os transportes e armazenagem, a construção, as actividades imobiliárias, as actividades de consultoria e similares e o alojamento e restauração, sectores responsáveis, no seu conjunto, por cerca de 10 mil milhões de euros, ou seja, 82% do total dos chamados «resultados líquidos do exercício – negativos».
É aqui que as Finanças deviam incidir, prioritariamente, a sua acção no sentido de separar o trigo do joio, começando naturalmente pela banca, designadamente pelo BES, BCP, Santander Totta e BPI, os quais, tendo em 2010 um lucro similar ao de 2009, pagaram, no entanto, metade, ou seja, passaram de um pagamento de IRC de 306,5 milhões de euros, para 138,6 milhões de euros.
Há, pois, a obrigação de as Finanças controlarem, num primeiro plano, o chamado «peixe graúdo» sem que, de tal esforço, decorra o abandono dos restantes sectores, independentemente da sua dimensão, no pressuposto de que «tudo o que vem à rede é peixe».
Com efeito, em termos de número de empresas, em cujas declarações reportaram prejuízos os principais sectores são os seguintes:
  • Comércio, com 38 508 empresas;
  • Construção, com 17 625 empresas;
  • Alojamento e restauração, com 15 174 empresas;
  • Industrias transformadoras, com 14 497 empresas;
  • Actividades imobiliárias: com 13 254 empresas;
  • Actividades de consultoria e similares, com 11 873 empresas.
O pagamento de impostos não deve recair unicamente sobre o IRS, designadamente sobre os trabalhadores e reformados, nem sobre as pessoas singulares com baixos rendimentos, cujo imposto liquidado, em 2009, foi de 8148 milhões de euros, contra os 3492 milhões relativos ao rendimento das pessoas colectivas (IRC).
As empresas não devem eximir-se a essa obrigação, tendo em atenção que os seus impostos, em sede de IRC, são inferiores aos impostos pagos no âmbito do Modelo 3-1 por parte dos pensionistas e dos trabalhadores por conta de outrem.
Uma outra política fiscal está, obviamente, na ordem do dia, na qual se insere a abolição desse escândalo social que contempla a isenção total do pagamento de IRC a milhares de empresas registadas na zona franca da Madeira.
Numa altura em que o patronato reclama a diminuição de impostos sobre o capital, bem como a redução da contribuição para a Segurança Social, tudo deve ser feito no sentido de aqueles que mais têm sejam obrigados a pagar em função, quer dos elevados lucros, quer dos elevados rendimentos.
O combate às desigualdades passa, também, por uma maior justiça fiscal.
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Fonte:
- Empresas em Portugal 2005, INE, 2007;
- Empresas em Portugal 2009, INE, 2011;
- IRC, DGCI, Novembro de 2010;
- IRS, DGCI, Novembro de 2010;
- Quadros de Pessoal, MTSS;
- Jornal Público de 4//4/2011;
- Anuário Estatístico da Região de Lisboa, INE, 2010.

http://www.avante.pt/pt/1955/temas/114656/
 

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