1. A questão da dívida pública, pela sua dimensão e pelos constrangimentos que lhe estão hoje associados, constitui um problema real. Em Portugal, como noutros países da UE.
Mas ela é também peça central da violenta ofensiva social, económica, política e ideológica em curso – de que a mais recente expressão foi conhecida com a divulgação do memorando das troikas FMI/CE/BCE e PS/PSD/CDS-PP.
2. Estamos perante um programa que incorpora o essencial das medidas que têm vindo a ser preconizadas ao nível da UE; algumas delas já implementadas nos países vítimas de «ajudas» semelhantes e outras sintetizadas nas conclusões do último Conselho Europeu, no chamado «Pacto para o Euro mais».
Este programa vem confirmar a ideia de que, na actual fase de desenvolvimento da crise capitalista, o capital transnacional, através das suas instituições (FMI, UE), e em articulação com as burguesias e com os sectores monopolistas nacionais, procuram forçar um novo ciclo de acumulação capitalista, assente em dois objectivos centrais:
- O embaratecimento dos custos unitários do trabalho e o aumento da taxa de exploração, sendo a manutenção do desemprego em patamares elevados uma variável estratégica para impor esta desvalorização da força de trabalho;
- O alargamento das áreas em que se pode exercer o processo de acumulação de capital, retirando à esfera pública ainda mais sectores da vida económica e social.
Com efeito, no programa FMI-UE, apenas para referir alguns exemplos, lá encontramos as propostas de facilitação dos despedimentos, flexibilização/aumento do horário de trabalho e de ataque à contratação colectiva e ao papel dos sindicatos; lá encontramos também a redução dos salários e pensões, o aumento dos impostos indirectos, como o IVA, as liberalizações de mais sectores de actividade económica e as privatizações; e lá encontramos ainda a transferência directa de avultados recursos públicos para a banca.
Este programa, a concretizar-se, agravará, sob inúmeros prismas, a situação nacional – com o agravamento da recessão económica, o aumento do desemprego, da pobreza, das desigualdades sociais e da dependência nacional. A ser implementado, este programa, como o bem demonstra a situação noutros países, agravará mesmo as condições que, alegadamente, determinariam esta intervenção, ou seja: as dificuldades em fazer face aos insuportáveis custos crescentes da dívida pública.
3. Uma das mistificações correntes (explorada até ao limite pelos partidos da direita e aproveitada pela social-democracia, mesmo que, por vezes, de forma oportunista, dela se demarque no discurso) é a de que a dívida pública resultou de um Estado despesista, sobredimensionado, que vive "acima das suas possibilidades". Um passo lógico neste raciocínio, tendo em vista a redução da dívida, consiste pois na defesa do «emagrecimento» do Estado, dos cortes num conjunto de áreas sociais e das privatizações.
O raciocínio é falacioso por várias razões. A verdade é que o aumento da dívida pública, que se verificou em Portugal e noutros países da UE, acompanhou a tendência, especialmente nítida nas últimas duas décadas, para o recuo do Estado num conjunto de áreas da vida económica e social e para a redução da despesa e do investimento públicos, medidos em percentagem do PIB.
Foi precisamente esse recuo que, em grande parte, determinou um fraco crescimento económico e, consequentemente, uma redução das receitas do Estado; redução essa agravada pelos benefícios e isenções concedidos ao grande capital, a nível fiscal e não só.
A crescente subordinação do poder político ao poder económico, e a utilização do Estado ao serviço de clientelas e de interesses particulares (de classe), contribuiu igualmente para o crescimento da dívida pública. Veja-se a monumental transferência de recursos públicos para os grupos económicos e financeiros, através das privatizações, de concessões diversas e das parcerias público-privadas. Ao mesmo tempo que muitas empresas públicas (de transportes, por exemplo) foram empurradas para o endividamento junto da banca, devido à contínua, persistente e injustificada sub-orçamentação a que foram sujeitas, o Estado endividou-se também para a realização de investimentos não produtivos e de discutível impacto no desenvolvimento (veja o caso dos estádios de futebol). Estamos perante aquilo a que alguns já chamaram o «duplo jackpot» do sistema financeiro: não só é altamente beneficiado na altura de (não) pagar impostos, como ainda ganha milhões por via dos juros cobrados com o endividamento do Estado. A que se vem somar agora a generosa ajuda do programa FMI-UE...
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