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15/02/2011

Passos Coelho e a enxurrada de encerramento de empresas públicas

Correia da Fonseca

Um dia destes, um antigo e sólido militante do PSD, ex-autarca do concelho onde resido, teve um desabafo comigo. Perdoe-se-me a inconfidência, que aliás só o é por metade, pois nem sequer me passa pela cabeça identificar o desabafante, com perdão da palavra que me parece um tosco neologismo: disse-me ele que ao actual líder do seu partido faltam (talvez apenas ainda) muitos méritos, mas que o pior de tudo é o facto de os que o rodeiam serem «o pior que existe no PSD».
Disse-o assim, tal qual.
Para falar com franqueza, achei então que o senhor exagerava: tenho como provável que algures, em vários recantos daquele partido, ainda pode haver pior. Contudo, esta minha esperançosa convicção sofreu um forte abalo, que aliás já não é o primeiro, quando ouvi o dr. Pedro Passos Coelho preconizar o encerramento de todas as empresas públicas que dêem prejuízo. Seria, pois, uma verdadeira enxurrada.
Assim, «a cru», para usar aqui a expressão um dia usada pelo dr. Medina Carreira, salvo erro, quando o famigerado fiscalista propôs não sei já que brutalidade, a menos que a proposta tenha sido feita por um outro senhor, por sinal já falecido, pelo que o melhor é esquecer-lhe o nome. Quanto ao dr. Passos Coelho, que é quem para aqui agora interessa, parece claro que a sua intenção era, ou ainda é, não só a de poupar ao Estado o encargo de suportar resultados negativos de empresas públicas, o que até se afigura bonito a quem não tenha o hábito de pensar muito, mas também o de criar «oportunidades de negócio» ao sector privado que decerto lhe agradeceria a ideia.
Só que há empresas e empresas, também no sector público, e que, por exemplo, o eventual encerramento de hospitais e de muitos itinerários ferroviários (mais ainda que os já liquidados) seria um desastrado e insuportável golpe nos interesses e direitos do povo português. Mais um entre os já desferidos e os ainda apenas na fase de projecto. Temos, pois, que pelo menos na forma sucinta com que foi apresentada a ideia do dr. Pedro é uma má ideia, o que já nem surpreende pelo menos quem ainda se lembre da sua proposta de revisão constitucional entretanto abandonada a um prudente silêncio.
Mas é claro que não nasceu do nada e também que a desvairada proposta tem raízes na demagogia populista que floresce sobretudo em certos canteiros, isto é, em torno de certos temas e de certas cobiças. É o caso da RTP, ou mais exactamente, dos canais principais da televisão pública, pois, como é sabido mas não muito lembrado, a sigla RTP é agora a da Rádio e Televisão Portuguesas, empresa que integra a TV e a rádio públicas.
Ora, desde há muito que pelo menos uma boa parte do sector privado reclama o encerramento ou a privatização de pelo menos a RTP1, medida que muito confortaria, por exemplo, o dr. Balsemão, que passa uma parte da sua vida a queixar-se da concorrência alegadamente «desleal» movida pela RTP no mercado telepublicitário, e que também agradaria aos que sofrem do crónico temor de que a televisão pública adopte um dia comportamentos de efectivo e eficaz serviço público, isto é, que se torne o meio de formação cívica e cultural que sempre deveria ter sido, mas não é.
É certo que, por agora, o obscurantismo que é um dos mais sólidos e antigos suportes do domínio político dos privilegiados não tem nada a recear da actividade da RTP: a sua programação no canal principal e não só, toda ela recheada de ingredientes medíocres e analgésicos, integrando formas modernas de efectiva censura que garantem a ocultação mediática de projectos políticos alternativos à sociedade injusta onde uns pagam as crises e outros vivem muito bem com elas, não é de molde a suscitar inquietações.
Mas nunca se sabe como vai ser o dia de amanhã, de súbito acontecem sismos ou o que com eles se parece, mais vale prevenir que remediar. O encerramento da televisão pública, no todo ou na sua parte eventualmente mais incómoda, seria uma boa medida de prevenção.
É claro que os efeitos da enxurrada aparentemente sonhada por Pedro Passos Coelho ultrapassariam largamente a área dos media públicos e seriam catastróficos para os interesses do povo português em muitos outros sectores.
Mas nesta dupla coluna é da televisão que se fala, do uso que dela é feito e do que deveria fazer-se, das possibilidades de enorme utilidade nacional que ainda encerra e que são desaproveitadas numa prática que é verdadeiramente antinacional. 

http://www.odiario.info/?p=1976

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