O texto abaixo é bastante elucidativo ao retratar a estreita relação entre médicos e a indústria farmacêutica. É de autoria da médica Marcia Angell, patologista, catedrática do Departamento de Medicina Social da Harvard Medical School. Conhecedora da relação entre médicos e indústria farmacêutica, trabalhou APENAS por 20 anos na New England Journal of Medicine (https://content.nejm.org/), uma das maiores revistas médicas do planeta. Saiu da mesma, em 2000 quando era editora-chefe.
Seu último livro, The Truth About the Drug Companies: How They Deceive Us and What to Do About It (Random House, 2004) saiu no Brasil em 2007 (A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos, Record); o artigo contém 19 notas, que podem ser consultadas na versão original (http://www.nybooks.com/articles/22237).
Atualmente está no serviço de Saúde Pública da Univ. de Harvard.
The New York Review of Books
(http://www.nybooks.com/articles/22237), 15 de janeiro de 2008
O senador republicano Charles Grassley, da Comissão de Finanças, tem investigado os laços financeiros entre a indústria farmacêutica e pesquisadores da academia. Ele não precisou procurar muito. Tome o caso de Joseph L. Biederman, professor de Psiquiatria da Harvard Medical School e chefe da psicofarmacologia pediátrica do Harvard's Massachusetts General Hospital. Muito graças a ele, crianças de 2 anos vêm tendo diagnóstico de desordem bipolar e são tratadas com coquetel de drogas poderosas, muitas não-aprovadas pela Food and Drug Administration para esta finalidade e nenhuma delas aprovada para crianças abaixo de 10 anos. Legalmente, médicos podem usar drogas aprovados para determinado fim em qualquer outra finalidade que escolherem, mas esse uso deve se basear em boas evidências científicas publicadas. Não parece ser o caso aqui. Os próprios estudos de Beiderman sobre as drogas que ele defende para tratar transtorno bipolar na infância eram, na opinião de especialistas ouvidos pelo New York Times, tão pequenos e tão precariamente concebidos que foram considerados amplamente inconclusivos.
O senador Grassley revelou em junho [2008] que as empresas farmacêuticas, inclusive as que fabricam drogas para transtorno bipolar na infância, pagaram a Beiderman US$ 1,6 milhão por consultoria e palestras entre 2000 e 2007 — dois de seus colegas receberam outro tanto. Após a revelação, a direção do Massachusetts General Hospital e da associação médica enviaram carta aos médicos da casa expressando não seu choque pelo enorme conflito de interesses, mas simpatia pelos beneficiados: "Sabemos que esta é uma dolorosa fase para estes médicos e suas famílias, e nossos corações estão com eles".
Ou considere Alan F. Schatzberg, chefe da psiquiatria de Stanford e presidente eleito da Associação Psiquiátrica Americana. O senador Grassley descobriu que Schatzberg detém mais US$ 6 milhões em ações da Corcept Therapeutics, empresa que ele ajudou a fundar e que está testando a mifepristone (a droga abortiva conhecida como RU-486) no tratamento da depressão psicótica. Schatzberg era o pesquisador principal num estudo subvencionado do Instituto Nacional de Saúde Mental que incluía testes do mifepristone neste uso. Ele assinou três trabalhos sobre o assunto. No fim de junho, Stanford declarou nada ter visto de errado no acordo, embora um mês depois o conselho da universidade anunciasse que estava substituindo Schatzberg temporariamente como pesquisador principal "para eliminar qualquer mal-entendido.
Talvez o caso mais notório exposto pelo senador tenha sido o de Charles B. Nemeroff, chefe da Psiquiatria da Universidade de Emory, editor, com Schatzberg, do influente Textbook of Psychopharmacology. Nemeroff foi o principal pesquisador, por cinco anos, de estudo subvencionado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental, de US$ 3,95 milhões, dos quais US$ 1,35 milhão vieram por fora, para teste de várias drogas da GlaxoSmithKline. Obrigada a informar ao National Institutes of Health os pagamentos do laboratório, a Emory passou a exigir declaração de valores acima de US$ 10 mil anuais, além de garantia de ausência de conflito de interesses. Mas Grassley comparou os registros da Emory aos da empresa: Nemeroff recebeu US$ 500 mil da GlaxoSmithKline por dezenas de palestras de promoção das drogas da empresa, que ele omitiu. Pressionado, prometeu não aceitar nada acima de US$ 10 mil. Em 2004, contudo, recebeu US$ 171.031 da empresa, mas declarou US$ 9.999.
Numa carta de 2000 em que justificava sua participação no conselho de uma dúzia de corporações, Nemeroff apontou seu “valor” para a Emory: “Certamente os Srs. se lembram que Smith-Kline Beecham Pharmaceuticals doou uma cátedra e é provável que Janssen Pharmaceuticals fará o mesmo. Além disso, Wyeth Pharmaceuticals-Ayerst financiou programa no departamento, e pedi a AstraZeneca Produtos Farmacêuticos e Bristol-Myers [sic] Squibb a fazerem o mesmo. Parte da razão deste financiamento a nossa faculdade seria meu serviço nestes conselhos”. A área psiquiátrica ganhou espaço na mídia graças às investigações de Grassley, mas conflitos de interesse similares infestam a medicina (o senador está agora se voltando para os cardiologistas). A maioria dos médicos recebe dinheiro ou presentes de laboratórios de uma maneira ou de outra: como consultores, como palestrantes em encontros patrocinados pela indústria, como autores-fantasma de artigos escritos pelas empresas ou seus agentes e como “pesquisadores” ostensivos de estudos que consistem meramente em medicar seus pacientes com uma droga e repassar os resultados à companhia. Outros ganham almoços grátis e presentes variados. Em contrapartida, a indústria subsidia a maioria dos encontros de associações profissionais e a maioria dos cursos de atualização exigidos dos médicos para que preservem sua licença.
Ninguém sabe o quanto a indústria gasta com médicos, mas calculo, por seus balanços anuais, que o gasto das 9 maiores empresas cheguem a dezenas de bilhões de dólares. Por estes meios, a indústria farmacêutica ganhou enorme controle sobre o modo como os médicos avaliam e usam seus produtos. Seus laços com médicos, especialmente catedráticos em escolas médicas de prestígio, afetam os resultados da pesquisa, o modo de praticar a medicina e até a definição do que é doença.
Considere os ensaios clínicos de fármacos testados em seres humanos. Antes de uma nova droga entrar no mercado, o fabricante deve patrocinar estudos clínicos para demonstrar à Food and Drug Administration que a droga é segura e eficaz, geralmente, em comparação com um placebo ou pílula falsa. Os resultados de todos os ensaios (pode haver muitos) são submetidos à FDA, e se um ou dois ensaios são positivos, ou seja, se mostram eficácia sem risco grave, a droga é normalmente aprovada, mesmo se todos os outros ensaios forem negativos. A droga é aprovada apenas para um determinado uso, por exemplo, para o tratamento do câncer de pulmão, e é ilegal promovê-la para qualquer outro uso. Mas o médico pode prescrever medicamentos aprovados “extra-bula”. Depois que a droga está no mercado, as empresas continuam a patrocinar os ensaios clínicos para obter aprovação para novos usos ou demonstrar vantagem sobre os concorrentes, muitas vezes apenas como desculpa para chegar ao médico (esses testes são adequadamente chamados de "semear estudos”).
Como as empresas farmacêuticas não têm acesso direto a seres humanos, precisam dos ensaios clínicos em escolas médicas, onde pesquisadores usam pacientes de hospitais e clínicas de ensino, ou em empresas privadas de pesquisa. Mas os patrocinadores preferem as escolas médicas, em parte porque a pesquisa é levada mais a sério, mas, principalmente, porque lhes dá acesso a influentes professores-médicos, os formadores de opinião (Kols), que escrevem livros e artigos em periódicos, lançam compêndios e guias práticos, integram painéis consultivos da FDA e de outros organismos governamentais, lideram associações profissionais e falam nos inúmeros encontros e jantares anuais sobre medicamentos prescritos. Ter Kols como o Dr. Beiderman na folha de pagamento vale cada centavo. Décadas atrás, as escolas médicas não tinham relações financeiras extensas com a indústria, e os que faziam pesquisa com patrocínio da indústria não tinham laços com patrocinadores. Mas as escolas agora têm acordos múltiplos com a indústria e estão em difícil posição moral para impedir que seu corpo docente se comporte da mesma forma. Inquérito recente revelou que cerca de dois terços dos centros médicos acadêmicos têm participação em empresas que patrocinam pesquisa na mesma instituição. Estudo em escolas médicas descobriu que dois terços dos chefes de departamento recebem pagamento de empresas farmacêuticas e três quintos recebem renda pessoal. Na década de 1980 escolas médicas começaram a emitir orientações sobre conflitos de interesse, mas eles variam muito, são geralmente permissivos e vagamente executados.
Como as empresas insistem, como condição para financiamento, que estejam intimamente envolvidas em todos os aspectos da pesquisa que patrocinam, elas podem facilmente direcionar o estudo para que mostrem seus medicamentos melhores e mais seguros do que são. Antes da década de 1980, professores pesquisadores tinham total responsabilidade pela condução dos trabalhos, mas agora os empregados das empresas ou seus agentes frequentemente concebem os estudos, analisam, escrevem os papers e decidem se e como publicar os resultados. Às vezes, a faculdade médica pouco mais faz do que contratar mão-de-obra, fornecendo doentes e coletando dados segundo instruções da empresa.
Em virtude deste controle e os conflitos de interesse que permeiam o empreendimento, não surpreende que ensaios patrocinados pela indústria publicados em revistas médicas consistentemente favoreçam a droga dos patrocinadores, em grande parte porque os resultados negativos não são publicados, os resultados positivos são repetidamente publicados de formas ligeiramente diferentes e uma visão positiva é dada mesmo em resultados negativos. Revisão de 74 ensaios clínicos de antidepressivos, por exemplo, mostrou que foram positivos 37 dos 38 estudos publicados. Mas, dos 36 estudos negativos, 33 não foram publicados ou publicados de forma a evidenciar um resultado positivo. Não é incomum que um artigo mude o foco da droga, do efeito pretendido para um efeito secundário que pareça mais favorável.
Essa supressão de resultados desfavoráveis é objeto do cativante livro de Alison Bass, Side Effects. É a história de como a gigante britânica GlaxoSmithKline enterrou provas de que seu antidepressivo Paxil era ineficaz e mesmo prejudicial a crianças e adolescentes. Bass, ex-repórter do Boston Globe, descreve o envolvimento de três pessoas, um cético psiquiatra acadêmico, um moralmente indignado administrador-assistente do departamento de psiquiatria da Brown University (cujo chefe recebeu em 1998 mais de US$ 500 mil como consultor de empresas farmacêuticas, incluindo a GlaxoSmithKline) e um incansável assistente de promotor de Nova York. Eles partiram para cima da GlaxoSmithKline e no fim venceram, contra todas as probabilidades: em 2004, a corporação admitiu fraude e aceitou pagar US$ 2,5 milhões de indenização (fração mínima dos mais de US$ 2,7 bilhões das vendas iniciais do Paxil).
Também comprometeu-se a liberar resumos de todos os ensaios clínicos concluídos após 27 de dezembro de 2000. De maior importância foi ter chamado a atenção para a deliberada e sistemática prática de se suprimirem resultados desfavoráveis da investigação, o que nunca teria sido revelado sem o processo legal. Um dos documentos internos da GlaxoSmithKline revelados no processo dizia: "Seria inaceitável comercialmente incluir declaração de que a eficácia não fora demonstrada, uma vez que isso poderia prejudicar o perfil da paroxetina [Paxil]".
Muitas drogas ditas efetivas são pouco mais do que placebos, mas não há como saber porque os resultados são escondidos. Uma pista disso foi conseguida há seis anos por quatro pesquisadores que, com base no Freedom of Information Act, obtiveram revisões da FDA dos ensaios clínicos com placebo dos seis antidepressivos mais usados aprovados entre 1987 e 1999 — Prozac, Paxil, Zoloft, Celexa, Serzone e Effexor. Em média, em 80% os placebos foram tão eficazes quanto os medicamentos. A diferença entre droga e placebo era tão pequena que seria pouco provável que houvesse qualquer significado clínico. Os resultados foram praticamente os mesmos para as seis drogas: todas igualmente ineficazes. Mas como os resultados favoráveis foram publicados e os desfavoráveis enterrados (neste caso, na própria FDA), público e médicos acreditavam que essas drogas eram potentes antidepressivos.
Ensaios clínicos também são tendenciosos pela concepção de pesquisas escolhidas para produzir resultados favoráveis aos patrocinadores. Por exemplo, a droga do patrocinador pode ser comparada com outro medicamento administrado em dose tão baixa que a do patrocinador parece mais poderosa. Ou uma droga para uso de idosos será testada em jovens, para que os efeitos secundários apareçam menos. Outra forma comum de desvio decorre da prática de comparar um novo medicamento com placebo, quando a questão pertinente é a comparação com um medicamento existente. Em suma, é possível conseguir ensaios clínicos de praticamente qualquer maneira que se queira, e por isso é tão importante que os pesquisadores sejam verdadeiramente desinteressados no resultado de seu trabalho.
Conflitos de interesse afetam mais do que a pesquisa. Também moldam diretamente a forma de se praticar medicina, por sua influência na prática profissional, nas diretrizes governamentais e nas decisões da FDA. Alguns exemplos: num levantamento de 200 painéis de peritos que emitiram orientações práticas, um terço admitiu algum interesse financeiro na droga em exame. Em 2004, quando o National Cholesterol Education Program conclamou à redução drástica dos níveis de "mau" colesterol, oito dos nove peritos do painel tinham vínculos financeiros com fabricantes de redutores de colesterol. Dos 170 colaboradores da edição mais recente do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), da Associação Psiquiátrica Americana, 95 tinham vínculo financeiro com farmacêuticas, incluindo todos das seções sobre transtornos do humor e esquizofrenia. E mais: muitos integrantes das comissões permanentes de peritos que aconselham a FDA na aprovação de drogas têm laços financeiros com a indústria.
Os laboratórios aperfeiçoaram um novo e efetivo método de expandir seus mercados. Em vez de promover drogas para tratamento de doenças, começaram a promover doenças para encaixar suas drogas. A estratégia: convencer o maior número possível de pessoas (e seus médicos, claro) de que têm problemas médicos que exigem tratamento medicamentoso longo. Às vezes chamado de "mercantilização da doença", este é o foco de dois novos livros: o de Melody Petersen, Our Daily Meds, e o de Christopher Lane, Shyness. Marcia trata aqui de fenômeno há tempos debatido, pelo qual, para promover ou exagerar condições, a indústria lhes dá nomes graves e sonoros — e com abreviaturas.
Assim, azia é agora "doença do refluxo gastroesofágico" ou DRGE; impotência é "disfunção erétil" ou DE; tensão pré-menstrual é "transtorno disfórico pré-menstrual" ou (TDPM), e timidez é "transtorno de ansiedade social" (ainda sem abreviatura). Note-se que estas são doenças definidas que afetam principalmente pessoas normais; assim, o mercado é enorme e facilmente expansível. Eis como um executivo de marketing aconselha seus vendedores para a expansão do uso de Neurontin: "Neurontin para dor, Neurontin na monoterapia, Neurontin para bipolar, Neurontin para tudo". A estratégia de marketing da droga — extraordinariamente bem-sucedida — é convencer os americanos de que só há dois tipos de pessoas: os que precisam de tratamento com drogas e os que ainda não sabem disso. Essa estratégia não poderia ser implementada sem a cumplicidade da classe médica. Melody Petersen, ex-repórter do New York Times, escreveu ampla e convincente acusação contra a indústria farmacêutica. Ela detalha as maneiras, legais e ilegais, de as empresas criarem blockbusters (drogas com vendas anuais acima de um bilhão de dólares) e do papel essencial dos Kols.
O principal exemplo é o Neurontin, aprovado apenas para uso restrito, o tratamento da epilepsia quando outros medicamentos não controlem as convulsões. Pagou peritos acadêmicos para exaltarem o Neurontin em outros usos — doença bipolar, estresse pós-traumático, insônia, síndrome das pernas inquietas, sensação de calor, enxaquecas. Pelo financiamento de conferências de promoção desses usos, o fabricante tornou a droga um campeão de vendas (US$ 2,7 bilhões em 2003). No ano seguinte, em caso amplamente coberto pela repórter para o Times, a Pfizer declarou-se culpada de venda ilegal do remédio e concordou em pagar US$ 430 milhões para encerrar o processo. Para a Pfizer, apenas o custo do negócio: vale a pena, porque Neurontin continua a faturar milhões.
O livro de Lane tem foco mais amplo — o rápido aumento do número de diagnósticos psiquiátricos na população americana e seu tratamento com drogas psicoativas (que afetam os estados mentais). Dado que não há testes objetivos para as doenças mentais e as fronteiras entre normal e anormal são freqüuentemente incertas, especialmente a psiquiatria é campo fértil para novos diagnósticos ou ampliação de antigos. Critério para diagnóstico é praia exclusiva do DSM, produto de um grupo de psiquiatras, a maioria com vínculos financeiros com a indústria farmacêutica. Lane, professor de Literatura da Northwestern University, traça a evolução do DSM a partir de seu modesto começo em 1952, de pequeno caderno de espiral às atuais 943 páginas, a "bíblia" da psiquiatria, referência para tribunais, prisões, escolas, empresas de seguros, salas de emergência, escritórios e instalações médicas.
Lane mostra que não passa de mistura complexa de política acadêmica, ambição pessoal, ideologia e, sobretudo, da influência da indústria. O que falta é evidência. Lane cita um integrante da força-tarefa da edição DSM-III (hoje vigora a IV): “Havia muito pouca investigação sistemática, e grande parte da investigação que existia era realmente uma desordem: dispersa, incoerente, ambígua. Penso que a maioria de nós reconhece que a quantidade de boa e sólida ciência sobre a qual íamos tomando decisões foi bastante modesta”. Lane usa a timidez como estudo de caso de doença. A timidez como doença psiquiátrica estreou como "fobia social" no DSM-III, em 1980, considerada “rara”.
Em 1994, com o DSM-IV, tornou-se "transtorno de ansiedade social", agora extremamente comum. De acordo com Lane, para impulsionar as vendas do Paxil, GlaxoSmithKline decidiu promover a ansiedade social como "grave condição médica". Em 1999, recebeu aprovação da FDA para vender a droga no tratamento da “ansiedade social”, o que fez com ampla campanha midiática, incluindo cartazes nas paradas de ônibus de todo o país mostrando gente triste e as palavras "Imagine ser alérgico a pessoas...". As vendas subiram. Barry Brand, diretor de produção do Paxil, teria dito: "Cada marqueteiro sonha encontrar um nicho inexplorado no mercado e desenvolvê-lo. Isso é o que fizemos com a ansiedade social".
Alguns dos maiores blockbusters são drogas psicoativas. A teoria de que as condições psiquiátricas resultam de desequilíbrio bioquímico é usada como justificativa para sua generalização, embora a teoria ainda tenha que ser provada. As crianças são alvos particularmente vulneráveis. Que pai ousa dizer "não" quando o médico afirma que seu filho está doente e recomenda tratamento de drogas? Estamos agora no meio de uma aparente epidemia de doença bipolar em crianças — substituindo o Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) como a mais divulgada condição na infância: este diagnóstico cresceu 40 vezes entre 1994 e 2003. Estas crianças são tratadas com múltiplas drogas “extra-bula”, muitas das quais sedativos e quase todos com potencialmente graves efeitos secundários. Estes problemas não estão limitados à psiquiatria, embora nela atinjam seu clímax.
Conflitos de interesses e preconceitos similares estão em praticamente todos os campos da medicina, especialmente aqueles que dependem fortemente de drogas ou dispositivos. Simplesmente não é mais possível acreditar muito na investigação clínica publicada, ou confiar no julgamento de médicos renomados ou guias médicos. Não sinto prazer algum nesta conclusão, a que cheguei lenta e relutantemente em duas décadas como editora em The New England Journal of Medicine.
Um resultado desse grave desvio é que os médicos aprendem a praticar um estilo de medicina com uso intensivo de medicamentos. Mesmo quando a mudança do estilo de vida poderia ser mais eficaz, médicos e seus pacientes acreditam que para cada doença ou desconforto existe uma droga. Os médicos também são levados a acreditar que a mais nova, a mais cara marca de medicamento é superior às mais antigas ou aos genéricos, ainda que raramente haja qualquer prova disso, porque patrocinadores não costumam comparar seus produtos com medicamentos mais antigos em doses equivalentes. Além disso, os médicos, seduzidos pela prestigiosa escola médica, aprende a prescrever medicamentos para uso “extra-bula” sem boas evidências de eficácia.
É fácil culpar a indústria, e ela certamente tem grande parte da culpa. A maioria das grandes empresas foi acusada de fraude, de marketing “extra-bula” e outros delitos. TAP Pharmaceuticals, por exemplo, em 2001 confessou culpa e pagou US$ 875 milhões para liquidar acusações penais e civis na venda fraudulenta de Lupron, usado no tratamento do câncer de próstata. As acusações de fraude incluem Merck, Eli Lilly e Abbott. Os custos ainda são insignificantes em relação aos lucros gerados por essas atividades ilegais. Ainda assim, seus apologistas poderiam argumentar que a indústria está apenas tentando fazer seu trabalho principal, mesmo que os interesses dos investidores vão um pouco longe demais.
Médicos, escolas médicas e associações profissionais não têm tal desculpa, pois devem responsabilidade aos pacientes. A missão de escolas médicas e hospitais universitários, que justifica seu estatuto de isenção fiscal, é educar a próxima geração de médicos, promover pesquisa cientificamente importante e cuidar dos integrantes mais doentes da sociedade. Não é envolver-se em lucrativas alianças comerciais com a indústria farmacêutica. Por mais condenáveis que sejam as práticas da indústria, o comportamento de grande parte da classe médica é pior. As empresas não são de caridade, esperam algo em troca do dinheiro que gastam. Tantas reformas seriam necessárias para restaurar a integridade da pesquisa clínica e da prática médica que não podem ser resumidas. Implicaria mudanças na lei e na FDA, incluindo seu processo de aprovação de drogas. Mas há também clara necessidade de que a classe médica se afaste do dinheiro da indústria quase totalmente.
Embora a cooperação indústria-academia possa dar importante contribuição científica, é geralmente na pesquisa básica, e não na clínica — e mesmo assim é discutível se exige o enriquecimento pessoal dos pesquisadores. As escolas médicas e seus representantes não devem aceitar quaisquer pagamentos de empresas farmacêuticas, com exceção no apoio à pesquisa, e que esse apoio não tenha qualquer arranjo anexado, incluindo o controle de empresas farmacêuticas na concepção, na interpretação e na publicação dos resultados da investigação.
Escolas médicas e hospitais universitários devem aplicar rigorosamente essa regra, e não podem ter negócios com empresas cujos produtos seus pesquisadores estudem. Por fim, raramente existe uma razão legítima para um médico aceitar doações de empresas farmacêuticas, mesmo pequenas, devendo pagar por suas reuniões e sua atualização.
Depois de tanta publicidade desfavorável, escolas médicas e associações profissionais começam a falar de controle dos conflitos de interesse, mas até agora a resposta tem sido morna. Constantemente se referem a "eventuais" conflitos de interesse, como se isso fosse diferente da realidade, e falam em divulgá-los e gerilos, não em proibi-los.
Em suma, parece haver o desejo de eliminar o cheiro de corrupção, mantendo o dinheiro. Quebrar a dependência da classe médica à indústria farmacêutica terá que ir além da criação de comissões e outros gestos. Exigirá a quebra de um padrão de comportamento extremamente lucrativo. Mas se a classe médica não puser fim a essa corrupção voluntariamente, perderá a confiança do público e o governo (não apenas o senador Grassley) imporá regulamentação. Ninguém na medicina quer isso.
Seu último livro, The Truth About the Drug Companies: How They Deceive Us and What to Do About It (Random House, 2004) saiu no Brasil em 2007 (A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos, Record); o artigo contém 19 notas, que podem ser consultadas na versão original (http://www.nybooks.com/articles/22237).
Atualmente está no serviço de Saúde Pública da Univ. de Harvard.
The New York Review of Books
(http://www.nybooks.com/articles/22237), 15 de janeiro de 2008
O senador republicano Charles Grassley, da Comissão de Finanças, tem investigado os laços financeiros entre a indústria farmacêutica e pesquisadores da academia. Ele não precisou procurar muito. Tome o caso de Joseph L. Biederman, professor de Psiquiatria da Harvard Medical School e chefe da psicofarmacologia pediátrica do Harvard's Massachusetts General Hospital. Muito graças a ele, crianças de 2 anos vêm tendo diagnóstico de desordem bipolar e são tratadas com coquetel de drogas poderosas, muitas não-aprovadas pela Food and Drug Administration para esta finalidade e nenhuma delas aprovada para crianças abaixo de 10 anos. Legalmente, médicos podem usar drogas aprovados para determinado fim em qualquer outra finalidade que escolherem, mas esse uso deve se basear em boas evidências científicas publicadas. Não parece ser o caso aqui. Os próprios estudos de Beiderman sobre as drogas que ele defende para tratar transtorno bipolar na infância eram, na opinião de especialistas ouvidos pelo New York Times, tão pequenos e tão precariamente concebidos que foram considerados amplamente inconclusivos.
O senador Grassley revelou em junho [2008] que as empresas farmacêuticas, inclusive as que fabricam drogas para transtorno bipolar na infância, pagaram a Beiderman US$ 1,6 milhão por consultoria e palestras entre 2000 e 2007 — dois de seus colegas receberam outro tanto. Após a revelação, a direção do Massachusetts General Hospital e da associação médica enviaram carta aos médicos da casa expressando não seu choque pelo enorme conflito de interesses, mas simpatia pelos beneficiados: "Sabemos que esta é uma dolorosa fase para estes médicos e suas famílias, e nossos corações estão com eles".
Ou considere Alan F. Schatzberg, chefe da psiquiatria de Stanford e presidente eleito da Associação Psiquiátrica Americana. O senador Grassley descobriu que Schatzberg detém mais US$ 6 milhões em ações da Corcept Therapeutics, empresa que ele ajudou a fundar e que está testando a mifepristone (a droga abortiva conhecida como RU-486) no tratamento da depressão psicótica. Schatzberg era o pesquisador principal num estudo subvencionado do Instituto Nacional de Saúde Mental que incluía testes do mifepristone neste uso. Ele assinou três trabalhos sobre o assunto. No fim de junho, Stanford declarou nada ter visto de errado no acordo, embora um mês depois o conselho da universidade anunciasse que estava substituindo Schatzberg temporariamente como pesquisador principal "para eliminar qualquer mal-entendido.
Talvez o caso mais notório exposto pelo senador tenha sido o de Charles B. Nemeroff, chefe da Psiquiatria da Universidade de Emory, editor, com Schatzberg, do influente Textbook of Psychopharmacology. Nemeroff foi o principal pesquisador, por cinco anos, de estudo subvencionado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental, de US$ 3,95 milhões, dos quais US$ 1,35 milhão vieram por fora, para teste de várias drogas da GlaxoSmithKline. Obrigada a informar ao National Institutes of Health os pagamentos do laboratório, a Emory passou a exigir declaração de valores acima de US$ 10 mil anuais, além de garantia de ausência de conflito de interesses. Mas Grassley comparou os registros da Emory aos da empresa: Nemeroff recebeu US$ 500 mil da GlaxoSmithKline por dezenas de palestras de promoção das drogas da empresa, que ele omitiu. Pressionado, prometeu não aceitar nada acima de US$ 10 mil. Em 2004, contudo, recebeu US$ 171.031 da empresa, mas declarou US$ 9.999.
Numa carta de 2000 em que justificava sua participação no conselho de uma dúzia de corporações, Nemeroff apontou seu “valor” para a Emory: “Certamente os Srs. se lembram que Smith-Kline Beecham Pharmaceuticals doou uma cátedra e é provável que Janssen Pharmaceuticals fará o mesmo. Além disso, Wyeth Pharmaceuticals-Ayerst financiou programa no departamento, e pedi a AstraZeneca Produtos Farmacêuticos e Bristol-Myers [sic] Squibb a fazerem o mesmo. Parte da razão deste financiamento a nossa faculdade seria meu serviço nestes conselhos”. A área psiquiátrica ganhou espaço na mídia graças às investigações de Grassley, mas conflitos de interesse similares infestam a medicina (o senador está agora se voltando para os cardiologistas). A maioria dos médicos recebe dinheiro ou presentes de laboratórios de uma maneira ou de outra: como consultores, como palestrantes em encontros patrocinados pela indústria, como autores-fantasma de artigos escritos pelas empresas ou seus agentes e como “pesquisadores” ostensivos de estudos que consistem meramente em medicar seus pacientes com uma droga e repassar os resultados à companhia. Outros ganham almoços grátis e presentes variados. Em contrapartida, a indústria subsidia a maioria dos encontros de associações profissionais e a maioria dos cursos de atualização exigidos dos médicos para que preservem sua licença.
Ninguém sabe o quanto a indústria gasta com médicos, mas calculo, por seus balanços anuais, que o gasto das 9 maiores empresas cheguem a dezenas de bilhões de dólares. Por estes meios, a indústria farmacêutica ganhou enorme controle sobre o modo como os médicos avaliam e usam seus produtos. Seus laços com médicos, especialmente catedráticos em escolas médicas de prestígio, afetam os resultados da pesquisa, o modo de praticar a medicina e até a definição do que é doença.
Considere os ensaios clínicos de fármacos testados em seres humanos. Antes de uma nova droga entrar no mercado, o fabricante deve patrocinar estudos clínicos para demonstrar à Food and Drug Administration que a droga é segura e eficaz, geralmente, em comparação com um placebo ou pílula falsa. Os resultados de todos os ensaios (pode haver muitos) são submetidos à FDA, e se um ou dois ensaios são positivos, ou seja, se mostram eficácia sem risco grave, a droga é normalmente aprovada, mesmo se todos os outros ensaios forem negativos. A droga é aprovada apenas para um determinado uso, por exemplo, para o tratamento do câncer de pulmão, e é ilegal promovê-la para qualquer outro uso. Mas o médico pode prescrever medicamentos aprovados “extra-bula”. Depois que a droga está no mercado, as empresas continuam a patrocinar os ensaios clínicos para obter aprovação para novos usos ou demonstrar vantagem sobre os concorrentes, muitas vezes apenas como desculpa para chegar ao médico (esses testes são adequadamente chamados de "semear estudos”).
Como as empresas farmacêuticas não têm acesso direto a seres humanos, precisam dos ensaios clínicos em escolas médicas, onde pesquisadores usam pacientes de hospitais e clínicas de ensino, ou em empresas privadas de pesquisa. Mas os patrocinadores preferem as escolas médicas, em parte porque a pesquisa é levada mais a sério, mas, principalmente, porque lhes dá acesso a influentes professores-médicos, os formadores de opinião (Kols), que escrevem livros e artigos em periódicos, lançam compêndios e guias práticos, integram painéis consultivos da FDA e de outros organismos governamentais, lideram associações profissionais e falam nos inúmeros encontros e jantares anuais sobre medicamentos prescritos. Ter Kols como o Dr. Beiderman na folha de pagamento vale cada centavo. Décadas atrás, as escolas médicas não tinham relações financeiras extensas com a indústria, e os que faziam pesquisa com patrocínio da indústria não tinham laços com patrocinadores. Mas as escolas agora têm acordos múltiplos com a indústria e estão em difícil posição moral para impedir que seu corpo docente se comporte da mesma forma. Inquérito recente revelou que cerca de dois terços dos centros médicos acadêmicos têm participação em empresas que patrocinam pesquisa na mesma instituição. Estudo em escolas médicas descobriu que dois terços dos chefes de departamento recebem pagamento de empresas farmacêuticas e três quintos recebem renda pessoal. Na década de 1980 escolas médicas começaram a emitir orientações sobre conflitos de interesse, mas eles variam muito, são geralmente permissivos e vagamente executados.
Como as empresas insistem, como condição para financiamento, que estejam intimamente envolvidas em todos os aspectos da pesquisa que patrocinam, elas podem facilmente direcionar o estudo para que mostrem seus medicamentos melhores e mais seguros do que são. Antes da década de 1980, professores pesquisadores tinham total responsabilidade pela condução dos trabalhos, mas agora os empregados das empresas ou seus agentes frequentemente concebem os estudos, analisam, escrevem os papers e decidem se e como publicar os resultados. Às vezes, a faculdade médica pouco mais faz do que contratar mão-de-obra, fornecendo doentes e coletando dados segundo instruções da empresa.
Em virtude deste controle e os conflitos de interesse que permeiam o empreendimento, não surpreende que ensaios patrocinados pela indústria publicados em revistas médicas consistentemente favoreçam a droga dos patrocinadores, em grande parte porque os resultados negativos não são publicados, os resultados positivos são repetidamente publicados de formas ligeiramente diferentes e uma visão positiva é dada mesmo em resultados negativos. Revisão de 74 ensaios clínicos de antidepressivos, por exemplo, mostrou que foram positivos 37 dos 38 estudos publicados. Mas, dos 36 estudos negativos, 33 não foram publicados ou publicados de forma a evidenciar um resultado positivo. Não é incomum que um artigo mude o foco da droga, do efeito pretendido para um efeito secundário que pareça mais favorável.
Essa supressão de resultados desfavoráveis é objeto do cativante livro de Alison Bass, Side Effects. É a história de como a gigante britânica GlaxoSmithKline enterrou provas de que seu antidepressivo Paxil era ineficaz e mesmo prejudicial a crianças e adolescentes. Bass, ex-repórter do Boston Globe, descreve o envolvimento de três pessoas, um cético psiquiatra acadêmico, um moralmente indignado administrador-assistente do departamento de psiquiatria da Brown University (cujo chefe recebeu em 1998 mais de US$ 500 mil como consultor de empresas farmacêuticas, incluindo a GlaxoSmithKline) e um incansável assistente de promotor de Nova York. Eles partiram para cima da GlaxoSmithKline e no fim venceram, contra todas as probabilidades: em 2004, a corporação admitiu fraude e aceitou pagar US$ 2,5 milhões de indenização (fração mínima dos mais de US$ 2,7 bilhões das vendas iniciais do Paxil).
Também comprometeu-se a liberar resumos de todos os ensaios clínicos concluídos após 27 de dezembro de 2000. De maior importância foi ter chamado a atenção para a deliberada e sistemática prática de se suprimirem resultados desfavoráveis da investigação, o que nunca teria sido revelado sem o processo legal. Um dos documentos internos da GlaxoSmithKline revelados no processo dizia: "Seria inaceitável comercialmente incluir declaração de que a eficácia não fora demonstrada, uma vez que isso poderia prejudicar o perfil da paroxetina [Paxil]".
Muitas drogas ditas efetivas são pouco mais do que placebos, mas não há como saber porque os resultados são escondidos. Uma pista disso foi conseguida há seis anos por quatro pesquisadores que, com base no Freedom of Information Act, obtiveram revisões da FDA dos ensaios clínicos com placebo dos seis antidepressivos mais usados aprovados entre 1987 e 1999 — Prozac, Paxil, Zoloft, Celexa, Serzone e Effexor. Em média, em 80% os placebos foram tão eficazes quanto os medicamentos. A diferença entre droga e placebo era tão pequena que seria pouco provável que houvesse qualquer significado clínico. Os resultados foram praticamente os mesmos para as seis drogas: todas igualmente ineficazes. Mas como os resultados favoráveis foram publicados e os desfavoráveis enterrados (neste caso, na própria FDA), público e médicos acreditavam que essas drogas eram potentes antidepressivos.
Ensaios clínicos também são tendenciosos pela concepção de pesquisas escolhidas para produzir resultados favoráveis aos patrocinadores. Por exemplo, a droga do patrocinador pode ser comparada com outro medicamento administrado em dose tão baixa que a do patrocinador parece mais poderosa. Ou uma droga para uso de idosos será testada em jovens, para que os efeitos secundários apareçam menos. Outra forma comum de desvio decorre da prática de comparar um novo medicamento com placebo, quando a questão pertinente é a comparação com um medicamento existente. Em suma, é possível conseguir ensaios clínicos de praticamente qualquer maneira que se queira, e por isso é tão importante que os pesquisadores sejam verdadeiramente desinteressados no resultado de seu trabalho.
Conflitos de interesse afetam mais do que a pesquisa. Também moldam diretamente a forma de se praticar medicina, por sua influência na prática profissional, nas diretrizes governamentais e nas decisões da FDA. Alguns exemplos: num levantamento de 200 painéis de peritos que emitiram orientações práticas, um terço admitiu algum interesse financeiro na droga em exame. Em 2004, quando o National Cholesterol Education Program conclamou à redução drástica dos níveis de "mau" colesterol, oito dos nove peritos do painel tinham vínculos financeiros com fabricantes de redutores de colesterol. Dos 170 colaboradores da edição mais recente do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), da Associação Psiquiátrica Americana, 95 tinham vínculo financeiro com farmacêuticas, incluindo todos das seções sobre transtornos do humor e esquizofrenia. E mais: muitos integrantes das comissões permanentes de peritos que aconselham a FDA na aprovação de drogas têm laços financeiros com a indústria.
Os laboratórios aperfeiçoaram um novo e efetivo método de expandir seus mercados. Em vez de promover drogas para tratamento de doenças, começaram a promover doenças para encaixar suas drogas. A estratégia: convencer o maior número possível de pessoas (e seus médicos, claro) de que têm problemas médicos que exigem tratamento medicamentoso longo. Às vezes chamado de "mercantilização da doença", este é o foco de dois novos livros: o de Melody Petersen, Our Daily Meds, e o de Christopher Lane, Shyness. Marcia trata aqui de fenômeno há tempos debatido, pelo qual, para promover ou exagerar condições, a indústria lhes dá nomes graves e sonoros — e com abreviaturas.
Assim, azia é agora "doença do refluxo gastroesofágico" ou DRGE; impotência é "disfunção erétil" ou DE; tensão pré-menstrual é "transtorno disfórico pré-menstrual" ou (TDPM), e timidez é "transtorno de ansiedade social" (ainda sem abreviatura). Note-se que estas são doenças definidas que afetam principalmente pessoas normais; assim, o mercado é enorme e facilmente expansível. Eis como um executivo de marketing aconselha seus vendedores para a expansão do uso de Neurontin: "Neurontin para dor, Neurontin na monoterapia, Neurontin para bipolar, Neurontin para tudo". A estratégia de marketing da droga — extraordinariamente bem-sucedida — é convencer os americanos de que só há dois tipos de pessoas: os que precisam de tratamento com drogas e os que ainda não sabem disso. Essa estratégia não poderia ser implementada sem a cumplicidade da classe médica. Melody Petersen, ex-repórter do New York Times, escreveu ampla e convincente acusação contra a indústria farmacêutica. Ela detalha as maneiras, legais e ilegais, de as empresas criarem blockbusters (drogas com vendas anuais acima de um bilhão de dólares) e do papel essencial dos Kols.
O principal exemplo é o Neurontin, aprovado apenas para uso restrito, o tratamento da epilepsia quando outros medicamentos não controlem as convulsões. Pagou peritos acadêmicos para exaltarem o Neurontin em outros usos — doença bipolar, estresse pós-traumático, insônia, síndrome das pernas inquietas, sensação de calor, enxaquecas. Pelo financiamento de conferências de promoção desses usos, o fabricante tornou a droga um campeão de vendas (US$ 2,7 bilhões em 2003). No ano seguinte, em caso amplamente coberto pela repórter para o Times, a Pfizer declarou-se culpada de venda ilegal do remédio e concordou em pagar US$ 430 milhões para encerrar o processo. Para a Pfizer, apenas o custo do negócio: vale a pena, porque Neurontin continua a faturar milhões.
O livro de Lane tem foco mais amplo — o rápido aumento do número de diagnósticos psiquiátricos na população americana e seu tratamento com drogas psicoativas (que afetam os estados mentais). Dado que não há testes objetivos para as doenças mentais e as fronteiras entre normal e anormal são freqüuentemente incertas, especialmente a psiquiatria é campo fértil para novos diagnósticos ou ampliação de antigos. Critério para diagnóstico é praia exclusiva do DSM, produto de um grupo de psiquiatras, a maioria com vínculos financeiros com a indústria farmacêutica. Lane, professor de Literatura da Northwestern University, traça a evolução do DSM a partir de seu modesto começo em 1952, de pequeno caderno de espiral às atuais 943 páginas, a "bíblia" da psiquiatria, referência para tribunais, prisões, escolas, empresas de seguros, salas de emergência, escritórios e instalações médicas.
Lane mostra que não passa de mistura complexa de política acadêmica, ambição pessoal, ideologia e, sobretudo, da influência da indústria. O que falta é evidência. Lane cita um integrante da força-tarefa da edição DSM-III (hoje vigora a IV): “Havia muito pouca investigação sistemática, e grande parte da investigação que existia era realmente uma desordem: dispersa, incoerente, ambígua. Penso que a maioria de nós reconhece que a quantidade de boa e sólida ciência sobre a qual íamos tomando decisões foi bastante modesta”. Lane usa a timidez como estudo de caso de doença. A timidez como doença psiquiátrica estreou como "fobia social" no DSM-III, em 1980, considerada “rara”.
Em 1994, com o DSM-IV, tornou-se "transtorno de ansiedade social", agora extremamente comum. De acordo com Lane, para impulsionar as vendas do Paxil, GlaxoSmithKline decidiu promover a ansiedade social como "grave condição médica". Em 1999, recebeu aprovação da FDA para vender a droga no tratamento da “ansiedade social”, o que fez com ampla campanha midiática, incluindo cartazes nas paradas de ônibus de todo o país mostrando gente triste e as palavras "Imagine ser alérgico a pessoas...". As vendas subiram. Barry Brand, diretor de produção do Paxil, teria dito: "Cada marqueteiro sonha encontrar um nicho inexplorado no mercado e desenvolvê-lo. Isso é o que fizemos com a ansiedade social".
Alguns dos maiores blockbusters são drogas psicoativas. A teoria de que as condições psiquiátricas resultam de desequilíbrio bioquímico é usada como justificativa para sua generalização, embora a teoria ainda tenha que ser provada. As crianças são alvos particularmente vulneráveis. Que pai ousa dizer "não" quando o médico afirma que seu filho está doente e recomenda tratamento de drogas? Estamos agora no meio de uma aparente epidemia de doença bipolar em crianças — substituindo o Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) como a mais divulgada condição na infância: este diagnóstico cresceu 40 vezes entre 1994 e 2003. Estas crianças são tratadas com múltiplas drogas “extra-bula”, muitas das quais sedativos e quase todos com potencialmente graves efeitos secundários. Estes problemas não estão limitados à psiquiatria, embora nela atinjam seu clímax.
Conflitos de interesses e preconceitos similares estão em praticamente todos os campos da medicina, especialmente aqueles que dependem fortemente de drogas ou dispositivos. Simplesmente não é mais possível acreditar muito na investigação clínica publicada, ou confiar no julgamento de médicos renomados ou guias médicos. Não sinto prazer algum nesta conclusão, a que cheguei lenta e relutantemente em duas décadas como editora em The New England Journal of Medicine.
Um resultado desse grave desvio é que os médicos aprendem a praticar um estilo de medicina com uso intensivo de medicamentos. Mesmo quando a mudança do estilo de vida poderia ser mais eficaz, médicos e seus pacientes acreditam que para cada doença ou desconforto existe uma droga. Os médicos também são levados a acreditar que a mais nova, a mais cara marca de medicamento é superior às mais antigas ou aos genéricos, ainda que raramente haja qualquer prova disso, porque patrocinadores não costumam comparar seus produtos com medicamentos mais antigos em doses equivalentes. Além disso, os médicos, seduzidos pela prestigiosa escola médica, aprende a prescrever medicamentos para uso “extra-bula” sem boas evidências de eficácia.
É fácil culpar a indústria, e ela certamente tem grande parte da culpa. A maioria das grandes empresas foi acusada de fraude, de marketing “extra-bula” e outros delitos. TAP Pharmaceuticals, por exemplo, em 2001 confessou culpa e pagou US$ 875 milhões para liquidar acusações penais e civis na venda fraudulenta de Lupron, usado no tratamento do câncer de próstata. As acusações de fraude incluem Merck, Eli Lilly e Abbott. Os custos ainda são insignificantes em relação aos lucros gerados por essas atividades ilegais. Ainda assim, seus apologistas poderiam argumentar que a indústria está apenas tentando fazer seu trabalho principal, mesmo que os interesses dos investidores vão um pouco longe demais.
Médicos, escolas médicas e associações profissionais não têm tal desculpa, pois devem responsabilidade aos pacientes. A missão de escolas médicas e hospitais universitários, que justifica seu estatuto de isenção fiscal, é educar a próxima geração de médicos, promover pesquisa cientificamente importante e cuidar dos integrantes mais doentes da sociedade. Não é envolver-se em lucrativas alianças comerciais com a indústria farmacêutica. Por mais condenáveis que sejam as práticas da indústria, o comportamento de grande parte da classe médica é pior. As empresas não são de caridade, esperam algo em troca do dinheiro que gastam. Tantas reformas seriam necessárias para restaurar a integridade da pesquisa clínica e da prática médica que não podem ser resumidas. Implicaria mudanças na lei e na FDA, incluindo seu processo de aprovação de drogas. Mas há também clara necessidade de que a classe médica se afaste do dinheiro da indústria quase totalmente.
Embora a cooperação indústria-academia possa dar importante contribuição científica, é geralmente na pesquisa básica, e não na clínica — e mesmo assim é discutível se exige o enriquecimento pessoal dos pesquisadores. As escolas médicas e seus representantes não devem aceitar quaisquer pagamentos de empresas farmacêuticas, com exceção no apoio à pesquisa, e que esse apoio não tenha qualquer arranjo anexado, incluindo o controle de empresas farmacêuticas na concepção, na interpretação e na publicação dos resultados da investigação.
Escolas médicas e hospitais universitários devem aplicar rigorosamente essa regra, e não podem ter negócios com empresas cujos produtos seus pesquisadores estudem. Por fim, raramente existe uma razão legítima para um médico aceitar doações de empresas farmacêuticas, mesmo pequenas, devendo pagar por suas reuniões e sua atualização.
Depois de tanta publicidade desfavorável, escolas médicas e associações profissionais começam a falar de controle dos conflitos de interesse, mas até agora a resposta tem sido morna. Constantemente se referem a "eventuais" conflitos de interesse, como se isso fosse diferente da realidade, e falam em divulgá-los e gerilos, não em proibi-los.
Em suma, parece haver o desejo de eliminar o cheiro de corrupção, mantendo o dinheiro. Quebrar a dependência da classe médica à indústria farmacêutica terá que ir além da criação de comissões e outros gestos. Exigirá a quebra de um padrão de comportamento extremamente lucrativo. Mas se a classe médica não puser fim a essa corrupção voluntariamente, perderá a confiança do público e o governo (não apenas o senador Grassley) imporá regulamentação. Ninguém na medicina quer isso.
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