À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

01/04/2010

Uma outra astronomia

Correia da Fonseca

Na passada sexta-feira, por volta da hora do jantar, estavam as três irmãs (a RTP, a SIC e a TVI, se as citarmos por ordem de idade como aliás é costume) entusiasmadíssimas a darem-nos as últimas notícias das eleições internas no PSD. Todas as três, assim comprovando uma vez mais a sua vocação para se constituírem em trindade não exactamente santíssima, o que seria um excesso, mas coincidindo muitas vezes com a Outra, mais antiga, pelo menos quando surgem como três entidades distintas mas uma só mensagem proclamada. Neste caso, a mensagem implícita e persistentemente mantida ao longo de vários dias foi que o PSD é a mais importante realidade nacional, pois de outro modo decerto não constituiria o assunto mais longamente tratado nos diversos noticiários e seus numerosos arredores. É certo que nesses dias também se falou muito do PEC, mas até quanto a esse tema o PSD se tornou uma escala obrigatória dos serviços informativos, opinativos e afins: o PSD iria votar contra, iria abster-se? Sabendo-se como os telespectadores são danadinhos para estes e outros jogos de adivinhação ou suposta previsão, para os quais de resto são longamente treinados pelo punhadão de concursos que todos os dias lhes são servidos, entende-se como essa espécie de suspense pode ter-lhes estimulado a atenção para a incomparável importância do PSD e do seu futuro líder na vida nacional.

Eclipse, eclipses

Estavam, pois, as três manas empenhadíssimas nessa tarefa quando, numa delas, surgiu em rodapé, sob a forma de legenda, uma daquelas notícias fadadas para que, sendo dadas assim, passem despercebidas a uma boa parte dos telespectadores naturalmente atraídos pelo que vai surgindo no ecrã do televisor e pelas palavras que complementam as imagens. Informava-nos a tal legenda de que o senhor Director-Geral da Saúde anunciara que a famosa Gripe A sofreu um «eclipse». Aparentemente era caso para alguma perplexidade, pois é sabido que o senhor Director-Geral não é propriamente um astrónomo, pelo que a palavra por ele usada parecia desajustada, mas uma outra legenda surgida poucos minutos depois ajudava a entender: nela se dizia que o mesmo senhor Director-Geral prevê que a eclipsada maleita reapareça no próximo Outono. Provavelmente devido ao modo discreto como a dupla informação era dada, não ficou esclarecido se o previsto retorno do que há um ano foi anunciado como um temível flagelo mas, afinal e felizmente, se revelou coisa relativamente leve, voltará com reforçados poderes letais ou se ficará mais pelo alarme social, como sucedeu em 2009, isto naturalmente sem menosprezo pelas dezenas de vítimas que mesmo assim fez. Quanto a este aspecto, decerto o senhor Director-Geral nada sabe. O que seguramente ele sabe, e também a generalidade dos cidadãos pode lembrar, é que algures no nosso País hão-de estar guardadas milhares de vacinas antigripais que foram compradas pelo Estado Português decerto a bom preço e até agora inutilmente, acontecendo que a sua inutilidade só pode ser neutralizada se a famosa Gripe A voltar e ainda se, voltando, justificar a aplicação da vacina, o que parece continuar duvidoso. Assim se entende claramente, pois, que o senhor Director-Geral, usando uma metáfora, se referia a uma outra astronomia. Mas essa peculiar astronomia, digamos assim para aceitarmos e prosseguirmos a imagem literária, projectava a nossa atenção para fora do acanhado sistema planetário que será o nosso País. É que entretanto circularam sérias e abundantes informações apontando para uma gigantesca fraude comercial/industrial que implicava a própria Organização Mundial de Saúde e que motivara enormes despesas inúteis a diversos estados, entre os quais o nosso, para mais num tempo em que a famigerada crise financeira afligia o mundo em geral e a Europa em particular. Desse suposto escândalo, desse suspeitado crime, nunca mais vi que a TV nos trouxesse notícias que, a haver, decerto não deveriam ser dadas apenas sob a forma discreta de uma legenda em rodapé. Dir-se-ia que também as informações acerca dessa possível infâmia entraram em «eclipse», como diria o senhor Director-Geral, mas neste caso sem perspectivas ou sinais de próxima desocultação. Bem se sabe que eventos como a eleição do novo patrãozinho do PSD são muito mais importantes para o nacional-televisismo. Ainda assim, porém, caberá uma nota de curiosidade e estranheza.

http://www.avante.pt/noticia.asp?id=33052&area=33

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