Dezenas de utentes 'dormem' às quintas-feiras à porta do centro de saúde para marcar uma consulta
Todas as quintas-feiras o ritual repete-se. Dezenas de utentes de Lordelo, no concelho de Paredes, passam a noite em frente à porta do centro de saúde para conseguir marcar uma consulta para a semana seguinte. As primeiras pessoas sem médico de família chegam pouco após as 23.00 e às 4.30 da madrugada já estão ocupadas mais de 20 das 40 vagas anunciadas numa folha de papel afixada no vidro.
Perante a necessidade dos utentes, há quem passe a noite ao relento para, pela manhã, vender a sua vaga a cinco euros. Quem não tem dinheiro para desperdiçar é obrigado a enfrentar o frio da madrugada e a seguir trabalhar mais de oito horas . Tudo isto não acontece numa aldeia do Portugal profundo, mas sim numa povoação a 30 quilómetros do Porto e num país onde em muitos centros já se marca consulta pela Net.
Maria Manuela Milheiro, 35 anos, foi a primeira a chegar. Eram 23.15 de quinta-feira da semana passada quando se sentou no pequeno banco de pedra colocado em frente à porta do centro de saúde de Lordelo. "O médico mandou-me fazer uns exames e eu vim mostrá-los", explicou. Natural de Lisboa, rumou a Lordelo há cerca de um ano e, desde essa data, não tem médico de família "Há duas semanas também vim a esta hora para ter uma consulta para a sexta-feira da semana seguinte. Isto não tem nada a ver com Lisboa. Lá, quando precisava, tinha consulta no mesmo dia", comparou.
Alzira Nunes Ferreira foi a companhia de Maria durante as primeiras horas de espera. Com 53 anos, 22 dos quais passados como viúva, esta empregada de um restaurante de Paços de Ferreira está de baixa médica por ter sido operada a um ombro, mas não foi por isso que ali estava às 23.30. "A minha neta nasceu no dia 9 de Novembro e nunca teve uma consulta . A mãe não tem médico de família e a minha médica e do meu filho disse que já tinha muita gente e não podia ficar com ela", contou. Como foi uma das primeiras a chegar, Alzira Nunes Ferreira aproveitou para ocupar logo três das 40 vagas anunciadas numa folha de papel colocada na porta. "Vou marcar uma consulta para mim e outra para o meu cunhado".
As duas mulheres confirmam que a acumulação de pessoas, em frente ao centro de saúde, na noite de quinta para sexta-feira é já um ritual. Dizem que muitas chegam a levar cobertores e almofadas para dormir. "Até há quem venha para aqui guardar vez e depois venda a sua vaga a cinco euros", denunciou Alzira.
O barulho provocado pelas conversas que se vão mantendo entre todos até às 8.00 , hora a que o centro abre as portas, é tal que os moradores dos prédios em redor chegam a chamar a GNR. Na quinta-feira, a patrulha passou pela Avenida dos Bombeiros Voluntários por volta das 2.00, mas sem parar o carro.
Gracinda Almeida, 45 anos e sem médico de família desde que há três anos trocou Rebordosa por Lordelo, confirma as reclamações dos moradores. Com o marido paralítico e com um historial clínico que engloba hipertensão, Gracinda tem de ser consultada, no mínimo, uma vez por mês. "Mas como não tenho médico, saio de casa, sempre à quinta-feira, às 3.00 para ter uma consulta na semana seguinte. Em média, há sempre 40, 50 pessoas à espera".
Na semana passada, Gracinda trouxe Maria Rosário Esteves com ela. Com 37 anos, esta algarvia estranha as diferenças entre o Norte e o Sul do país ."Em Faro, isto nunca acontecia. Aqui em Lordelo também tive médico, mas ele foi embora e há dois anos que tenho de vir de noite para ter uma consulta", protestou. Vítima de uma doença relacionada com o sistema nervoso, com problemas na vesícula e com as tensões altas, Maria Rosário já chegou a deixar os filhos de 4 e 9 anos a dormir sozinhos para ir marcar consulta.
Fernando Lopes não tem esse problema, mas vê-se obrigado a trabalhar um dia inteiro numa serração após uma noite em claro.
Com 57 anos, chegou ainda antes das 3.00, com um banco na mão e com a intenção de marcar consultas para a esposa e filha. "A minha mulher tem vários problemas e eu venho para aqui de três em três meses.
Com o passar da hora, o ritmo de chegada dos utentes aumenta e, às 3.10, António Coelho passou a ser o dono da nona vaga. "Todos os meses tenho de vir para aqui, pois há três anos que estou de baixa médica, que precisa de ser renovada mensalmente. Se não conseguir uma consulta perco os direitos", explica. Cinco minutos depois chegou Ernesto Santos. Já tinha passado a noite ao relento na semana anterior, mas uma falta ao trabalho do médico de recurso que lhe tinha calhado em sorte obrigou-o a repetir a experiência. "É sempre assim. Quando o médico falta no dia em que a consulta é marcada, tenho de voltar a passar a noite na fila de espera para poder marcar uma nova consulta", diz.
A fila vai aumentando e às 4.30 já está ocupada mais de metade das vagas. Todos se queixam da falta de médicos e garantem que esperar pela noite dentro é a única forma de ter uma consulta. Na próxima quinta-feira, o ritual irá, sem dúvida, repetir-se.
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