À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

04/02/2010

O mealheiro

Anabela Fino

O Governo/Sócrates II assinalou os 100 dias de governação em minoria de uma forma original: começou ao 99.º dia (terá sido por não lhe chegar um dia para a encenação?) com muito alarido a disfarçar a falta de substância, que é como quem diz com muita parra e pouca uva. Entre o anúncio do arranque das obras do novo Museu dos Coches – que por acaso já vai com vários meses de atraso – e a confissão para a tendência arquitectónica (?) do primeiro-ministro, um Conselho de Ministros extraordinário no Centro Cultural de Belém com muitas declarações públicas contraditórias sobre «as grandes obras» que vão «relançar a economia», uma reunião com «personalidades da sociedade civil», um «almoço com mulheres» em que por acaso só quatro não eram membros do Governo, e um «encontro com jovens», ficou para a posteridade o lançamento formal do incentivo à «poupança das famílias» através da criação da conta poupança/futuro, isto é, do bónus de 200€ por cada bebé dado à luz.
O esquema do mealheiro não tem nada que saber pois o «simplex» continua na ordem do dia, ainda que de momento não se saiba nada quanto aos «juros favoráveis» que a conta alegadamente terá, nem qual a bonificação a que dará direito em sede de IRS, nem sequer se o montante inicial será actualizado em função da inflação de forma a garantir que de ano para ano os tais 200€ não vão minguando e fazendo o caminho da discriminação entre os nascituros vindouros. Aberta a conta em nome da criança, que só a poderá movimentar ao fazer as 18 primaveras e caso tenha cumprido a escolaridade obrigatória (se é obrigatória faz sentido admitir que não seja cumprida?), cabe à família fazer crescer o bolo com depósitos à medida das respectivas bolsas.
Dando de barato (é uma forma de dizer) o que a banca pode lucrar com os 20 a 25 milhões de euros que se estima que a iniciativa custe ao Estado este ano, cabe perguntar que poupança/futuro pode fazer uma família de desempregados, numa altura em que o desemprego afecta já mais de 10 por cento da população e as perspectivas são para que continue a aumentar. Cabe também perguntar para que servem os 200€ depositados numa conta quando as jovens famílias se debatem no presente com problemas de sobrevivência. Cabe ainda perguntar que poupança se espera das jovens famílias quando se anuncia, como fez esta semana o economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), Olivier Blanchard, falando de Portugal, Espanha e Grécia, que para equilibrar as contas públicas estes países terão de assumir sacrifícios, como a redução de salários, para recuperar a competitividade. Cabe perguntar ainda, tomando a família em sentido lato, que poupança pode fazer a generalidade dos agregados quando minguam as pensões de reforma e restantes subsídios sociais.
O que está em causa não é, evidentemente, a poupança/futuro em si. O que está em causa é a hipocrisia de uma medida demagógica com que o Governo pretende tapar o sol com a peneira quando, em termos de opções políticas para o País, persiste em agravar as já mais que precárias condições de vida dos portugueses. O que os portugueses precisam, por mais simpático que seja, não é de um mealheiro. O que precisam é de ferramentas para o encher: o trabalho que cria riqueza. E quanto a isso, não foi preciso esperar 100 dias para perceber que este Governo nada tem a oferecer.

http://www.avante.pt/noticia.asp?id=32372&area=29

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