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31/03/2011

Há crise e crise…

Daniela Trollio

A crise capitalista global atinge duramente os trabalhadores e os povos de todo o mundo. Mas há que ver o que se passa do outro lado. Daniela Trollio deita um olhar sobre como vai o mundo dos ricos.
No início do terceiro ano de crise económica, já há registo de (quase) todas as estatísticas sobre o agravamento das condições sociais e laborais dos milhões de seres humanos que ganham o pão à custa do próprio trabalho.
Menor destaque têm tido as estatísticas relativas àqueles poucos que, neste mundo, detêm a riqueza.
Existem duas sociedades, a Merryl-Linch (adquirida há dois anos pelo Bank of America por 44 mil milhões de dólares) e a Capgemini (menos visível do que a anterior, mas dotada de 90.000 empregados espalhados pelo mundo) que se ocupam muito discretamente do assunto. Publicam os resultados dos seus estudos acerca da concentração da riqueza.
O estudo mais recente publicado data de 2010 e reporta-se a dados de 2009 e de anos anteriores. Publicaram também um estudo dedicado aos ricos da “região Ásia-Pacífico”.
Os dados que abordamos a seguir são extraídos desses relatórios (v. www.capgemini.com).
Antes de tudo, a definição das duas sociedades na quais os ricos se integram: HNWI (High Net Worth Individuals, indivíduos com valor líquido elevado); e UHNWI (Ultra High Net Worth Individuals, indivíduos com valor líquido super elevado).
A primeira diz respeito aos indivíduos que possuem um património superior ao milhão de dólares, excluindo a primeira habitação, os bens consumíveis, os bens coleccionáveis e os bens de consumo duradouro. Isto é, trata-se de avaliar aquilo que os ricos possuem efectivamente e os activos que possuem e possam ser fácil e rapidamente convertidos em dinheiro líquido. À segunda aplicam-se critérios idênticos, mas considerando um património superior a 30 milhões de dólares.
A partir destas definições, e segundo a Merryl-Linch e a Capgemini, existiam em todo o mundo, em 2005, 8,8 milhões de HNWI, número que aumentou para 9,5 no ano seguinte e para 10,1 em 2007. Em 2008, com a explosão da crise, o número de HNWI regressou aproximadamente ao nível de 2005, com 8,6 milhões em todo o mundo. Mas em 2010 já voltavam a ser 10 milhões, quase o mesmo nível de 2007, o ano anterior ao desencadear da crise.
A riqueza acumulada de todos os HNWI no mundo atinge os 33,4 milhões de milhões de dólares em 2005; 37,2 em 2006; 40,7 em 2007; baixa (!) depois em 2008 para 32,8. Em plena crise, em 2009, voltava atingir cerca 39 milhões de milhões de dólares. Para se ter uma noção da escala deste valor bastará dizer que representa cerca de três vezes o Produto Interno Líquido dos EUA.
Passemos ao grupo mais restrito, os UHNWI, possuidores de um património de mais de 30 milhões de dólares. Em 2009 incluía 93.100 indivíduos, ou seja, um super rico por cada 75.000 pessoas. O dado mais importante a registar é que nas mãos deste grupo concentra-se 35,5% de toda a riqueza reunida dos HNWI, embora os UHNWI representem apenas 0,9% em relação ao conjunto destes.
Estes 93.100 indivíduos possuem activos acumulados de cerca 13.845.000.000.000 dólares, ou seja, o equivalente ao Produto Interno Líquido de toda a Europa.
Os EUA (com cerca de 2,9 milhões), o Japão (com cerca de 1,7 milhões) e a Alemanha (com 861.000) concentram 53,5% do total de HNWI, segundo os dados actualizados de 2009, último ano analisado pela Merryl-Linch e a Capgemini.
Que dirão os dados de 2010, de momento ainda não disponíveis? Provavelmente, sempre a melhorar. É o que dizem a Merryl-Linch e a Capgemini, que prevêem que em 2013 a riqueza dos HNWI rondará os 48,5 milhões de milhões de dólares, ou seja, que terão aumentado em 60% as fortunas que possuíam em 2005. Outro dado que se pode destacar do relatório 2010 relativo à “região Ásia-Pacífico”: em 2009 a riqueza acumulada pelos HNWI na região regressara ao nível de 2007, anterior à eclosão da crise. Os HNWI aumentaram cerca de 25,8% em 2009 e a sua riqueza acumulada aumentou 30,9% em relação ao ano anterior. Em 2009, concentravam-se no Japão 54,6% de todos os HNWI da região e 40,3% da riqueza.
Vejamos em maior detalhe a situação nos EUA.
Em 1979 o 1% mais rico concentrava 9% do rendimento nacional. Hoje concentra 24%. O rendimento deste 1% era, em 1962, 25 vezes superior à média nacional. Hoje é 190 vezes superior. Os lucros das 500 corporations mais importantes aumentaram 141,4% e os rendimentos dos seus dirigentes cresceram 282% entre 1990 e 2010.
O mais recente relatório da sociedade financeira JP Morgan Chase é um bom exemplo: os lucros aumentaram 48% em relação a 2008 e, no primeiro quadrimestre de 2010, aumentaram 47% em relação ao mesmo período de 2009. Esta é apenas a ponta do iceberg. Os analistas estimam que os lucros das corporations tenham aumentado 27% no último quadrimestre de 2010.
O chefe de gabinete da Casa Branca, Rahm Emanuel, já o expressara claramente quando afirmou “não nos permitamos desbaratar uma boa crise, uma vez que a crescente catástrofe económica pode ser utilizada para a introdução de mudanças e para decidir sacrifícios que seriam inaceitáveis num contexto diferente”. Não é possível ser-se mais claro.
Dito por outras palavras, tudo o que escrevemos atrás demonstra uma coisa: a crise - de um sector do capital, o capital financeiro – foi rapidamente recuperada. A crise foi superada graças ao papel salvador de uma entidade que muitos – rapidamente desmentidos pela realidade – davam já por defunta, o Estado.
Estado que, depois de ter empenhado somas inimagináveis para impedir o colapso do sector financeiro colabora activamente, hoje como sempre, com o capital para – como diz o professor Michael Hudson – “utilizar a crise bancária (gerada por empréstimos imobiliários de má qualidade, não por custos demasiado elevados do trabalho) como pretexto para alterar a legislação, permitindo às empresas privadas e às entidades públicas despedir sem custos e com a máxima arbitrariedade, assim como reduzir as pensões e as despesas sociais, de modo a poder dar mais dinheiro aos bancos”.
Uma guerra de classe em toda a linha da qual, em nossa casa, os acontecimentos da Fiat constituem apenas o último elo de uma longa cadeia – por um lado – e o primeiro degrau numa escalada de eliminação qualquer direito que os trabalhadores ainda conservem tornando-os, mais do que precários, escravos assalariados.
Mas acendem-se focos de revolta em muitos, e inesperados lugares … da extraordinária recusa dos operários de Mirafiori (depois dos de Pomigliano) ao Mahgreb em chamas, não mais disposto a suportar fome, miséria e opressão.
Por muito que desagrade a Marchionne, a luta de classes está cada vez mais na ordem do dia sob todos os céus deste mundo.

http://www.odiario.info/?p=2025

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