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24/02/2011

A subversão da Constituição ao serviço das desigualdades

Anselmo Dias

«Os planos de desenvolvimento económico e social têm por objectivo promover o crescimento económico, o desenvolvimento harmonioso e integrado de sectores e regiões, a justa repartição individual e regional do produto nacional, a coordenação da política económica com as políticas social, educativa e cultural, a defesa do mundo rural, a preservação do equilíbrio ecológico, a defesa do ambiente e a qualidade de vida do povo português».
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O texto introdutório corresponde ao conteúdo integral do Artigo 90.º da lei fundamental do Estado português, que tem como órgãos de soberania o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais. Todos eles estão subordinados à Constituição, com especial destaque para o Presidente da República que, na sua tomada de posse, de acordo com o Artigo 127.º declara perante a Nação: «Juro por minha honra desempenhar fielmente as funções em que fico investido e defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa».
Uma jura é uma afirmação de alguém sobre a veracidade de um acto, passado ou futuro, envolvendo nela a sua honra e dignidade, valores deitados às urtigas por quem sabia, e sabe, que essa jura era, e é, um mero acto ritual e não uma coisa séria para levar a sério, tendo em conta que o desprezo por tal juramento não é abrangido nos crimes praticados pelo Presidente da República (vide Artigo 130.º da Constituição).
A permissividade política reinante e o oportunismo imposto pelo rotativismo governativo do PS, PSD e CDS-PP levaram à desvalorização do texto Constitucional, cujo incumprimento por parte destes partidos, incluindo os presidentes da República, formatou o País a um modelo de desenvolvimento económico e social com profundas desigualdades e assimetrias, quer pessoais, quer regionais.
Sobre tais desigualdades e assimetrias há milhentos dados.
Vejamos alguns deles decorrentes da leitura dos dados preliminares relativos às «Contas Regionais» divulgados recentemente pelo INE.

Riqueza criada

Em 2009, as previsões apontavam para um produto interno bruto (PIB) correspondente a cerca de 168 mil milhões de euros, valor inferior ao verificado em 2008 e muito semelhante ao de 2007, ou seja, o País está a patinar no que concerne ao crescimento da economia.
A um baixo crescimento económico, inferior em termos médios anuais a 1%, no decurso da última década, acresce o facto de esse crescimento não ter em conta as profundas diferenças regionais.
Com efeito, se relacionarmos o valor do Produto Interno Bruto com a respectiva população verificamos situações muito extremadas, exemplificada no facto de o PIB per capita na região da Grande Lisboa corresponder a 25 799 euros por habitante, enquanto na região da Serra da Estrela esse valor corresponde a 8 310 euros por habitante, assimetria que constitui um verdadeiro crime de lesa coesão nacional. Uma vergonha.
Os dados disponíveis em 2009 sugerem que o total da riqueza produzida em Portugal a dividir pelos 10 637 713 residentes orçava os 15 805 euros anuais.
Pois bem, se desagregarmos os dados pelas 30 regiões em que, estatisticamente, está dividido o País, apenas cinco superam esse valor: Grande Lisboa, Madeira, Alentejo Litoral, Algarve e Grande Porto.
No lado oposto, temos 10 regiões onde o PIB per capita é inferior a 11 000 euros: Cova da Beira, Beira Interior Norte, Minho-Lima, Alto Trás-os-Montes, Pinhal Interior Sul, Pinhal Interior Norte, Douro, Tâmega e Serra da Estrela.
Estamos a falar de uma vasta área territorial de 31 692 Km2, envolvendo cerca de 1 730 000 residentes, vítimas de um errado modelo de desenvolvimento, de baixos salários, de baixas reformas, de baixos índices de poder de compra, indicadores, todos eles, obviamente transversais a todo o território e a toda a população portuguesa, embora nas regiões atrás referidas sejam bem mais gravosas.
O País precisa de um outro modelo de desenvolvimento económico, associado a uma mais justa distribuição da riqueza criada.
O País precisa de mais agricultura e, sobretudo, de uma evidente (re)industrialização, (re)industrialização que assusta todos aqueles que vêem nessa opção uma perigosa proletarização da mão-de-obra portuguesa e uma perigosa concentração de trabalhadores, dado que o número médio de empregados nas unidades fabris é maior do que nos serviços.
Contudo, a (re)industrialização que se reclama não é aquela que a IKEA instalou em Portugal, nem tão pouco aquela destinada a aumentar a «sobre-capacidade» instalada na área do vestuário e do calçado, embora nestes sectores seja um imperativo nacional a manutenção do respectivo emprego.
Precisamos, sobretudo, de uma indústria associada à média e à alta tecnologia ao serviço da exportação e que incorpore um elevado valor acrescentado.
Precisamos, igualmente, de uma indústria ao serviço da substituição das importações, designadamente nos sectores com os maiores défices comerciais, ou seja, nos equipamentos e maquinaria, no material de transporte, nos produtos químicos e farmacêuticos, a par da implementação de métodos e tecnologias tendentes ao uso mais racional da energia, sem esquecer, naturalmente, toda a fileira alimentar, sectores que, por si só, representaram cerca de 40 mil milhões do total da importação de bens no decurso de 2010.
Precisamos, fundamentalmente, de uma indústria que altere a relação de trocas, evitando que para pagar dois (2) submarinos comprados aos alemães tenhamos de exportar 49 milhões de pares de sapatos. (Nota: quando o patrão da CIP e as vozes do dono falam de produtividade e de competitividade é desta relação de trocas que falam?).
Precisamos de uma indústria que valorize as nossas matérias-primas e os factores de produção internos, evitando o logro, tipo Quimonda, associada ao supra-sumo da tecnologia e considerada na altura o nosso maior exportador, embora tivesse de comprar a totalidade da matéria-prima à empresa-mãe e para a qual exportava a totalidade da sua produção.
Embora esta empresa tivesse criado emprego, não é com este modelo económico que o País pode singrar, ou seja, limitar-se a exportar produtos que haviam sido comprados ao estrangeiro e aos quais apenas foi introduzido um reduzido valor acrescentado.
A exigência na (re)industrialização do País é uma questão estratégica, associada, entre outros, aos seguintes factores:
- alcançar um maior equilíbrio na relação de trocas, por forma a evitar que, a título de exemplo, a importação de automóveis seja compensada com a exportação de centenas de milhões de camisas, calças, sapatos, cadeiras, mesas, colchões, rolhas e objectos similares, ou seja, introduzir na nossa produção mais ciência, investigação e tecnologia;
- localizar as novas indústrias nas regiões mais desfavorecidas, por forma a que todas aquelas com um PIB per capita inferior à média do País possam, prioritariamente, beneficiar do objectivo no desenvolvimento de um moderno sector produtivo tendente a curto e a médio prazo substituir as importações por produção nacional e promover as exportações na perspectiva de um maior equilíbrio na balança comercial.

A importância política no redimensionamento das empresas

A (re)industrialização que se reclama potencia, importa salientar, uma maior concentração de trabalhadores e uma mais eficaz organização dos mesmos, em oposição a um vigente tecido empresarial altamente fragmentado, como acontece actualmente em Portugal, onde, de acordo com os Quadros de Pessoal, por cada Km2 existem 12 empresas, sobretudo de serviços, com uma média de empregados de 3,5, factor nada despiciente no que concerne à formação da consciência de classe. (Nota: De acordo com os Quadros de Pessoal há mais trabalhadores por conta de outrem nos micro estabelecimentos – 1 a 4 empregados – do que em todos os estabelecimentos com mais de 250 trabalhadores).
Esta atomização empresarial, já de si complexa, ainda se tornaria mais complexa se atendêssemos às centenas de milhares de empresas familiares onde não existem trabalhadores por conta de outrem.
A este respeito convém dizer que o INE estima que o sector empresarial, incluindo sociedades e empresas individuais, compreende mais de um milhão de unidades!
Um imenso Portugal dos pequeninos!
Um hino à irracionalidade de um sistema que permitiu, na área do comércio e da hotelaria e restauração, a existência de um estabelecimento por 30 habitantes!
Um verdadeiro absurdo sustentado numa estrutura económica onde a agricultura, a pesca, a indústria extractiva, a indústria transformadora, a electricidade e a água, representam apenas 8% (oito por cento) do número de empresas inventariadas pelo INE.
Mas, atenção.
Não basta a exigência:
- de uma maior racionalidade nos investimentos nos vários sectores da economia;
- de valorização do desenvolvimento dos sectores ligados à indústria;
- do redimensionamento das empresas para fazer face à concorrência externa.
É preciso uma mais justa repartição da riqueza criada, ou seja, uma verdadeira melhoria do poder de compra dos trabalhadores.

A remuneração do trabalho

Em artigo anterior falámos dos salários ilíquidos dos trabalhadores por conta de outrem, referindo que os dados estatísticos diziam respeito a um universo de 3 018 395 pessoas.
Recentemente o INE tornou público um estudo, reportado a 2009, referindo a estrutura dos encargos salariais da população empregada, correspondente a um universo estimado em 5 014 200 pessoas.
Trata-se de estatísticas diferentes relativas a universos diferentes.
Os dados do INE integram quer os trabalhadores por conta de outrem, quer os trabalhadores por conta própria, factor que importa assinalar, na medida em que o trabalho por conta própria maximiza a média salarial, como é público e notório, designadamente no Algarve.
Esta explicação não ofusca, contudo, os dados do INE, tão dramáticos eles são.
Com efeito, se retirarmos aos encargos salariais o IRS e as contribuições, então vigentes, para a Segurança Social (23,5% por parte do patronato e 11% por parte dos trabalhadores) o resultado final traduz o salário líquido de quem está empregado, independentemente da sua natureza (trabalho por conta de outrem ou trabalho por conta própria).
Que salários são esses?
São salários líquidos que, em termos médios, vão de 934 euros na região da Grande Lisboa (Amadora, Cascais, Lisboa, Loures, Mafra, Odivelas, Oeiras, Sintra e V.F. de Xira), até aos 436 euros na região do Pinhal Interior Sul (Mação, Oleiros, Proença-a-Nova, Sertã e Vila de Rei).
Uma análise mais detalhada relativamente à média salarial líquida existente nas 30 regiões do País, permite-nos, de uma forma sintética, visualizar três grupos:
O primeiro grupo, correspondente a médias salariais líquidas superiores a 720 euros, engloba as seguintes regiões:
- Grande Lisboa, Grande Porto, Baixo Mondego, Pinhal Litoral, Médio Tejo, Algarve, Alentejo Litoral, Alentejo Central, Península de Setúbal e Madeira.
O segundo grupo, com médias salariais líquidas entre cerca de 600 a 720 euros, engloba as seguintes regiões:
- Lezíria do Tejo, Baixo Alentejo, Baixo Vouga, Açores, Alto Alentejo, Entre Douro e Vouga, Cávado, Oeste, Ave e Dão-Lafões.
O terceiro grupo, com médias inferiores a 600 euros, engloba as seguintes regiões:
- Minho-Lima, Pinhal Interior Norte, Serra da Estrela, Tâmega, Douro, Beira Interior Sul, Cova da Beira, Beira Interior Norte, Alto Trás-os-Montes e Pinhal Interior Sul.
Mas se, em vez desta estatística elaborada com base nos dados estimados pelo INE, analisarmos os dados do Ministério do Trabalho com base nos Quadros de Pessoal, desagregados pelos 308 concelhos do País, a dimensão dramática dos salários ainda se torna mais evidente.
Com efeito, numa centena de concelhos a retribuição ilíquida média das mulheres no sector secundário é inferior a 600 euros.
Eis uma estatística que, salvo algumas excepções, a generalidade dos economistas e fiscalistas com lugar cativo na comunicação social não refere.
Eis uma estatística que o dr. Medina Carreira devia converter num gráfico, assinalando o plano inclinado dos baixos salários.
Baixos salários que ainda se tornarão mais modestos se a subserviência do Governo português for ao ponto de anuir à pretensão de Angela Merkel de dissociar a actualização salarial da taxa de inflação, tendo em conta que aumentos nominais dos vencimentos abaixo do valor da inflação significam redução do poder de compra.

A luta por uma melhor distribuição da riqueza

A distribuição da riqueza, tomando como fórmula de cálculo a relação remuneração/PIB é, em Portugal, muito diferenciada e muito baixa relativamente à média europeia.
As situações mais gravosas, tomando como referência a fórmula atrás referida, dizem respeito às seguintes regiões: Alentejo Litoral, Baixo Alentejo, Madeira, Pinhal Interior Sul e Algarve.
Esta listagem é curiosa. Ou talvez não.
Repare-se que estamos a falar de duas regiões eminentemente turísticas (Madeira e Algarve), de uma região com importantes pólos industriais, como é o caso de Sines, de um distrito, Beja, certamente influenciado pelas minas da Somincor e de outros coutos mineiros e, finalmente, de uma região do interior, como é o caso do Pinhal Interior Sul, a região mais pobre deste conjunto.
Em todas estas regiões as percentagens das remunerações relativamente à riqueza criada são inferiores a 46%, com especial destaque para o Alentejo Litoral onde esse valor, o mais baixo das 30 regiões do País, é de 38,8%, valores que seriam mais baixos se os mesmos não incluíssem, como incluem, os encargos do patronato para a Segurança Social.
Na Madeira essa percentagem corresponde a 41,9%. No Algarve é de 45,5%.
Estamos a falar de três regiões consideradas ricas no contexto da riqueza criada em Portugal, onde o PIB per capita é de 20 800, 18 400 e 17 100 euros, valores correspondentes, respectivamente, à Madeira, ao Algarve e ao Alentejo Litoral.
Estamos, importa repetir, a falar das regiões mais ricas, imediatamente a seguir à Grande Lisboa, embora os salários sejam modestos o que deita por terra o argumento falacioso de que só é possível distribuir aquilo que se produz.
A ser verdade esta teoria então no Alentejo Litoral, na Madeira e no Algarve os vencimentos teriam de ser muito superiores, situação extensiva, naturalmente, a todo o território nacional, embora nestas três últimas regiões a margem reivindicativa, tendo em atenção a dimensão da riqueza criada, seja, potencialmente, maior.
Acrescem a estas regiões mais outras dezassete, todas elas abaixo da média nacional, abrangendo 1 772 500 empregados, realidade que não deixará de ser considerada prioritária nos processos reivindicativos.
Isto significa que, objectivamente, há fortes argumentos para se exigir melhores salários.
Isto significa que, objectivamente, há razões muito fortes para o desenvolvimento da luta.
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Fontes:
- Contas Regionais, INE, 12/1/2011;
- Empresas em Portugal, INE, 31/3/2010;
- Estudo de Eugénio Rosa, tornado público em 29/1/2011.

http://www.avante.pt/pt/1943/temas/112720/

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