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24/02/2011

Empresas públicas de transportes: A questão da dívida

Manuel Gouveia

Prepara o Governo a privatização das empresas públicas de transportes, para o que se desenvolve uma gigantesca e prolongada ofensiva ideológica, que assenta num debate superficial, recheado de slogans e sofismas.
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A «dívida das empresas públicas de transportes» é um dos argumentos usados regularmente na manipulação mediática da opinião pública. A apresentação de títulos bombásticos, como «Metro em falência técnica» ou «Empresas públicas devem 10 mil milhões», procura criar um quadro favorável à privatização. Para defender a nossa dama, poderíamos simplesmente lembrar que todas as empresas têm dívidas, e por exemplo, só a Galp tem uma dívida de 16 mil milhões construída depois de privatizada, e não vemos os mesmos ideólogos do sistema a reivindicar a sua nacionalização.
Como aprenderam com Goebels, esta campanha assenta num facto verdadeiro: a dimensão da dívida das empresas públicas de transportes é hoje um importante mecanismo de asfixia dessas empresas – em 2009, em 8 empresas (Refer, CP, Carris, Metro Porto, STCP, Transtejo, Metro Lisboa, TAP) essa dívida era de 10 379 milhões de euros, gerando encargos financeiros anuais superiores a 564 milhões de euros.
Mas todo o resto da campanha é uma grosseira manipulação, que escamoteia como se criou esta dívida, quem conduziu e beneficiou com este processo, e como as privatizações resolvem ou agravam o problema. Ou seja, se este endividamento reclama o prosseguimento de 34 anos de política de direita, com a privatização, ou se reclama uma radical ruptura com esta política, como o PCP propõe. Tentemos pois apresentar as questões centrais do processo de criação desta dívida:
1. A maior parte da dívida é responsabilidade da desorçamentação. Os sucessivos governos transferiram o grosso dos investimentos públicos – sobretudo de modernização das infraestruturas – para as empresas, retirando-os de onde estiveram durante muitos anos, o PIDDAC e o Orçamento do Estado, e obrigando as empresas a contrair empréstimos avultados. Conseguiram assim um objectivo imediato no quadro da política de redução do défice público imposto pela UE, já que dele desaparecia uma importante fatia do investimento. Mas esta desorçamentação serviu também o sector financeiro, garantindo-lhe clientes avalizados pelo Estado, sem risco, e que contribuiam para os lucros da banca. É o próprio Tribunal de Contas que demonstra, no caso de Metropolitano de Lisboa por exemplo, que são os empréstimos para a expansão da rede e os seus juros que explicam uma realidade financeira que, pela exploração, é cada vez mais positiva.
2. Um segundo factor para o crescimento desta dívida é o subfinanciamento. Ao longo dos anos o Estado decidiu (bem, mas cada vez menos) uma política de preços inferior aos custos de produção, pelas quais deveria pagar às empresas de transporte as correspondentes indemnizações compensatórias, que paga tarde e, no caso das públicas, por valores inferiores aos reais! Esta política, praticada durante mais de 20 anos, e com o diferencial sempre acrescido ao endividamento das empresas, é um forte contribuinte para a situação actual. Exemplificando, a CP, em 2010, recebeu de indemnizações compensatórias por todo o serviço internacional, nacional, regional e suburbano a verba de 34,7 milhões de euros enquanto a Fertagus (privada), por uma única linha suburbana, recebeu 9,7 milhões.
3. Esta dívida é ainda crescentemente amplificada pelos serviços da própria dívida, que obrigam as empresas a endividar-se para pagar os juros da dívida, suportando ainda juros cada vez mais elevados. Para 2011, só a CP, mesmo depois de todos os cortes projectados, prevê crescer a dívida em 200 milhões de euros, por contracção de novos empréstimos para fazer face à dívida e às amortizações.
4. Uma dívida pública que já está a suportar os lucros das concessões privadas. Como assume o próprio Tribunal de Contas, o Estado desvia verbas de milhões do passe social das públicas para as privadas, ao mesmo tempo que por via das indemnizações compensatórias assume o défice de exploração das privadas mas não das públicas. E porque o investimento sem o qual a exploração privada não seria possível foi todo assumido pelo Orçamento do Estado ou transferido para a dívida das empresas públicas, como podemos constatar na construção do Metro do Porto e na circulação ferroviária sobre o Rio Tejo, onde a exploração está já entregue aos privados. Mas quem pagou os investimentos realizados, quem pagou a construção das linhas de Metro no Porto, quem colocou a ferrovia na ponte, quem construiu as estações, quem comprou o material circulante? Este investimento, superior a três mil milhões de euros, só foi possível porque assumido pelas empresas públicas CP, REFER e Metro do Porto. Os operadores privados pagam agora um aluguer por estes serviços que, quando cobre as despesas de exploração, nunca cobre as despesas de investimento.

A privatização resolveria o problema da dívida?
Ou agravava-o, trazendo ainda novos problemas?

Como já acontece com a Fertagus e a ViaPorto, as privatizações transfeririam a exploração dos serviços de transporte em condições de gerar lucros para o sector privado, mas manteriam a dívida no sector público. Ficando o Estado ainda em piores condições para amortizar a dívida, ao transferir as receitas geradas pelo investimento público para os lucros do sector privado. Agravando ainda todos os problemas estruturais da nossa economia, ao subordinar um sector estratégico para toda a economia à busca de lucros de um grupo económico, com os impactos negativos a fazer-se sentir a montante e jusante do sector. E quando os capitais das empresas privadas são estrangeiros – e são-no tendencialmente em todas – a exportação desses lucros agrava ainda mais as consequências negativas para o país.

Concluindo:

1. A dimensão da dívida das empresas públicas de transportes não é o resultado inevitável de uma gestão pública, mas antes reflecte: a opção de desorçamentar milhares de milhões de euros de investimento público, passando-os para o passivo das empresas públicas; a opção de subfinanciar os défices de exploração das empresas públicas; a opção de recorrer a novo endividamento para pagar os encargos da dívida.
2. É a dívida pública que está – e irá – suportar as lucrativas concessões privadas: porque o investimento que permitiu concessionar a exploração está todo contido na dívida pública (empresas ou Estado) ou será todo transferido para lá; porque o Estado assume – na prática – o défice de exploração das privadas, o que não faz com nenhuma empresa pública.
3. A formação desta dívida teve dois grandes beneficiários, e a privatização serve os mesmos interesses – de classe: do sector financeiro, que recebe anualmente centenas de milhões de euros de juros de empréstimos avalizados pelo Estado; do capital interessado na apropriação deste sector estratégico, que viu o Estado assumir os investimentos sem os quais a exploração privada não seria rentável;
4. Esta dívida, e as opções que a criaram, tem responsáveis políticos, os partidos que há 34 anos vão rodando nos governos, e nas administrações das empresas públicas e privadas: PS, PSD e CDS.
5. As privatizações não resolverão o problema da dívida, pois esta não se esfumará no ar nem será privatizada, mas colocarão as futuras gerações com ainda maiores problemas em resolver este e outros problemas gerados pela política de reconstrução do capitalismo monopolista.
6. Apresentar as políticas em curso, de redução de salários e de serviços, como destinadas a resolver o problema financeiro destas empresas é pura demagogia. Aliás, qualquer subida de 0,1% na taxa de juro destas empresas transfere para os especuladores tudo o que está a ser roubado aos utentes e aos trabalhadores, e é muito!.
Em http://www.dorl.pcp.pt/images/dossier/1divida.pdf http://www.dorl.pcp.pt/images/dossier/1divida.pdf pode encontrar-se uma apresentação mais desenvolvida deste artigo, extensamente ilustrada com uma informação que é impossível reproduzir neste espaço.

http://www.avante.pt/pt/1943/trabalhadores/112795/ 

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