A nova tese teológica diz que a crise do euro foi ocasionada pelo descalabro orçamental dos países da Europa meridional. A sua verdadeira origem parece ter-se volatilizado: a irresponsabilidade financeira dos bancos e dos investidores. O verdadeiro contexto geral, que envolvia, tanto os estúpidos investimentos especulativos do capital obtido pela Alemanha graças à sua egoísta estratégia exportadora, ou os correspondentes investimentos dos bancos franceses, como a ladroagem espanhola ou os enganos orçamentais gregos, que eram citados nos media como sendo óbvios no Outono de 2008, foi substituído por um pesadelo que tem a dívida no centro.
A dívida pública criada pelos milhões dedicados a salvar os bancos, é apresentada como a causa de todos os males, mas já não se atribui nem aos bancos, nem às políticas neoliberais dos últimos vinte anos, que reduziram impostos a empresas e aos mais ricos da forma mais desavergonhada. Nos últimos doze anos, os impostos a empresas foram reduzidos na Europa em 12%. Na Alemanha a redução foi de 27% em vinte anos. Desde 1990, os impostos aos mais ricos baixaram 9,5% na Alemanha, 13% em França e Espanha e 6% em Itália…
Nada de tudo isso tem que ver com a dívida, contraída, diz-se, porque «vivemos acima das nossas possibilidades», pelo que, concluem, a crise deve combater-se com uma combinação de cortes sociais e do sector público, e de aumento de impostos ao consumo, o que prepara o terreno para a recessão e a estagnação.
Os jornalistas continuam lendo os mesmos relatórios dos bancos, os mesmos «peritos», e os mesmos meios de comunicação «de referência», que demonstraram a sua completa incompetência, o seu cinismo, ou as duas coisas ao mesmo tempo, antes da crise. Para valorizar as mensagens que hoje nos estão lançando, há simplesmente que recordar os disparates que nos diziam antes da quebra, quando o «serviço de estudos» do Deutsche Bank assegurava, por exemplo, que; «em Espanha, a festa continuará até 2020», ou quando San Rodrigo Rato, considerado pouco menos que um génio pela direita de Madrid, proclamava, na qualidade de Director do FMI, durante a sua visita a Pequim em vésperas da quebra, a «excelente saúde» da economia mundial.
Para compreender a actual política europeia, há que recordar quem são os seus cozinheiros. Por exemplo, em matéria de «regulação dos mercados financeiros», ou seja, as medidas que devem ser introduzidas como paliativo para a economia de casino na Europa, a Comissão Europeia se assessora com 19 «grupos de peritos», entre os quais se contam 229 «representantes da indústria financeira», ou seja, lobbystas dos bancos, que têm uma maioria de quatro contra um respectivamente aos peritos procedentes das universidades, dos sindicatos ou da sociedade civil, assinala a Netzwerk Alter-UE.
A linha política da disciplina fiscal, da redução do défice, da dívida, das dimensões do governo e do sector público, que nos governou antes da crise, esgrime-se agora como programa para sair dela. Trata-se de reduzir o Estado de bem-estar, cortar os direitos laborais, debilitar os sindicatos, reduzir os salários e aumentar a exploração para, por fim, aumentar os lucros das classes empresariais. Muitos advertem que esta linha condenará à recessão e à estagnação países como a Grécia, Espanha, Portugal e talvez outros.
A impressão é clara: a direita utiliza a crise para impor o seu programa a nível global, e parece que com isso nos arrasta para um segundo estoiro, mas o seu líder na Europa já não são os Estados Unidos, mas a Alemanha, um país que quer, «aproveitar a crise para se ver fortalecida no G-20», como diz a Chanceler Angela Merkel.
Numa entrevista ao Financial Times em Maio passado, o Ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, explicava de forma muito clara o programa continental: cada país deve usar a crise para realizar as «reformas» com que sempre sonharam os seus empresários: cortar nas despesas sociais e no subsídio de desemprego na Alemanha, tirar aos trabalhadores franceses os seus supostos privilégios derivados da «rigidez do sistema laboral», acabar com o sector público do Sul da Itália… A respeito da Espanha, dizia Schäuble naquela entrevista, «deve resolver o problema do seu mercado laboral demasiado regulado». «Cada país tem os seus problemas específicos e dispõe da sua própria margem orçamental de manobra», resumia.
O problema consiste em como manter certa estabilidade e consenso social na aplicação desta linha, tendo em conta que a imensa maioria da população não é composta por empresários, mas antes por assalariados e utentes do Estado social. Em Berlim fala-se nestes dias do Professor Herfried Münkler, da Universidad Humboldt, um «historiador das ideias» que afirma, na revista da Sociedade Alemã de Política Externa (DGAP), que não nos faria mal um pouco de ditadura e reabilita, «a necessidade de uma solução Bonapartista» para a crise na Europa, enquanto outro «pensador», o filósofo de amplo consumo televisivo, Peter Sloterdijk, denuncia no seu último livro a «ditadura do Estado social» e do sistema impositivo. São mensagens do mesmo teor das que lançou o Presidente da Comissão Europeia, José Durão Barroso, na reunião que manteve em Junho com representantes sindicais europeus: «se não se aplicarem os pacotes de medidas de austeridade nos países mais endividados poderá desaparecer a democracia como a conhecemos actualmente», disse Barroso, segundo palavras do sindicalista John Monks.
Bonapartismo? Ditadura? No mundo desenvolvido não são necessários tais recursos. Como qualificar a forçada volta de Zapatero à Espanha, ou dos socialistas gregos, obrigados ambos em questão de horas, a praticar o contrário do que foi o seu discurso ou as suas promessas eleitorais? Algo muito parecido a um golpe de estado derrubou, em 24 de Junho, o primeiro ministro australiano Kevin Rudd, que tinha entrado em choque com os interesses do poderoso sector mineiro, ao qual pretendia impor um milionário «Imposto aos super-lucros com recursos» (RSPT). A imprensa de Robert Murdoch, que controla o grosso da informação no país, havia levado a cabo uma agressiva campanha contra o imposto, apresentado como uma ameaça a ao investimento e ao emprego. Rudd também apoiava uma perspectiva de retirada do Afeganistão, em dois ou quatro anos, do contingente australiano ali destacado, que era apoiada por 61% dos australianos e irritava Washington. A sucessora de Kudd, Julia Gillard, alcandorada ao cargo de primeira ministra pelo golpe no seio do Partido Trabalhista, voltou atrás com tudo. Ninguém se mexeu na Austrália, nem em Espanha. Só a Grécia, com as suas cinco greves gerais traz, de momento, algo ao conceito «democracia», mas o filme ainda não acabou e ninguém pode prever por donde irá, digamos, no ano que vem.
Adiantando-se a qualquer eventual e complicado intento, por exemplo dos gregos, de reduzir unilateralmente a sua dívida, como fizeram os argentinos (que não tinham o inconveniente de estar sujeitos ao câmbio do Euro), a Alemanha já está urdindo uma estratégia para Setembro. Segundo Der Spiegel a Chanceler Angela Merkel e o seu ministro Schäuble encomendaram já um projecto de medidas para o caso de o pacote de ajuda ao euro se mostrar insuficiente para tirar de apuros os bancos europeus e as economias nacionais. Tratar-se-ia do seguinte:
A troco da reestruturação da dívida, tirar aos governos de países como Grécia, Portugal, Espanha e outros, o pouco que lhes resta de soberania, criando um directório com amplos poderes, com base em Berlim, que governe amplos aspectos das suas economias e políticas orçamentais. Este cenário, assinala o documento, “requereria restrições da soberania” e colocaria a política orçamental sob controlo de, “um indivíduo, ou grupo de indivíduos, familiarizados com as características regionais da nação devedora”, e que seriam nomeados pela Alemanha entre um comité de peritos.
O Ministro Schäuble compara os países com empresas. «Quando uma empresa entra em falencia, os credores devem renunciar a uma parte dos seus créditoss. O mesmo se deve aplicar em casos de falência nacional”, diz. O pequeno inconveniente é que tal plano “colocaria a nação devedora numa posição de submissão colonial”, observa o Financial Times. E o colonialismo e a paz nunca se deram bem. A torpeza do governo alemão na sua nova ânsia de governar a Europa e sair globalmente fortalecida da crise, parece alcançar níveis antes insuspeitados.
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