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10/03/2010

Ensaios com OGM em Consulta Pública

Consulta Pública: Ensaios com organismos geneticamente modificados OGM

Nos termos e para efeitos do preceituado no n.º 1 do art. 11.º do Decreto-Lei n.º 72/2003, de 10 de Abril, encontra-se disponível para Consulta Pública, durante 30 dias, de 26 de Fevereiro a 28 de Março de 2010, a notificação:

B/PT/10/01 – Notificação para um período de ensaios de 3 anos, para registo de variedades do milho geneticamente modificado NK603, tolerante a herbicidas que contêm glifosato nos seguintes locais:

- Centro de Documentação
Agência Portuguesa do Ambiente
Rua da Murgueira, 9/9A – Zambujal
Apartado 7585
+2611-865 Amadora

- Câmara Municipal de Monforte
Praça da República – Apartado 4
7450-115 Monforte

- Câmara Municipal de Monção
Largo de Camões
4950-444 Monção

No âmbito do processo da Consulta Pública serão consideradas e apreciadas todas as exposições que, apresentadas por escrito ou via correio electrónico para o mail cpogm@apambiente.pt especificamente se relacionem com o projecto em avaliação, devendo ser dirigidas ao Director-Geral da Agência Portuguesa do Ambiente, até à data do termo da Consulta Pública.

Copia o texto abaixo e envia para:

cpogm@apambiente.pt

Para quem não está no facebook, o texto está aqui abaixo:

PARECER NO ÂMBITO DA CONSULTA PÚBLICA
SOBRE ENSAIOS COM ORGANISMOS GENETICAMENTE MODIFICADOS

Relativa à notificação: B/PT/09/01 – milho geneticamente modificado NK 603 tolerante a
herbicidas que contêm glifosato
Com incidência nos concelhos: Monforte e Monção

Caro Sr. Director-Geral da Agência Portuguesa do Ambiente

Elencam-se a seguir algumas questões que justificam não só o alargamento da
consulta pública como a reprovação deste pedido de cultivo experimental

Ponto 1
A Assembleia Municipal de Monforte, reunida a 29 de Fevereiro de 2008, aprovou por unanimidade, a criação de uma "Zona Livre de Cultivo de Variedades Geneticamente Modificadas" em todo o território do seu Município. Esta decisão surge em reacção à proposta da Syngenta e da Monsanto da realização de ensaios experimentais de transgénicos. Esta vontade democraticamente expressa deve ser respeitada.

Ponto 2
A avaliação pela Autoridade Europeia de Segurança Alimentar (EFSA) do NK 603 do ponto de
vista do cultivo está em curso neste momento, e a segurança ambiental desta variedade não está estabelecida a nível europeu. Por outro lado, as provas (científicas ou não) apresentadas pela Monsanto quanto à interacção do NK 603 com o meio abiótico e espécies não alvo são nulas – simplesmente não estão lá. Na notificação, todas as afirmações que pretendem garantir essa segurança são vagas ou ambíguas:

– "...não existe qualquer razão a priori para esperar que quaisquer efeitos adversos possam ocorrer..."
– "...não apresenta um mecanismo concebível para causar efeitos adversos..."
– "...não existe razão a priori para suspeitar..."
– "...não é de esperar um impacto nocivo..."
– "...não são de esperar mudanças..."

Existe uma ausência gritante de informação credível e substantiva sobre a real natureza da
interacção ambiental, e eventual impacto. Não são apresentados nenhuns dados que
fundamentem a segurança ecológica das proteínas EPSPS em geral, nem da CP4 EPSPS em
particular, e ainda menos da versão da CP4 EPSPS que foi usada no NK 603 (que está
modificada em relação à original por causa da preferência de codões ser diferente entre bactérias e plantas). Ao todo o NK 603 apresenta um mínimo de 11 pedaços de DNA de diferentes origens, alinhados numa sequência que nunca existiu na Natureza, e que justificam uma análise muito mais cuidada do que a apresentada. Além disso, a Monsanto assume que a ausência de provas corresponde a prova de ausência de riscos:

– "...Não são conhecidas quaisquer interacções negativas com o ambiente abiótico..."
– "...desde a primeira comercialização [...] não foram apresentadas quaisquer provas de efeitos adversos..."

Mas tudo isto é anti-científico e ilegal. A Monsanto é obrigada a demonstrar concreta e
inequivocamente a segurança ambiental do NK603, e não o faz. Note-se que a Directiva 2001/18 sobre libertação de transgénicos determina especificamente que as autorizações só podem acontecer "por etapas", e apenas na medida em que a etapa anterior tenha demonstrado a necessária segurança. Começar com testes para outros fins antes de fazer testes quanto à segurança ambiental (que obviamente ainda não devem ter sido feitos, visto que nenhum é apresentado) corresponde a pôr o carro à frente dos bois e é ilegal. Esta razão por si só já é suficiente para levar à não autorização dos ensaios.

Ponto 3
O NK 603 também contém o promotor 35S do vírus do mosaico da couve-flor (CaMV). Este
promotor tem um hotspot de recombinação (Plant J. 17:591-601 (1999)) que facilita a
transferência horizontal de DNA transgénico e torna as variedades transgénicas instáveis (3).
Adicionalmente, para além de activo em plantas, este promotor é igualmente activo em animais (IUBMB Life 48:459-67 (1999)), incluindo células humanas (Eur. Food Res. Technol. 222:185-193 (2006)). Esta realidade configura o potencial de activação de vírus inactivos e o desencadear de processos tumorais com repercussões em diferentes espécies, incluindo a nossa.

Ponto 4
O NK 603 foi obtido por transformação biolística (aceleração de partículas). Este processo é
reconhecidamente mutagénico (Biotech. Gen. Eng. Rev. 23:209-234 (2006), Plant J. 32:433–445 (2002)) e, no caso do NK 603, já foram detectados fragmentos inesperados de 217 bp e de 301 (ou 305, segundo a notificação) bp, para além de uma delecção de 3 bp no DNA do milho (Crop Sci. 45:329-339 (2005)). Os fragmentos de 217 e de 305 bp podem dar origem a novas proteínas ou a RNAi (RNA de interferência), mas a sua eventual funcionalidade não é analisada pela empresa. No entanto o silenciamento genético pós-transcrição por pequenas moléculas de RNA é um fenómeno já estabelecido, tendo a sua descoberta garantido um prémio Nobel. Fica assim por esclarecer que efeitos pleiotrópicos poderão ter surgido devido à presença destes dois fragmentos inesperados. Uma coisa é certa: estes fragmentos são funcionais e transcritos para RNA (The EFSA Journal 10:1-13 (2003)), ao contrário do que a Monsanto refere na notificação. Ainda mais grave, um deles atravessa um codão de Stop (onde a RNA polimerase devia parar) sem que tal impeça a transcrição. Dentro da mesma linha é fácil de compreender que pelo menos o local no genoma do milho onde se deu a inserção do segmento transgénico deve igualmente ser analisado: pode ter sido desactivado um ou mais genes, ou activado sequências até aí inactivas, cuja expressão pode acarretar uma interferência ambiental significativa em determinadas circunstâncias. Como a Monsanto não apresenta estudos de genómica ou de proteómica, e os Southerns realizados não permitem detectar estas disfunções, estas questões têm ainda de ser respondidas antes de qualquer decisão sobre a realização dos ensaios em causa.

Ponto 5
Em lugar algum da notificação é referida a questão da apicultura, abelhas e colmeias. De acordo com Sabugosa-Madeira et al. (Journal of Apicultural Research 46(1):57–58, 2007) uma abelha pode abranger zonas distantes 12 km e uma única colmeia pode colher pólen de uma área de mais de 100 km2. Ainda segundo os mesmos autores, o pólen de milho pode atingir 90% do pólen na dieta das abelhas ao longo de várias semanas, mesmo quando os campos de milho estão distantes. Assim, uma vez que não é feito nenhum levantamento da actividade apícola nas duas regiões em causa, não está salvaguardada nem parece existir qualquer preocupação com a introdução de pólen transgénico não autorizado (note-se que a autorização 2004/643/EC da Comissão de 19 de Julho de 2004 se refere apenas aos grãos do milho) na cadeia alimentar humana através do mel e outros produtos da colmeia. Além disso, ao invés do que a legislação em vigor obriga, não é apresentada qualquer demonstração, muito menos científica, de que a presença no ecossistema deste pólen, que em média pode conter concentrações da proteína transgénica CP4 EPSPS mais de 300% acima do que se encontra nas folhas (de acordo com os números apresentados pela Monsanto na sua notificação), não cause impacto significativo no ecossistema da colmeia ou na teia alimentar selvagem, nomeadamente em insectos palinófagos.
Estas falhas são inaceitáveis e inviabilizam qualquer aprovação dos ensaios.

Ponto 6
Da mesma forma não há referência nem salvaguarda para as variedades de milho não híbrido tradicional. O erro humano tem conduzido a numerosíssimos escândalos de contaminação (Starlink, Bt10, LL62, LL602, etc) mesmo quando as variedades transgénicas ainda não foram aprovadas para cultivo comercial e se encontram apenas em desenvolvimento experimental. É pois objectivo e claro que o pólen não é a única fonte de contaminação — muito embora nesta notificação ele seja tratado como tal — e por isso qualquer aprovação destes ensaios tem de ser precedida por um levantamento exaustivo das variedades tradicionais das regiões em causa e o delineamento de um plano de monitorização por forma a garantir a sua total integridade, independentemente de serem cultivadas a mais de 400 metros de distância. Note-se que a literatura científica identificou já polinização cruzada a distâncias muito superiores a 400 m, nomeadamente até 4 mil metros, pelo menos em parte devida à existência de correntes convectivas verticais na atmosfera que permitem o transporte de pólen viável por distâncias muito superiores ao estimado por estudos de avaliação realizados apenas ao nível do solo (4, 5). Sem esse plano de monitorização a biodiversidade agrícola pode ser posta em causa, o que vai ao arrepio do exigido pela lei.

Ponto 7
Na notificação a Monsanto afirma que a proteína transgénica não confere uma vantagem
detectável a outras plantas ou microrganismos. No entanto, no contexto agrícola em que a
utilização de herbicidas à base de glifosato é uma realidade, essa proteína confere uma vantagem selectiva evidente que a Monsanto opta por não reconhecer nem analisar. É expectável que a transferência horizontal do gene cp4 epsps conduza ao aparecimento de resistências por parte de ervas daninhas (Pest Manag Sci 61:301-311 (2005)), com óbvias consequências para o ecossistema agrícola. A gestão deste risco não é considerada na notificação em causa.

Ponto 8
Qualquer actividade de risco deve estar sujeita a uma caução ou seguro respectivo. Não está
previsto, mas é exigível, o estabelecimento de um seguro de risco ambiental para estes ensaios.

Ponto 9
Em geral os planos de monitorização apresentados não passam de pálidas sombras do exigível à luz da legislação. Toda a monitorização proposta está baseada exclusivamente na observação visual do terreno de testes e da cultura, não estando prevista qualquer análise laboratorial em termos químicos ou biológicos nem acompanhamento dos terrenos circundantes. Como é que se detectam eventuais efeitos inesperados se o único instrumento de detecção é o olho nu, com âmbito circunscrito ao terreno do ensaio?

Ponto 10
Como medida de segurança as empresas propõem-se enterrar as culturas no final de cada ciclo de testes. No entanto nada é demonstrado sobre a meia vida e mecanismos de degradação da proteína transgénica no ecossistema do solo, recorrendo a empresa ao conceito – totalmente não científico – da equivalência substancial. Aliás, esse conceito não pode de todo aplicar-se ao NK 603 uma vez que já foram detectadas diferenças estatisticamente significativas relativamente ao seu controlo convencional, por exemplo quanto ao teor em ácido esteárico (The EFSA Journal 10:1-13 (2003)). Do ponto de vista legal, e face a esta ausência de garantias científicas de segurança e inocuidade, a metodologia de tratamento pós-libertação dos locais em causa não pode ser aprovada.

Ponto 11
O NK 603 é tolerante ao herbicida glifosato. Isso vai irremediavelmente conduzir a uma maior utilização deste químico que, em estudos recentes de Séralini et al. (Arch. Environ. Contam. Toxicol. 53:126-133 (2007); Chem. Res. Toxicol. 22:97-105 (2009)), se verificou ser um desregulador hormonal, para além de induzir directamente a morte celular em células humanas. A introdução no ambiente deste químico, seja durante os testes, seja posteriormente em culturas comerciais, representa um perigo de saúde pública que deve ser evitado. Além disso, embora a aplicação do glifosato seja foliar, ele é libertado na rizosfera devido a translocação directa para as raízes (J Plant Dis Prot XX:963-969 (2006)), onde pode interferir com plantas não alvo e induzir um aumento de certas doenças. Acrescente-se também que os efeitos letais do glifosato já foram identificados directamente em animais, nomeadamente anfíbios (Ecological Appl. 15:1118-1124 (2005)).

Ponto 12
A notificação não especifica quais os herbicidas à base de glifosato que vão ser aplicados,
referindo apenas que alguns deles não estão autorizados em Portugal. Não é conhecida a
dosagem do princípio activo, nem a composição em termos de adjuvantes. Isso significa que não é possível avaliar com rigor o real impacto do cultivo do NK 603, porque esse risco está
indissoluvelmente ligado aos químicos que lhe são aplicados. Enquanto essa informação não
estiver disponível a consulta pública não pode ser considerada cumprida e deve ser alargada no tempo.

Ponto 13
No tocante às implicações ambientais a notificação faz algumas afirmações extraordinárias. Por exemplo: "Não se identificou nenhuma característica das plantas NK603 que possa causar efeitos ecológicos adversos..." muito embora esta variedade implique a aplicação de um herbicida reconhecidamente tóxico. Também refere que o "impacto ecológico das técnicas culturais, de gestão e de colheita aplicadas nestes ensaios é considerado idêntico ao cultivo de outro milho qualquer" para dizer logo a seguir que afinal não é idêntico: "Espera-se que a comercialização do milho NK603 na Europa tenha um impacto positivo nas práticas agronómicas actuais nesta cultura, com benefícios [...] para o meio ambiente." Na tentativa de demonstrar o indemonstrável, a Monsanto tropeça em si própria.

Ponto 14
A Monsanto não é uma empresa de confiança. Ao longo dos anos tem vindo a acumular um
historial inacreditável de corrupção, envenenamento e mentira, a tal ponto que um dos tribunais americanos que já a condenou classificou o seu comportamento como "de natureza tão inacreditável e a um nível tão extremo que ultrapassa todos os limites da decência e deve ser visto como horrível e liminarmente intolerável numa sociedade civilizada". (1) Noutro caso a empresa foi obrigada em tribunal a pagar 1,5 milhões de dólares por ter subornado governantes
indonésios na tentativa de mudar uma lei que obrigava à avaliação de impacto ambiental antes de o cultivo de transgénicos ser autorizado. (2)

Conclusão
Pelo exposto, a autorização dos ensaios solicitados nas presentes condições não é legal nem
científicamente justificável. A Agência Portuguesa do Ambiente deverá alargar a consulta pública
após divulgação da informação identificada acima como estando em falta, para além de assumir
junto das empresas as exigências e obrigações legais aqui explicitadas.

Referências
(1) A citação do tribunal está em www.ethicalinvesting.com/m
onsanto/news/10074.htm
(2) Ver por exemplo notícia em
www.bloomberg.com/apps/news?pid=20601087&sid=aNXa75VKO5zQ&refer=home
(3) Collonier et al. Characterization of commercial GMO inserts: a source of useful material to
study genome fluidity. ICPMB: VII International Congress for Plant Molecular Biology, Barcelona,
2003/06/23-28.
(4) Bannert, M (2006). Simulation of transgenic pollen dispersal by use of different grain colour
maize. PhD thesis, Swiss Federal Institute of Technology, Zürich.
(5) Brunet et al. (2003) Evidence for long-range transport of viable maize pollen. Proceedings, The
1st European Conference on the Co-existence of Genetically Modified Crops with Conventional
and Organic Crops.

http://pt.indymedia.org/conteudo/newswire/767

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