Anselmo Dias
A par de assistirmos, nos dias que correm, a uma quase omnipresença televisiva de eventos ligados à moda, na versão dos trapinhos, dos adereços e dos perfumes, assistimos também a uma outra moda, esta de natureza ideológica, bem mais influente do que a atrás referida, fomentada pelos ideólogos do sistema vigente, divulgada pelo uso repetitivo de palavras e conceitos e vendida pela retórica e propaganda de José Sócrates, não só com o objectivo de, mil vezes repetidas formatar a opinião pública ao conformismo e à resignação, como criar a ilusão de um pavoneado optimismo balofo.
Acresce ao uso repetido de certas palavras o uso repetido de certos conceitos quando os mesmos, à pala de ideias abstractas e de mera representação mental, mais não constituem do que indexar o pensamento das pessoas às ideias dominantes das classes dominantes.
Quem é que não sabe do esforço da nossa «intelligentia» em riscar do léxico as palavras que melhor caracterizam a existência de uma sociedade dividida em classes antagónicas, com o objectivo de incutir a ideia de que a evolução das sociedades se processa por acções gradualistas e reformistas e não por movimentos de ruptura?
Quem, a este propósito, não se recorda do esforço da direita em transformar a palavra «trabalhador» em «colaborador»?
A aculturação da palavra «trabalhador» tem, em nossa opinião, o objectivo de associar o interesse deste àquele que detém os meios de produção, como se todos fossem «bons rapazes», com idênticos propósitos e objectivos coincidentes e onde, a haver, os conflitos devem ser resolvidos pela via do diálogo e exclusivamente por esta via.
Numa sociedade onde apenas existissem «colaboradores», que sentido teriam os sindicatos e os partidos comunistas?
Luta de classes...? credo!
Quem, também, a este propósito, não se recorda do esforço da direita em transformar a palavra «patrão» numa palavra mais soft e que não tenha uma carga negativa associada àquele que explora quem é obrigado a vender a sua força de trabalho?
Quem, ainda a este propósito, não sabe que está em curso uma moda na utilização de palavras derivadas de «empreender» e de «evitável», transformando-as em «empreendedorismo» e «inevitabilidade» com um variado conjunto de objectivos, de que destacamos os seguintes:
– mitificar a iniciativa privada e o esforço individual, como o alfa e o ómega, do desenvolvimento das forças produtivas;
– induzir a ideia de que está ao alcance de todos a possibilidade de terem os seus próprios meios de produção, e, por essa via, serem todos empresários;
– incutir nas pessoas que não há outra via, no contexto da crise do sistema capitalista, que não seja dar rédea solta àqueles que advogam as deslocalizações, o encerramento fraudulento das empresas, os contratos a prazo, os recibos verdes, a precariedade e as conhecidas práticas de recriação da praça de jorna;
– criar um clima de resignação de que é preferível haver emprego com redução salarial do que haver desemprego.
A «inevitabilidade» e o «empreendedorismo» estão, pois, na moda. Por razões de espaço trataremos apenas do «empreendedorismo», para cuja compreensão nada melhor do que analisar a prática.
Vamos a ela.
O «empreendedorismo» traduzido na prática
Em Portugal, de acordo com os dados constantes dos Quadros de Pessoal publicados em Outubro de 2009 (página 75) foram criados, em função dos dados fornecidos ao MTSS, 19 297 empresas.
Por sectores, esse universo, em número de empresas, está assim dividido:
– comércio: 5074; serviços diversos: 4434; construção civil e obras públicas: 3128; alojamento, restauração e similares: 2848; indústrias extractivas, transformadoras, energia e água: 1792; transportes e armazenamento: 596; saúde e acção social: 531; agricultura, produção animal, floresta e pescas: 438; educação: 230; e actividades artísticas, de espectáculos, desportivas e recreativas: 226.
Estes dados permitem concluir que 64% das empresas criadas se referem a serviços diversos, comércio, alojamento, restauração e similares, enquanto que:
– na área da agricultura, produção animal, floresta e pescas, a percentagem é de 2,3%;
– na área das indústrias extractivas, transformadoras, energia e água, a percentagem é de 9,3%.!!!
Num país com um défice alimentar extremamente gravoso a diminuta percentagem de novas empresas criadas no sector da agricultura, da produção animal, das florestas e das pescas, tipifica bem o modelo de desenvolvimento que o PS e a restante direita, acólitados pelos «empreendedores», pretendem para o nosso País, o qual, pelo desinvestimento na área produtiva, foi obrigado a comprar no estrangeiro, em 2008, cerca de 2 mil milhões de euros em produtos do reino vegetal e, no ano seguinte, cerca de mil milhões de euros em pescado.
Num país com um défice extremamente vultuoso na balança comercial no âmbito das indústrias transformadoras, a percentagem de novas empresas criadas nesta área é esclarecedora quanto à importância residual que o PS e a restante direita, acolitados pelos «empreendedores», dão à produção de bens transaccionáveis, não só quanto à necessidade de substituir as importações pela produção nacional, como incentivar a exportação de produtos com média e elevada incorporação tecnológica, questões, a nosso ver, estratégicas, tendo em conta que o défice da balança comercial, em 2008, atingiu a preocupante verba de 14 814 milhões de euros!
Num país em que metade das empresas criadas se referem a comércio e a serviços diversos está tudo dito, não só quanto ao enorme bluff que constitui o conceito em voga, o «empreendedorismo», como ao desastroso futuro para ao qual ele nos remete, caso se mantenha a actual matriz económica.
Acresce a esta situação uma outra que diz respeito à criação de postos de trabalho.
Para que não restem dúvidas a este respeito basta dizer que 84% das empresas criadas pelos nossos «empreendedores» têm menos de 5 trabalhadores, empresas, muitas delas, verdadeiras chafaricas, destinadas a falir e a desaparecer em três tempos, isto sem falar da criação daquelas destinadas a suportar o carrossel das facturas falsas, com tudo o que isso tem de negativo no Orçamento do Estado.
Procurar, neste universo, grandes empresas industriais estáveis a praticar salários acima da média é quase o mesmo que procurar uma agulha no palheiro, na medida em que apenas são criadas 2 unidades com mais de 100 trabalhadores por cada 1000 novas empresas criadas.
Paralelamente a estes dados extraídos dos Quadros de Pessoal há estudos, como seja, «Microempreendedorismo em Portugal», referindo, baseado numa amostragem, que 31% das empresas objecto desse estudo tinham apenas 1 (um) trabalhador permanente e que 64% dessas mesmas empresas diziam respeito a comércio, hotelaria e turismo, consultadoria e outros serviços, tais como, limpeza, esteticismo e costura.
O «empreendedorismo» formulado pela ideologia do self made man e badalada pela retórica e propaganda de José Sócrates está a anos-luz de distância da resolução dos problemas económicos do País, embora admitamos que, em certas situações pontuais, possa corresponder ao «auto-emprego» e ao «desenrascanso» de quem, dramaticamente, foi excluído do trabalho com direitos.
Parafraseando uma expressão alentejana, é caso para dizer que, com tal «empreendedorismo», estamos verdadeiramente amolados.
O tempo de vida das empresas
Todas as considerações atrás referidas resultam de uma análise aos dados fornecidos pelos empresários por via do preenchimento dos Quadros de Pessoal.
Ora acontece que em 2007 foram criadas 37 073 empresas, em 2008 foram criadas 33 849 e em 2009 foram criadas 30 569, o que permite concluir que aquilo que, em termos estatísticos, chega ao Ministério do Trabalho não representa mais do que cerca de 60% das empresas juridicamente constituídas.
Onde estão as restantes cerca de 40%?
No cemitério dos nado-mortos?
No clube dos especialistas na emissão de facturas falsas?
Na economia informal para fugir ao pagamento de impostos, ou para engrossar a economia paralela, responsável por 33 mil milhões de euros subtraídos ao PIB oficial?
No contemporâneo «negócio da china», vulgarmente associado a uma parte da consultadoria, designadamente aquela criada por ex-governantes, dirigentes do bloco central e altos quadros da administração, em ordem a transferir para a órbita privada aquilo que são funções do Estado?
Na engenharia da gestão criativa vocacionada para transformar uma empresa com 100 trabalhadores em 10 empresas, possibilitando, quer em função do «deve e haver», a sobre-facturação e a sub-facturação, quer o pretexto para o despedimento?
Os elementos disponíveis não nos permitem uma resposta taxativa a cada uma das perguntas atrás referidas, embora admitamos que uma parte do «empreendedorismo», quer na vertente puramente empresarial quer na vertente social, resulte, o que se compreende, de uma visão pragmática de quem não vê outra alternativa, mesmo que transitória, que não seja esta para garantir um emprego e um modo de sustento para si e para a sua família.
O que se sabe, em termos oficiais, é que em 2009 se extinguiram 48 529 empresas, das quais 37 370 por «morte natural» decretada pelo Registo Nacional de Pessoas Colectivas e 11 159 por «morte violenta» decretada pelos respectivos donos.
A «longevidade» das empresas portuguesas, designadamente aquelas com trabalhadores por conta de outrem, expressa no respectivo ciclo de vida e morte, dá bem a ideia de uma estrutura empresarial com muita parra e pouca uva de que resultam, entre outras, três gravosas consequências:
– por um lado, estamos perante uma matriz económica que nada tem a ver com o modelo de desenvolvimento adequado às necessidades do nosso País, designadamente na componente ligada à contemporaneidade do nosso consumo;
– por outro lado, a circunstância de haver muitas empresas a nascer e, simultaneamente, a morrer, tem consequências negativas no valor do salário dos trabalhadores, na medida em que quanto menor for a longevidade das empresas menor é salário dos trabalhadores, explicado, em muitos casos, pela ausência de uma carreira profissional, de diuturnidades e de promoções;
– acresce ao atrás referido o efeito devastador na estabilidade do emprego, derivado de o ciclo de nascimento e morte das empresas ser, temporalmente, muito curto.
Em Portugal, a taxa de sobrevivência das empresas é pois extremamente baixa, exemplificada no facto de apenas 27 em cada 100 empresas continuarem a laborar após 10 anos do respectivo nascimento, facto que comprova a irracionalidade económica vigente entre nós.
«O empreendedorismo» como objectivo destinado ao caixote do lixo
Assiste-se, neste momento, a uma teorização intensiva quanto aos benefícios do «empreendedorismo», havendo quem quantifique em oito o número de escolas de pensamento ligadas à produção de ideias sobre tal assunto.
Há, na sustentação de tal objectivo, um investimento em certas universidades, institutos públicos e privados, onde são ministrados doutoramentos, mestrados e licenciaturas, algumas das quais perspectivadas em generalizar a ideia de que, por exemplo, o microcrédito está destinado a ter um grande futuro social.
Mas não é apenas o microcrédito que é sobrevalorizado no crescimento e no desenvolvimento das forças produtivas nem, tão pouco, a panaceia para neutralizar aquilo que vulgarmente é designado de «capitalismo selvagem».
É também valorizada a ideia de que há uma expressiva corrente de opinião em certos núcleos académicos a minimizar o acesso ao lucro e a pugnar pela chamada «economia social», vocacionada, preferencialmente, para a resolução dos problemas sociais, designadamente a erradicação da pobreza.
Tais propósitos, face à dimensão material do conflito «capital/trabalho», parafraseando uma expressão popular, «não aquecem, nem arrefecem».
Contudo, e é isto que interessa, face à natureza ideológica do antagonismo existente entre o capitalismo e o socialismo, tal objectivo, «o empreendedorismo», quer na vertente empresarial quer na vertente da chamada «economia social», não passa de um anestesiante social ao criar um modelo cujos ideólogos sabem de antemão que, mais do que destinado ao insucesso, é um verdadeiro logro, embora admitamos que haja, em certos núcleos de investigação, dentro da respectiva escala de valores, uma genuína honestidade intelectual.
É certo que, no passado, houve tentativas de superar os excessos ligados à ganância do lucro, quer por via dos falanstérios idealizados pelos socialistas utópicos no século XIX quer através de propósitos menos avançados, expressos em meados do século passado, por António Sérgio e seus seguidores quanto, por exemplo, à capacidade do cooperativismo sublimar, no âmbito do consumo, o capitalismo.
Mas, atenção: há uma diferença entre os socialistas utópicos, os entusiastas do cooperativismo e os ideólogos do «empreendedorismo» ligado à chamada «economia social».
Os primeiros tinham propósitos humanistas, teses quanto à libertação das classes laboriosas e actuavam convictos quanto à bondade das suas ideias em prol dos trabalhadores, ideias que ajudaram mais tarde a algumas formulações desenvolvidas por Karl Marx e outros teóricos marxistas.
Relativamente ao cooperativismo é bom não esquecer o envolvimento de muitos comunistas nesse processo, onde muita gente não só teve acesso à cultura, como, pela prática, passou a perceber melhor as contradições do sistema, contribuindo assim para fortalecer a sua consciência de classe. Quanto aos últimos não restam dúvidas.
Em primeiro lugar, eles sabem o que estão a fazer, indo ao ponto de uma das suas várias correntes de pensamento afirmar que muitas das empresas criadas pelo «empreendedorismo» estão destinadas a desaparecer em função do darwinismo aplicado à economia, facto demonstrado no capítulo anterior.
Em segundo lugar, eles têm a consciência de que o actual modelo de desenvolvimento está formatado aos interesses das grandes multinacionais a que se juntam, no interior de cada país, os interesses da respectiva oligarquia.
Em terceiro lugar, eles sabem que nos poderes instalados, políticos e económicos, quer na banca quer nas grandes empresas, há quem financie o «empreendedorismo», incluindo aquele vocacionado para a «economia social» ganhando, assim, em vários tabuleiros: por um lado, para «inglês ver», obtêm o estatuto de filantropos, por outro lado, fazendo crer aos incautos que, se quiserem, têm todo o caminho aberto para poderem, eles próprios, serem proprietários, a que acresce uma óbvia operação de «humanização do capitalismo».
É neste contexto que a própria Comissão Europeia, em 2003, no Green Paper, torna público que o «...empreendedorismo (...) pode libertar o potencial individual das pessoas desfavorecidas, levando-as a criar o seu próprio emprego e a encontrar um lugar melhor na sociedade», o que, em nossa opinião, é um verdadeiro bluff em termos práticos, uma impostura ideológica e um bem arquitectado processo de iludir as pessoas, acenando a uma sociedade virtual em que cada um de nós seria o patrão de si próprio, a fazer lembrar as teses pequeno-burguesas de Proudhon ao admitir a existência de uma sociedade de artesãos, não só donos dos seus próprios meios de produção como controlando o ciclo produtivo e a respectiva comercialização, alicerçado no recurso a uma espécie de crédito sem juros.
Mas quem é que, salvo alguns casos perfeitamente residuais e os seguidores dos ultrapassados ideólogos burgueses do século XIX, assertivamente denunciados por Karl Marx e Lénine, acredita nisto?
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Fontes:
– Quadros de Pessoal, Outubro de 2009;
– Anuários Estatísticos, 2009;
– Jornal de Notícias, de 17/2/2010;
– Jornal Público, de 24/2/2010;
– «Microempreendedorismo em Portugal», obra coordenada por José Portela, 2008;
– Mestrado em Inovação e Empreendedorismo Tecnológico, de Mariza A. A. Ferreira, 2009
http://www.avante.pt/noticia.asp?id=32757&area=19
À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.
11/03/2010
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