Alarmismo sobre o Programa de estabilidade e de crescimento
O país tem vindo a ser submergido pela chuva e por uma onda de alarmismo sobre o Programa de Estabilidade e de Crescimento (2010-2013). Multiplicam-se artigos de opinião, entrevistas, documentos de reflexão: (i) apresentam-se cenários catastróficos da evolução das contas públicas; (ii) repete-se que vivemos acima dos nossos meios como se todos o fizessem; (iii) sugerem-se cortes de salários, de pensões, do 13º mês e avança-se estar em estudo a elevação da idade de reforma; (iv) afirma-se que o Programa tem de doer, mas não parece que se queira que doa a todos de igual maneira; (v) reitera-se que os impostos não podem subir como se já houvesse justiça fiscal e todos pagassem impostos.
Nesta multiplicação de receitas – feitas quase sempre na perspectiva de preparar a opinião pública para o aprofundamento de medidas anti-sociais – a crise propriamente económica, que tem conduzido à estagnação do nível de vida, parece ser coisa do passado. Como parecem ser de um passado já remoto declarações solenes de que tudo seria diferente depois da crise.
A CGTP-IN lembra que o agravamento das contas públicas, em Portugal como na generalidade das economias mundiais, resulta em grande parte de políticas de apoio ao sector financeiro, que se destinaram à sua protecção e tinham como objectivo revitalizar o papel de financiamento ao investimento. Constatamos que só em parte tais objectivos foram conseguidos, desde logo a salvaguarda das elevadas taxas de lucro do sector financeiro. Entretanto a parte de liquidez para o financiamento do investimento, a fazer quer pelas famílias, quer pelas empresas (no geral), não se concretiza.
Recessão e dívida pública na UE
A redução da dívida pública está hoje na ordem do dia num contexto em que diversos países apresentam elevados níveis de défice e de endividamento. É o caso da Grécia, que tem sido vítima de ataques especulativos dos mercados financeiros e de uma posição de apoio ambíguo de autoridades europeias cujo fim foi pressionar a adopção de medidas mais radicais. O que teve resultados: a Grécia, que tinha apresentado um plano de redução abrupto do défice público (de 12,7% em 2009 para 2,8% em 2012), foi coagida a apresentar um novo programa com maiores cortes na despesa e mais sacrifícios para os trabalhadores e pensionistas.
Esta diabolização da dívida pública esquece que os orçamentos públicos tiveram de socorrer um sistema financeiro à beira do colapso e que foi a crise económica daí resultante que provocou uma forte quebra das receitas fiscais e um agravamento da despesa com o desemprego.
Não foram retiradas as devidas consequências da pior crise das últimas décadas. A especulação retomou em força. Os bancos não estão hoje mais transparentes. Os paraísos fiscais não foram eliminados. Os mercados financeiros continuam a ser fonte de instabilidade. As empresas internacionais de notação financeira não só não pagaram pela sua responsabilidade na crise, como tornam agora reféns países vítimas de estratégias especulativas. A especulação retomou em força não só porque beneficia de taxas de juro do Banco Central Europeu (BCE) próximas do zero mas também porque as promessas de medidas de controlo dos mercados financeiros se não concretizaram.
Pretende-se, neste novo processo, submeter os pequenos países do Sul, como a Grécia, a condições draconianas, que penalizam severamente os mais vulneráveis, invocando argumentos que não foram usados quando se tratou de salvar o sector financeiro. Invoca-se o despesismo para justificar cortes salariais e cortes nas prestações sociais. Esquece-se que não foram estes países os responsáveis por um modelo de construção da moeda única desequilibrado ao não se prever instrumentos que permitam fazer face a crises desta natureza. Por isso, é preciso procurar soluções que impeçam que os Estados, em situação mais fragilizada, possam entrar em bancarrota e não sejam sujeitos à especulação desenfreada sobre as suas dívidas.
A situação que hoje se vive na UE contrasta vivamente com os compromissos dos Governos, em conjunto com as organizações sindicais e patronais, em procurarem saídas para a crise dando prioridade ao emprego, à protecção social e ao ambiente. E, no entanto, esses compromissos foram estabelecidos há menos de um ano, no âmbito da OIT e do Pacto Mundial para o Emprego. O G20 reunido em Pittsburgh comprometeu-se a colocar a qualidade dos empregos no coração da retoma. Dirigindo-se aos líderes do G20 Somavia, director geral da OIT, afirmou ser necessário “corrigir os desequilíbrios que contribuíram para a crise. Os salários atrasaram-se em relação à produtividade em muitos países contribuindo para os desequilíbrios entre consumo e poupança. Sobrevalorizou-se o económico, sobretudo o sector financeiro, em desfavor das dimensões sociais e ambientais da sustentabilidade”.
O caso revela uma lógica profundamente perversa. Os Estados são obrigados a financiar-se nos mercados privados para fazerem face às suas dívidas, com taxas de juro crescentes, enquanto as entidades financeiras que irão financiar os Estados são refinanciadas pelo BCE, a taxas de juro praticamente nulas.
A CGTP-IN considera, em relação ao Pacto de Estabilidade e Crescimento e sem prejuízo da posição critica que sobre ele tem, que a sua aplicação nos próximos anos deve ser flexibilizada tendo em conta a crise económica, a necessidade de não se pôr em causa o crescimento e de se priorizar a vertente social. A própria Estratégia Europa 2020, ontem divulgada, arrasta consequências orçamentais que têm de ser consideradas.
Situação portuguesa: não comprometer o desenvolvimento do país
Uma política orçamental desadequada, assente na ideia de que a crise económica está ultrapassada, tende a prevalecer nas instituições europeias, o que pode ter consequências dramáticas criando condições para remergulhar algumas economias em profunda crise económica. Esse risco não pode ser minimizado na situação portuguesa.
Em Portugal a crise económica é muito complexa. Nela se cruzam factores de natureza muito diversa, externos e internos. Não se minimizam os efeitos da recessão internacional com uma forte quebra da procura dirigida aos nossos produtos que são agravados pela elevada exposição à economia espanhola, um país com uma crise mais profunda resultante do estoiro da bolha imobiliária.
Porém, a crise veio por a nu as fraquezas de uma economia que vinha a perder dinamismo e não conseguia aproximar-se da média comunitária. Este é um problema estrutural e pensar que se está assim devido à crise internacional é miopia. Podem-se multiplicar exemplos mas vale a pena reflectir sobre alguns aspectos: (i) o nosso crescimento tem tendência a estagnar e o nível de vida a distanciar-se dos países europeus; (ii) o elevado défice da balança comercial reflecte as dificuldades em aumentar exportações (que estão afuniladas em poucos países) e em substituir importações; (iii) a fraca capacidade de atracção de investimento directo estrangeiro (menos ainda no de qualidade) e a vulnerabilidade a deslocalizações – apostar em baixos custos da mão-de-obra não é pois saída; (iv) a séria incapacidade de captação de receitas públicas devido à extensão da economia clandestina e à “cultura” de fuga ao imposto (foge-se à obrigação de pagar, mas não de reclamar apoios do Estado).
A CGTP-IN não minimiza o problema do défice das contas públicas e o elevado endividamento. Mas não se devem confundir causas com efeitos e seria um erro voltar a uma lógica de endeusamento do défice público. O problema fundamental reside na estratégia de desenvolvimento do país.
· Deveremos fazer um debate sobre a necessidade e as formas de reindustrializar o país, já que estamos a pagar os custos de se ter pensado que o futuro estava só na economia de serviços;
· Precisamos de romper com a lógica de intervenção, de uma fracção significativa do sector privado, que vê o Estado apenas como o garante de formas de sacar dinheiro, ou de, designadamente a partir das parcerias público/privado, aceder a formas de capitalismo protegido.
· Temos uma necessidade imperiosa de moralização da governação, sem a qual é praticamente impossível sustentar compromissos sérios para fazer frente aos problemas;
Conciliar uma redução realista do défice com o desenvolvimento e o crescimento sustentável
A preocupação essencial deve ser a de não alienar o desenvolvimento, evitando cair constantemente na armadilha financeira. Nesta os países entram de novo em recessão, ou têm crescimentos muito baixos, e não conseguem reduzir os níveis de dívida, porque: o serviço da dívida (pagamento de juros) fica cada vez maior devido ao aumento das margens financeiras; a falta de crescimento torna mais difícil obter receitas fiscais; o valor da dívida real fica cada vez mais pesado. Se o país se desenvolver o peso da dívida cai porque este é medido em relação ao produto.
O país necessita que se impulsione fortemente a actividade económica e que a iniciativa privada (parte significativa dos empresários), que tanto propagandeia capacidades e virtudes, assuma as suas responsabilidades, deixando de situar no Estado toda a panóplia de mecanismos e medidas para resolver os problemas económicos. É claro que, o Estado precisa de apoiar a sustentação da actividade económica devido: (i) às consequências da recessão internacional sendo contraproducente a retirada apressada de apoios; (ii) às debilidades económicas, sendo necessário apostar numa economia baseada em produtos de alto valor acrescentado; (iii) à baixa qualificação do trabalho o que exige investimentos elevados na educação, formação e investigação científica. O Estado tem de responder a prioridades sociais em que se destacam a crise do desemprego, o que exige alargar as prestações de desemprego, e desenvolvimento de uma luta coerente contra a pobreza.
A redução dos salários reais, com o argumento de que a prioridade deve ser o emprego, não só não salva os empregos como deprime a procura interna. Portugal está hoje no grupo de países com maiores pressões deflacionistas, em conjunto com a Irlanda, o Japão e a Finlândia. Essas pressões serão agravadas se o desemprego e a moderação salarial se conjugarem na diminuição da procura interna. O salário não pode ser visto como um mero custo, ou como uma espécie de subsídio (sempre que possível a ser comparticipado pelo Estado): tem não só uma óbvia dimensão social, mas também, funções de dinamização da economia mais amplas e muito importantes.
Neste contexto, é preciso ter objectivos realistas de redução do défice e do endividamento, o que exige prazos alargados, ao contrário do que hoje as instituições europeias (Comissão, BCE, Conselho) pretendem impor. Só neste quadro poderá haver uma conciliação entre a sustentabilidade das finanças públicas, a recuperação económica e a resposta a prioridades sociais, nas quais se destacam os problemas relacionados com o desemprego, a pobreza e o envelhecimento.
Reduzir o défice público cortando despesas desnecessárias…
A sustentabilidade das finanças públicas não deve comprometer o desenvolvimento. Mas exige também que as medidas de redução do défice compreendam não só o corte de despesas desnecessárias, a eliminação de desperdícios e a adequada utilização de recursos públicos e, ainda, o aumento das receitas do Estado, sendo imperativo a redução da economia clandestina, o combate à fraude e à evasão fiscal e contributiva e maior justiça fiscal.
Existe hoje uma forte pressão da direita e dos meios liberais no sentido de fazer recair todo o reforço do ajustamento na despesa, ao mesmo tempo que reclamam a redução de impostos e a baixa de contribuições sociais. Esta posição não atinge apenas os salários e esta ou aquela prestação social. O que está em causa é a protecção social e os serviços públicos essenciais e, de um modo mais geral, o modelo social.
Neste contexto valerá a pena recordar que o plano de estabilidade da Grécia, apresentado às autoridades europeias em Janeiro, prevê uma redução de 4 pontos percentuais do défice público em 2010, baseado quer na redução da despesa (2,1 pontos percentuais) quer no da receita (idem). Independentemente da apreciação da CGTP-IN a este plano, o qual originou já duas greves gerais, salientam-se, no lado das receitas, medidas como a reintrodução de um imposto sobre as grandes fortunas, a criação de uma taxa excepcional sobre os lucros e a eliminação de exonerações fiscais.
Não recusamos a consideração da vertente das despesas. Nem toda a despesa é virtuosa por ser pública. Há muitas que são desnecessárias e existe muito clientelismo, com desaproveitamento de quadros do Estado, que absorve recursos consideráveis. A despesa de funcionamento dos serviços poderá ser reduzida. Há também desperdício e falta de racionalidade na utilização de recursos públicos. A área da saúde demonstra-o: a promiscuidade entre o sector público e privado, a subutilização de equipamentos e o excessivo consumo de Meios Complementares de Diagnóstico e de Terapêutica têm pesadas consequências financeiras. Temos hoje uma necessidade mais premente de escrutínio da despesa pública.
Em relação aos grandes investimentos públicos, a CGTP-IN defende a reponderação de alguns dos seus aspectos, incluindo o prazo de realização, no contexto de um esforço de redução da dívida pública. A avaliação deve ser feita caso a caso porque há investimentos a fazer que envolvem elevados recursos e que são imperativos para que a protecção ambiental e, em geral, para o que se tem designado como a transição para economias de baixo carbono. Neste contexto é necessário, designadamente, que o investimento se desloque da infra-estrutura rodoviária para a ferroviária.
É imprescindível, restringir as parcerias público-privadas onde a despesa continua a aumentar (está previsto um aumento de 20% entre 2010 e 2013). Vem-se a assistir a uma perda de capacidade do Estado como produtor de bens e de serviços dentro da filosofia de que lhe basta regular. Esta desvitalidade conduz à perda de capacidade negocial do Estado face aos privados, já que não tendo alternativas, fica à sua mercê a quem garante, como a Sedes reconhece, “a rentabilidade comercial e financeira, numa espécie de capitalismo sem risco”, a que há que pôr termo.
… e aumentando as receitas do Estado
Para a CGTP-IN não se pode à partida considerar que a receita do Estado e a carga fiscal sejam tabus.
Primeiro, porque o agravamento do défice público se deve sobretudo a uma perda de receitas. A variação do défice do subsector Estado em 2009 é devida em 69% à redução da receita e em cerca de 31% ao aumento de despesa. Por sua vez, na segurança social as contribuições estagnaram (+0,3%) enquanto a despesa corrente subiu 11%.
Segundo, porque o nível da fraude e evasão fiscal e contributiva é muito elevado, como ilustra a cobrança fiscal de 2009. No ano passado, houve, para uma variação do produto de -2,6%, uma queda das receitas fiscais de 14% (19% no IVA) o que não é explicado só pela crise económica, ou, no caso do IVA, pela redução da taxa de imposto. E, entre 2005 e 2008, a dívida à segurança social aumentou 144%. Em termos gerais, podemos calcular a perda anual de receita em mais de 14 mil milhões de euros (preços de 2009), considerando um nível de economia clandestina de 25% e um peso de 35% das receitas fiscais no PIB.
Terceiro, porque é possível com as taxas em vigor obter uma maior receita fiscal, sendo para isso necessário atacar a fraude e a evasão e a multiplicidade de benefícios fiscais, o que explica a baixa taxa efectiva de imposto na banca. Este é um assunto recorrente, incluindo ao nível de grupos de trabalho que têm estudado a reforma fiscal (desde, por exemplo, o Relatório Silva Lopes), mas onde não há progressos.
Quarto, porque é possível e necessário obter uma maior justiça fiscal. Uma parte significativa da riqueza mobiliária continua escapar a qualquer fiscalidade significativa, quando se sabe que nas sociedades actuais a riqueza se tende a deslocar da componente imobiliária para a mobiliária. São necessárias evoluções na política fiscal, para realizar um triplo objectivo:
- Contribuir para a redução do défice das contas públicas, fazendo incidir os impostos sobre categorias que escapam à tributação, para grupos sociais mais favorecidos, incluindo a elevação do IRC para empresas com lucros mais elevados e a tributação reforçada dos lucros distribuídos;
- Obter uma maior justiça fiscal alargando a base do imposto e a progressividade;
- Responder a razões de natureza estrutural – envelhecimento da população, pobreza e transição para um economia de baixo carbono – no contexto da necessária e progressiva alteração da matriz de desenvolvimento.
Em síntese:
O Programa de Estabilidade e Crescimento 2010-2013 vai constituir um importante teste sobre a existência ou não de uma vontade política forte para romper com políticas que têm conduzido ao definhamento da estrutura produtiva do país; para conciliar medidas de saneamento financeiro com a necessidade de desenvolvimento do país; para efectuar uma repartição socialmente equilibrada de custos abrindo caminho a uma política de redução de desigualdades.
Lisboa, 5 de Março, de 2010
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