No limiar de uma nova cimeira europeia, Berlim surge ao lado de Paris a propor sanções duras para os "pecadores orçamentais" e invoca, para justificar essa dureza, a autoridade da Alemanha como locomotiva e modelo de recuperação económica. Mas na Alemanha fazem-se ouvir vozes a alertar para a manipulação estatística que subjaz a este novo "milagre alemão".
Como em França: o poderoso sindicato metalúrgico alemão punha em causa, na sua manifestação de ontem, o aumento da idade da reforma para 67 anos Stephanie Pillick, Epa
Os mais loquazes na propaganda sobre o novo "milagre alemão" têm sido a titular da pasta do Trabalho e Assuntos Sociais, Ursula von der Leyen, e o da pasta da Economia e Tecnologia, Rainer Brüderle. Este foi mesmo ao ponto de emitir declarações encorajando o patronato a aumentar os salários porque, em tempos de crise internacional, uma economia exportadora como a alemã ficaria desse modo mais bem defendida e encontraria no mercado interno compensações para a contracção da procura externa.
Os sinais de recuperação
Que as declarações de Brüderle eram algo mais do que simples fanfarronada ("Angeberei", para os alemães mais cépticos), pareciam confirmá-lo ondas de choque positivas, sensíveis para além das fronteiras alemãs, como o recente aumento de 3,9% nos salários da Autoeuropa, em contramão de todas as tendências da economia portuguesa.
Na Alemanha, porém, não faltam vozes críticas que, sem porem em causa a realidade de uma certa recuperação económica, questionam o seu significado, os seus pés-de-barro e a sua dinâmica futura. É esse o caso de um artigo hoje publicado no diário Der Spiegel pelo seu editor de Economia, Sven Böll.
Aí se enumera alguns dos trunfos estatísticos exibidos pelo Governo - para depois os desmantelar, um após outro. Entre os trunfos estatísticos conta-se o facto de ter baixado para 2.950.000 o número de pessoas desempregadas, partindo de um pico recente de cinco milhões. Além disso, o Governo festeja o aumento do número de contribuintes da segurança social para 28 milhões, em comparação com o pico negativo de 26,5 milhões, correspondente àquele máximo do desemprego.
O reverso da medalha
Acontece porém, lembra Böll, que a fria quantificação não responde a interrogações qualitativas, como seria a do tipo de emprego obtido pelas pessoas entretanto dadas de baixa na estatística do desemprego, ou como seria a da dimensão do subemprego ou a da dinâmica social do fenómeno e da sua evolução previsível.
O próprio autor responde parcialmente a algumas destas questões omitidas na versão oficial do "milagre": há cerca de 5 milhões de alemães com empregos de 400 euros e cerca de 2,2 milhões a complementarem com algum biscate a sua ocupação principal.
Além disso, as empresas de trabalho temporário florescem, à custa de 900.000 trabalhadores descartáveis. que apenas são chamados para curtos períodos de trabalho, quando são precisos. Dos titulares de um "emprego", há 1,5 milhões a ganharem um euro por hora, em "terapia ocupacional", como lhe chama o autor, criada pelo Estado para embelezar a estatística.
Existe, por outro lado, desemprego e desemprego. Nos 2.950.000 desempregados inclui-se tanto o desemprego temporário como o desemprego de longa duração. Aquele que mais desceu ultimamemte foi o desemprego temporário - o que significa, por um lado, que o ganho é mais precário do que dizem os números e, por outro, que o desemprego restante é o mais gravoso em termos sociais e o mais difícil de debelar.
A esse respeito, pouco ou nada se fez e uma observação mais cuidadosa poderá mesmo revelar que se mantém a tendência histórica para um agravamento deslizante. Com efeito, acrescenta Böll, é cerca de um milhão o número de pessoas desempregadas há mais de um ano - e "em comparação com o ano anterior o recuo [desse número] cifra-se nuns ridículos 1,1 por cento".
O verdadeiro défice de emprego
Quanto aos 28 milhões de contribuintes para a segurança social, eles representam, é certo, um progresso em relação ao já citado pico negativo de 26,5 milhões, mas não relativamente ao máximo histórico de 29 milhões, registado em 1992. E, será bom lembrá-lo, a sociedade envelheceu entretanto substancialmente, de modo que os 28 milhões de hoje perdem ainda mais se a comparação for feita em termos percentuais.
Para as pessoas que procuram trabalho, para as que desistiram de procurar, para as que encontraram algo inadequado, para as que encontram de vez em quando algo precário e voltam a perdê-lo, para todas essas e outras, conclui o investigador, não fariam falta quase três milhões de empregos, como as estatísticas oficiais insinuam, e sim nove milhões. É esse, na Alemanha de hoje, o número necessário ao pleno emprego.
Sem comentários:
Enviar um comentário