Discurso Directo com Manuel Carvalho da Silva. Após uma greve bem sucedida, o líder da CGTP diz que todos vão ter de continuar a lutar enfrentando medidas de austeridade. Tem a certeza de que Bruxelas vai ter de alargar os prazos para redução dos défices e diz que uma sua candidatura a Belém não está na agenda.
Já se percebeu que o Governo não recua e que este ano os salários da função pública serão mesmo congelados e nos próximos anos é previsível que não subam. Os trabalhadores do Estado terão de se preparar para anos de luta?
Os trabalhadores todos, porque só uma minoria muito reduzida beneficia desta situação a que se chama crise, que se instituiu. Ou melhor, transformou-se a palavra crise numa instituição. Apenas uma minoria muito escassa beneficia desta situação, e co-mo nós não estamos aí com propostas para sair destes bloqueios em que nos encontramos, a esmagadora maioria dos portugueses tem de se preparar para remar contra a maré, porque senão é uma geração comprometida.
Que balanço faz da greve da função pública?
É importante. A dimensão das greves observa-se por vários factores: a adesão dos trabalhadores que as sustentam, mas também a capacidade de colocação das questões que estão em causa e a percepção dos problemas na socieda- de. Há ainda um outro elemento importante, que é o acolhimento ou não do poder - neste caso é o Governo, senão seria o poder patronal - de interpretar os protestos. E eu direi que em vários aspectos a greve foi um êxito. Teve uma participação muito significativa de trabalhadores, num contexto em que há muita precariedade no Estado, muitos trabalhadores com vínculo precário, mas também subcontratação, em que há lutas subsectoriais, como na saúde e no ensino.
E resultados concretos dessa luta, pode haver?
Acho que ficou um bom alerta sobre um caminho que não pode ser seguido. A Organização Inter-nacional do Trabalho [OIT] nos últimos tempos chama a atenção - designadamente a carta do director-geral da OIT enviada à última cimeira dos países ricos - que as três causas que estão a aprofundar a crise neste momento são a redução da retribuição do trabalho, a precarização generalizada dos vínculos de trabalho e o facto de, nesta chamada fase de recuperação, os accionistas, quer do sector financeiro quer dos grandes grupos económicos, estarem a captar o dinheiro e a não disponibilizar uma dimensão suficiente para reinvestimento e dinamização da economia. A crise não é o valor das acções no dia-a-dia da Bolsa, isso faz parte de um outro jogo, a crise é o desemprego, a precariedade, a pobreza, as desigualdades. E aliás, como o Somavia também refere, só se pode chamar saídas da crise às recuperações económicas que criem emprego. E o emprego cria-se no sector privado e no público; portanto, este chamamento de atenção de que há perda de emprego, de que há perda de salário e que isso não é caminho na administração pública, como não é no privado, porque aquilo que se adopta para o público acaba por correr também no privado, é importante.
Sendo que esse não é um caminho de Portugal, é um caminho europeu...
Pois, mas nós sabemos que, se não houver cautelas, no contexto de globalização, há povos importantes no mundo, países de grande influência que nesta viragem de século e de milénio colocaram claramente que, se isto é global, também fazem parte do jogo. Portanto, há uma grande alteração da situação no plano mundial, e se não se tiver isso em conta e os erros estratégicos que têm sido cometidos, se não se travar o comportamento do sector financeiro… O sector financeiro montou ao longo das últimas décadas um processo de captação dos lucros da economia real e esvaziou-a, e agora está num processo de captação dos orçamentos de Estado para a especulação financeira. Isto é um desastre. Nós, tenhamos noção, mesmo na Europa, se não se encontrarem alternativas para isto, podemos estar às portas de uma situação muito complicada. Há quem fale em abismos, eu acho que é possível travar as coisas, mas não tenhamos dúvidas de que não há saída desta situação com as mesmas receitas.
Quanto ao sector privado - também com problemas de precariedade, empregos em risco, que paga impostos -, está solidário com o público e com esta greve?
Há solidariedades e há ruptura de solidariedades na sociedade portuguesa, no seio dos trabalhadores, e não só. A sua pergunta tem dois tópicos que me surgiram de imediato. Usou a expressão "o sector privado que paga impostos"; um dos problemas em Portugal para uma aposta que é prioritária, que é aumentar as receitas do Orçamento do Estado, é que nem toda a gente paga impostos. Os trabalhadores pagam impostos, mas nem toda a gente os paga. Uma das coisas que é preciso ver é o desfasamento da receita fiscal, comparada com a quebra do crescimento económico. Ou seja, a quebra da receita fiscal é cerca de cinco vezes mais do que a quebra do produto. Portanto, há aqui um problema muito complicado. Por outro lado, quem trabalha paga impostos - e quando digo quem trabalha, estou a pressupor os que trabalham por conta de outrem e uma parte significativa dos empresários e dos que trabalham por conta própria, que cumprem as suas obrigações e que também pagam. Mas eu pergunto: se um indivíduo, qualquer um de nós, que ganha um euro pelo trabalho, paga imposto... esse euro que ele ganha pelo trabalho é menos digno do que um que se ganha na especulação financeira ou que se manipula nos bens mo-biliários? Porque não pagam esses impostos? Essa é uma questão. A outra, que observou, é em relação às solidariedades. Um dos problemas da sociedade actual é a ruptura de solidariedades em vários planos. Podemos entrar no campo social e até no campo territorial, mas no mundo do trabalho há rupturas profundas entre gerações, e essas rupturas são talvez o problema mais grave. O desenvolvimento da precariedade do trabalho é a mãe dessa ruptura de solidariedades; mas não é só essa, é também o estilo de vida que se vai desenvolvendo na sociedade. Nós estamos numa sociedade de individualismo e de consumismo, que cruzados são uma receita explosiva, estamos num tempo negativista complicado. É fácil colocar os trabalhadores uns contra os outros, a discutir entre o que ganha 800 euros e o que só recebe 400, a disputarem entre eles, entre o que ganha 1500, ou 2000 e 3000, escondendo que os problemas de fundo não são esses! No sistema capitalista em que estamos, é natural que haja diferenças salariais. Não me choca que haja diferenças salariais de um para dez, às vezes até mais. O problema não é a diferença de um para 20, ou de um para 30; é de um para mil, de um para dez mil, de um para 50 mil, esse é que é o problema. E quando se entra neste esquema "se tu tens e eu não tenho"- e o ter pode significar ganhar 700 euros e outro ganhar 500 -, entra-se numa espiral regressiva sem fim. Ou seja, o problema é estruturante, é ir ver onde está a riqueza, onde se concentra e produzir uma outra distribuição. E, por outro lado, mobilizar e responsabilizar todos para se produzir mais.
Haverá mais solidariedade entre público e privado quando acontecer aquilo que há pouco referia, que o que se determina para o público acaba por ter consequências no privado? Haverá necessidade de falar com a UGT para uma greve geral este ano se as coisas seguirem assim?
Insisto permanentemente numa ideia. Convençamo-nos de uma coisa muito simples, em Por-tugal em concreto, mas isto também se aplica aos outros países: não vamos ter saída dos bloqueios em que nos encontramos se não tratarmos a dimensão dos problemas com realismo. Ou seja, há dimensões que vêm do exterior, da crise internacional; há dimensões que são internas e que precisam de ser sistematizadas para haver resposta. A primeira questão é esta. A segunda é que não vamos ter saídas desta situação com as receitas do passado. Se o País se submeter ao determinismo financeiro na sua estratégia - vamos ver o que vem aí do Programa de Estabilidade e Crescimento -, não há saídas: é preciso mobilizar a sociedade, era muito importante que se desenvolvessem compromissos largos na sociedade portuguesa face à situação em que estamos. Mas isto tudo só é possível se os portugueses e portuguesas se mobilizarem, não vem aí nenhum governante com uma receita milagrosa ou com uma varinha de condão. Por parte dos sindicatos, só há um caminho - esclarecer, sensibilizar e mobilizar. Vai ter de haver muita luta.
E isso pode significar a convocação de uma greve geral?
Posso considerar-me um sindicalista com alguma tarimba, e uma coisa que um sindicalista não pode fazer é falar de greves ou de lutas por anúncio. Trata-se de preparar as coisas conforme são necessárias, e, a partir daí, fala-se delas em termos de concretização, quando a decisão está assumida. O que lhe digo é que precisa de toda a unidade na acção e mobilização, de todo o desenvolvimento de capacidades de luta dos trabalhadores e do povo português para que as coisas mudem. Se virmos as receitas das alternativas, agora em torno da discussão das lideranças do PSD; se esperamos sair da situação em que estamos com isto, estamos lixados, porque é mais do mesmo, e não se vai lá.
Não há mesmo possibilidade de Portugal, por uma vez, ter um compromisso nacional sério entre patrões e empregados que permita um combate nacional à crise económica e social?
É um grande desafio. Eu sou, pela lei da vida, um sindicalista em fim de percurso, mas tenho pensado, nos últimos tempos, nesta situação em que o País está. E face àquilo que é necessário fazer, se fosse possível um contributo mínimo, da minha parte como de outros, para se chegar a um compromisso que desse um sinal de inovação social, de responsabilidade partilhada, isto era extraordinariamente importante. Mas há pressupostos para isso. Não é possível chegar lá se a base de reflexão para a análise dos problemas concretos e para se encontrarem respostas concretas não for uma análise séria e equilibrada. E neste momento há um problema: há um desequilíbrio enorme de poder entre os representantes do capital e o trabalho.
Isso existe por todo o lado, e há países em que é possível uma maior aproximação entre os interesses de ambas as partes.
Não existe, nós somos o país da Europa com pior distribuição da riqueza, com mais desigualdades, não nos esqueçamos disso. Isto significa que o desequilíbrio é maior.
Mas isso tem que ver com a qualidade do nosso patronato?
Tem que ver com os portugueses, em primeiro lugar; tem que ver com as práticas patronais. Não tenho nenhuma ideia de que os patrões são intrinsecamente maus, isso é um disparate absoluto, são seres humanos como os outros. Agora, há práticas! E, por exemplo, em Portugal, os empresários sempre tiveram no Estado um chapéu protector. Tinham antes do 25 de Abril. É uma coisa curiosa, porque no período do fascismo nós tivemos sempre os grandes sectores patronais em Portugal - salvo raras excepções e pontuais - numa posição de usarem os mecanismos repressivos que o regime colocava nas relações com os trabalhadores e nunca valorizarem o sindicalismo. Por exemplo, em Espanha havia sindicalistas presos, estou a lembrar-me de Marcelino Camacho e Nicolás Redondo. Já discuti isto há uns anos com ele até a propósito de um debate que o dr. Mário Soares organizou sobre a transição em Portugal e a transição em Espanha. E uma das coisas que se observam é isto: havia grandes empresários que iam à prisão visitar o Nicolás Redondo e o Marcelino Camacho para negociarem com os sindicatos as condições de trabalho e resolução de conflitos. Cá, o patronato colocou-se sempre num proteccionismo.
E não será consigo na CGTP que algum dia esse acordo se fará em Portugal? Não estarão reunidas as condições a curto prazo?
Desejo que estejam, gostava imenso de contribuir para isso! Os pressupostos são estes: se formos ver as revisões da legislação laboral, ainda não se terminou uma revisão da legislação e já estão os principais representantes patronais a reclamar outra, sempre no mesmo sentido, nunca se consolida nada! Se formos ver a aplicação da lei no trabalho em Portugal, é um problema, esse era um importante compromisso, uma mudança de atitude dos portugueses face à lei nos mais diversos campos, mas no trabalho é desastroso! Essa é uma questão, a construção de relações equilibradas. A outra é a atitude perante os compromissos, estou cheio de ouvir ao longo do tempo os representantes patronais que chegam ao fim de um compromisso e dizem: "Sim, é isto, agora quem determina as coisas são as empresas." Os grandes patrões portugueses não metem a cabeça no funcionamento das organizações patronais. Procuram estratégias de as influenciar e de elas funcionarem a favor dos seus interesses, mas não metem a cabeça e não se submetem. Este é um outro problema. Se não houver um exercício de moralização da governação - e não me refiro apenas às práticas dos governantes, mas entendida como exercício dos responsáveis de todas as instituições e também da gestão das empresas e das instituições em geral -, se não se conseguirem passos neste sentido a curto prazo em Portugal, não há condições para desenvolver um compromisso. A proposta da CGTP de levantamento de questões em relação ao Pro-grama de Estabilidade e Crescimento pode ser uma base de criação do tal lastro de confiança. Não estão ali as respostas aos problemas concretos, mas está uma base para discutir. É precisa uma discussão séria, não estes exercícios sucessivos de concertação social apenas para ajudar a agenda dos governos.
No Ministério do Trabalho está agora Helena André, uma antiga sindicalista. É mais fácil trabalhar com ela do que com Vieira da Silva?
Pela Helena André tenho respeito e até amizade pessoal, mas a partir do momento em que estão no poder, nunca mais trato por tu a não ser em privado. Tem uma experiência sindical, sobretudo a nível europeu, mas há coisas que começam a atrasar muito, designadamente o problema da contratação colectiva e a forma como se encaram os salários, que não é um subsídio, mas uma parte da produção de riqueza.
http://dn.sapo.pt/inicio/opiniao/discursodirecto.aspx?content_id=1513061
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