João Ferreira
«privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu,
privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei,
privatize-se a nuvem que passa,
privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno
e de olhos abertos.
E, finalmente, para florão e remate de tanto privatizar,
privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez
a exploração deles a empresas privadas,
mediante concurso internacional.
Aí se encontra a salvação do mundo...
E, já agora, privatize-se também
a puta que os pariu a todos»
José Saramago, in Cadernos de Lanzarote – Diário III
Terminou no final do ano o período de consulta pública sobre o Livro Verde para a reforma da Política Comum de Pescas (PCP)(1). Lançado pela Comissão Europeia em Abril do ano passado, este documento inclui um diagnóstico do sector das pescas na União Europeia e propostas para o que se diz dever ser uma «mudança radical, que vá direita aos problemas na base do círculo vicioso em que as pescas europeias têm estado enredadas nas últimas décadas».
O diagnóstico assenta no que se considera ser «uma sobrepesca generalizada, sobrecapacidade das frotas, elevado nível de subsidiação, baixa resiliência económica e diminuição da quantidade de pescado capturado». Em resumo, no entender da Comissão, «há demasiados navios a tentar capturar o pouco peixe que existe». Consequência: «muitos segmentos da frota europeia tornaram-se inviáveis economicamente». A solução, pois claro, não poderia ser outra: a Comissão explica, o mercado resolve.
Direitos de pesca transferíveis
A intenção não é nova. Desde há muito que a actividade da pesca tem sido utilizada como exemplo para ilustrar aquilo a que Hardin, num ensaio que se viria a tornar célebre, chamou «A tragédia dos comuns»(2). Desde então, a atribuição de direitos de propriedade sobre recursos naturais de «uso comum», ou seja a privatização desses recursos, tem vindo a ser preconizada e efectivada numa grande diversidade de áreas.
Nas últimas semanas, temos vindo a falar num outro exemplo, muito actual: as licenças de emissão de carbono. Sob pretexto de proteger um bem público – a atmosfera e a sua capacidade de regular o clima – atribui-se e comercializa-se direitos (privados) de emissão de CO2, colocando-se nas mãos de privados este serviço que, naturalmente, a atmosfera nos presta, assim «protegido».
Com os direitos de pesca transferíveis, defendidos pela Comissão como o meio «mais eficiente e menos dispendioso» de reduzir a «sobrecapacidade», pretende-se criar, de forma faseada, um sistema comunitário de direitos de propriedade, privados, para acesso à exploração de um bem público: os recursos pesqueiros.
É a própria Comissão que, no Livro Verde, antecipa as inevitáveis consequências desastrosas desta opção para a pequena pesca e para as comunidades costeiras – e, acrescentamos nós, para um estados-membros como Portugal – ao defender a necessidade de cláusulas de salvaguarda destinadas a evitar uma «concentração excessiva» da propriedade.
Mesmo se num primeiro momento os direitos de pesca transferíveis (também chamados ITQ, na terminologia inglesa) se aplicarem apenas a uma parte das frotas e ao nível nacional, como alguns defendem, nada obstará a que no futuro se caminhe para um mercado único de direitos de pesca na UE. Caminho que poderá incluir mesmo a transacção em bolsa destes direitos. Assim o determinam as regras comunitárias em matéria de concorrência no mercado interno, a que toda e qualquer eventual «cláusula de salvaguarda» se deverá obrigatoriamente submeter. Será, assim, impossível impedir, na prática, a concretização da verdadeira intenção do grande capital europeu e seus serventuários, também neste domínio: a concentração da actividade por entidades com grande poderio económico e financeiro, ao nível nacional, num primeiro momento, e, mais cedo que tarde, ao nível da UE. A referência feita no Livro Verde à «frota europeia», obnubilando que o que existe na verdade são diversas frotas nacionais, não é inocente. Pelo contrário, é reveladora.
Na senda do Tratado de Lisboa, estamos perante mais um inaceitável ataque à soberania dos estados numa área de vital importância.
Convém dizer que esta solução não constitui qualquer garantia de defesa da sustentabilidade dos stocks pesqueiros, já que é evidente (e a experiência demonstra-o mesmo noutras áreas) que a redução e concentração de direitos num punhado de operadores não significa necessariamente uma redução do esforço de pesca, mas somente a concentração da exploração dos recursos.
__________
(1)http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?
uri=COM:2009:0163:FIN:PT:PDF
(2)http://www.sciencemag.org/cgi/reprint/162/3859/1243.pdf
http://www.avante.pt/noticia.asp?id=31976&area=8
À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.
07/01/2010
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