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16/12/2009

Classes Sociais e a Desigualdade na Saúde

Os padrões de doença, longevidade e os estilos de vida relacionados com a saúde, variam de acordo com as classes sociais, género e escolaridade. Os indivíduos que se inserem nas classes sociais que concentram maiores recursos económicos e culturais apresentam em média, uma longevidade superior e tendem a adoptar estilos de vida mais saudáveis. Pelo contrário, do conjunto dos indivíduos inseridos nas classes assalariadas de base, são sobretudo os Operários do sexo masculino que apresentam em média as longevidades mais baixas.

Enquadramento e premissas da investigação

O presente estudo pretende analisar a relação entre a estrutura de classes sociais e as desigualdades na saúde, procurando explicitar os mecanismos mediadores que convertem o social no biológico. Sustenta-se que as desigualdades inscritas na ordem social se traduzem numa incorporação individual da desigualdade sob a forma de disparidades perante a doença e a morte. A investigação é assente numa estratégia de tipo extensivo-quantitativo, tendo por base a informação presente nos processos clínicos individuais dos óbitos ocorridos em 2004, originários de duas instituições hospitalares, uma localizada em Lisboa e a outra em Beja (N = 1935).
A complexidade que caracteriza os fenómenos relacionados com a saúde (Carapinheiro, 2006) implicam necessariamente uma abordagem multidimensional onde interagem diversos factores como as condições materiais de vida, as classes sociais, o género, as regiões, os recursos educacionais, as gerações, os comportamentos e estilos de vida, os tipos de doenças ou as causas de morte. A complexa configuração deste espaço social, similar a tantos outros campos de investigação sobre o real, solicita uma abordagem multifacetada e relacional sobre o objecto de estudo (Carvalho, 2008).

Resultados fundamentais

No sentido de operacionalizar a estruturalidade multidimensional envolvida neste Espaço Social de Desigualdade em Saúde procedeu-se a uma Análise de Correspondências Múltiplas, como se apresenta na Figura 1.

As duas dimensões identificadas procuram reconhecer os principais eixos estruturantes deste espaço topográfico. Uma primeira dimensão, orientada segundo o eixo horizontal, estabelece uma diferenciação por género e uma segunda dimensão, correspondente ao eixo vertical é estruturada segundo diferenciados perfis de comportamentos e estilos de vida.
Uma preliminar observação permite realçar que é do lado feminino que se localizam as categorias reveladoras de maior ausência de informação relativamente às classes sociais, tabagismo e hábitos alcoólicos. Os registos elaborados pelos profissionais de saúde em contexto hospitalar, revelam uma prática observacional orientada mais por referência à doença e aos “comportamentos de risco” (consumo de álcool ou de tabaco) do que por referência aos “comportamentos saudáveis” (pouca informação sobre pessoas sem hábitos tabágicos ou alcoólicos ou sobre a prática de exercício físico). Graficamente, a proximidade das categorias “nunca fumou” e “sem informação sobre fumar” poderá significar que a ausência de informação tende a corresponder à ausência do comportamento. Deste modo, o género feminino encontra-se mais associado à ausência de hábitos relacionados com o tabaco e à provável ausência de consumo de bebidas alcoólicas. O conjunto das restantes categorias localizadas nos quadrantes femininos informa de forma sintética: a centralidade da categoria das domésticas; a presença dos escalões etários mais elevados, reveladores de maior longevidade e, finalmente, as causas de óbito relacionadas com doenças crónicas e de evolução mais prolongada, como a Insuficiência Cardíaca Congestiva (ICC) ou os Acidentes Vasculares Cerebrais (AVC).
Analisando os quadrantes no lado do género masculino verifica-se por contraste, uma maior constelação de pontos, sinónimo de uma maior presença de informação quer sobre os atributos socioprofissionais quer sobre os comportamentos relacionados com a saúde. De uma forma sucinta é no lado masculino que se localizam os escalões etários reveladores de menor longevidade e onde se opera uma maior diferenciação respeitante aos estilos de vida e aos perfis de comportamento. A orientação da distribuição das categorias referentes ao tabagismo, hábitos alcoólicos e dieta permite visualizar de forma oposta entre, por um lado, a persistência de comportamentos associados a estas práticas e, por outro, à alteração do conjunto destes comportamentos, explicitados aqui na redução do consumo de álcool, no cessar do consumos de tabaco e na alteração dos padrões alimentares. A orientação destas categorias não se apresenta de forma aleatória pois acompanha a distribuição das categorias das variáveis “condição perante o trabalho” e “classes sociais”. Deste modo, a categoria dos “reformados” encontra-se mais próxima do pólo referente às alterações dos comportamentos, sugerindo que as alterações dos estilos de vida, nomeadamente na passagem de “activo” para “reformado”, são igualmente acompanhadas por importantes mudanças de comportamentos na vida quotidiana. Por outro lado, são sobretudo as classes sociais que concentram maiores recursos económicos e culturais, como os Empresários Dirigentes e Profissionais Liberais (EDL) e os Profissionais Técnicos e de Enquadramento (PTE), que se encontram mais próximas da alteração de comportamentos e da consequente adopção de estilos vida mais saudáveis. Por contraste, os consumos mais elevados de bebidas alcoólicas e tabagismo encontram-se mais próximos da categoria dos Operários. Os registos clínicos indicam ainda que o consumo de álcool e de tabaco nesta população inicia-se tendencialmente mais cedo do que nas outras classes sociais. Relativamente às doenças e às causas de óbito, verifica-se que a diabetes corresponde à situação clínica que se encontra mais próxima das categorias referentes às alterações dos comportamentos. A diabetes apresenta um quadro clínico cujas alterações relacionadas com os níveis de açúcar no sangue requerem maior vigilância individual suscitando maiores alterações nos hábitos alimentares, tabaco e álcool. Pelo contrário, situações clínicas acompanhadas de prognósticos associados a uma maior dificuldade relativamente ao tratamento e à cura, como neste estudo se verificaram entre os casos dos cancros do pulmão ou do estômago, constituíram um conjunto de patologias que tendencialmente suscitaram menores alterações dos comportamentos.
Numa segunda interpretação que procurou identificar, neste Espaço Social da Desigualdade na Saúde, associações específicas entre as categorias, numa lógica grupal-tipológica, procedeu-se a uma análise de clusters, que culminou na definição de quatro clusters ou grupos. O primeiro grupo (cluster 1) corresponde aos Óbitos Prematuros, ou seja, óbitos ocorridos em idades inferiores a 65 anos. Cluster que agrupa uma população maioritariamente masculina (85%), em que 53,4% ainda exercia uma profissão na altura do óbito. Cluster com uma forte presença de situações clínicas de alcoolismo, elevado tabagismo e maior associação a causas de óbito relacionadas com o cancro do pulmão e do estômago e a cirroses hepáticas. As infecções pelo HIV-Sida constituem o outro grupo de causas óbito igualmente pertencentes a este cluster. Tendo em conta o conjunto das categorias socioprofissionais, os Operários representam aqui 43,6%, constituindo claramente a classe social mais representativa deste cluster. Uma análise mais pormenorizada revela que são sobretudo Operários do sexo masculino e maioritariamente relacionados a um conjunto de ocupações profissionais associadas aos sectores da construção civil e obras públicas. Finalmente, o cruzamento com a variável “estado civil” releva que 68% desta população corresponde a indivíduos que se encontravam casados, 15,8% eram solteiros, 15,9% divorciados e os restantes 4% eram viúvos.
No pólo oposto surge um segundo grupo (cluster 2), caracterizado pela Adopção de Comportamentos Saudáveis. Um universo igualmente masculino (96,8%), mas que contrariamente ao anterior cluster, apresenta longevidades mais elevadas, com valores em média de 78,2 anos. Uma população constituída por 100% de reformados, em que 58,3% destes indivíduos revela um historial de tabagismo e de consumo de bebidas alcoólicas. A característica diferenciadora deste grupo reside no facto da grande maioria desta população, cerca de 70 %, ter simultaneamente deixado de fumar e reduzido o consumo do álcool. A visualização gráfica permite constatar que se trata de reformados localizados nas classes mais altas - EDL e PTE, mas que são sobretudo os EDL, os que se encontram mais próximos da redução do consumo de álcool e de se constituírem como os ex-fumadores. De uma maneira geral, os resultados desta investigação apontam para uma forte associação entre as alterações de comportamentos e o surgimento de doenças mais graves. Por exemplo verifica-se uma forte associação entre um primeiro episódio de Enfarte Agudo do Miocárdio (EAM) e o posterior cessar de consumos tabágicos e alcoólicos Em comparação com os outros clusters, verifica-se que neste cluster a alteração destes comportamentos ocorre com maior frequência antes do surgimento de doenças de maior gravidade. Facto que pode indiciar a adopção de comportamentos numa perspectiva estratégica mais preventiva. Finalmente, este grupo é constituído por um conjunto populacional cujo óbito ocorreu quando 65,8 % ainda se encontravam casados e, em cerca de 15 %, os indivíduos já residiam num lar.
No primeiro quadrante surge um terceiro grupo (cluster 3) caracterizado pelos Estilos de Vida mais Estáveis. Universo totalmente feminino e maioritariamente constituído por domésticas (83,1%). Este cluster regista os valores mais elevados de longevidade, em média 81,3 anos de vida, e apresenta um historial relacionado com os consumos de álcool ou de tabaco abaixo dos 4%. As causas dos óbitos representam um conjunto de doenças de evolução mais prolongada e associadas ao envelhecimento. Constitui-se igualmente como um espaço onde pontua maior ausência de informação. Para além de ser um cluster feminino é igualmente o cluster onde se regista a maior percentagem de viuvez (67,2%). Deste conjunto cerca de metade vivia, de forma mais permanente ou episódica com os familiares. Mais de 90% destes familiares referem-se aos filhos. Esta associação de coabitação com familiares é mais forte na região de Beja do que em Lisboa. Do total da população inserida neste cluster, cerca de um quarto residia num lar. Aqui a situação é ligeiramente inversa com um pouco mais de população a residir em lares em Lisboa do que em Beja.
Finalmente, o quarto grupo (cluster 4), constitui-se como o universo com maior expressividade numérica e o mais equilibrado na relação entre os sexos, apesar dos 62,1% pertencerem ao sexo masculino. Cluster constituído por 97% de reformados, que apresenta uma longevidade média de 76 anos. Apresenta um historial relativo aos consumos de tabaco e de álcool com valores relativamente baixos, cerca de 7 e 8 % respectivamente. Trata-se por isso de um grupo com comportamentos mais estáveis relacionados com a saúde, mas com alterações nos estilos de vida associadas à passagem da condição de população activa para não activa. As classes sociais referentes a esta população de reformados distribuem-se de forma mais densa pelas categorias dos assalariados de base, ou seja, pelos Empregados Executantes (EE), Operários (O) e Assalariados Agrícolas (AA). Cerca de 40% dos óbitos deste cluster eram referentes a pessoas viúvas, sendo que deste conjunto, cerca de 40 % vivia com familiares e cerca de 20% residia num lar.
A relação entre a hierarquia socioprofissional e a longevidade encontra-se bem documentada em diversos estudos internacionais (Cockerham, 2008). Contudo, a categoria dos EDL apesar de reflectir uma população que, decorrente do poder económico, institucional e profissional abranger posições de maior privilégio na estrutura de classes, constitui neste estudo, uma categoria que apresenta em média uma longevidade inferior à dos PTE. Em sintonia com resultados de outras investigações (Ávila, 2007; Almeida, Machado e Costa, 2006) este estudo revelou níveis de escolaridade dos EDL consideravelmente inferiores aos dos PTE. Esta característica diferenciadora pode significar que, se por um lado, os recursos económicos e o poder de compra facilitam o acesso a uma maior diversidade de bens, por outro, maiores níveis de escolaridade, permitem uma maior aquisição e melhor interpretação da informação relacionada com a saúde, que se traduzem em ganhos no aumento da longevidade. Apesar desta diferença, o conjunto das classes sociais que concentram maiores recursos económicos e culturais, representados pelos EDL e os PTE, apresentam em média, uma longevidade superior ao conjunto das classes assalariadas de base. As maiores desigualdades evidenciam-se entre os PTE e os Operários. No conjunto dos universos oriundos dos dois hospitais, os PTE apresentam os valores de longevidade em média mais elevados com 82,2 anos, por oposição aos valores mais baixos verificados nos Operários, com apenas 68,3 anos.
As relações assimétricas de poderes e as distribuições desiguais de recursos no espaço social estruturam diferenciadas e desiguais condições de existência e trajectórias de vida (Almeida, Machado e Costa, 2006). As relações que os indivíduos têm com os serviços e profissionais de saúde com os seus corpos e sintomas, estilos de vida, padrões de consumo de álcool e tabaco e com as possibilidades de tratamento, são condicionadas pela posição e trajectória social. Os efeitos cumulativos que resultam da interacção entre estes factores, ao longo dos percursos de vida, traduzem-se numa desigual incorporação da doença e da longevidade.

Ricardo Antunes

Enquadramento institucional
Os dados apresentados neste texto resultam de um projecto de investigação em curso, realizado no CIES-ISCTE, no âmbito de uma tese de doutoramento em sociologia, com o financiamento da FCT, desenvolvida por Ricardo Antunes sob a orientação de António Firmino da Costa.

Metodologia
Investigação assente numa estratégia de tipo extensivo-quantitativo, tendo por base a informação presente nos processos clínicos individuais dos óbitos ocorridos em 2004, originários de duas instituições hospitalares, uma localizada em Lisboa e a outra em Beja (N = 1935). O trabalho de campo referente à consulta e análise dos processos clínicos decorreu entre Março de 2008 e Abril de 2009. A vasta informação individual, presente em cada processo clínico, foi seleccionada de acordo com uma grelha previamente construída e organizada nas diversas dimensões conceptuais, indicadores e categorias. Informação que foi maioritariamente objecto de codificação e informatização com recurso ao software SPSS. No sentido de operacionalizar a estruturalidade multidimensional envolvida neste Espaço Social de Desigualdade em Saúde procedeu-se a uma análise de correspondências múltiplas (ACM) e a uma análise de clusters.

Referências Bibliográficas

Almeida, J., Machado, F. e Costa, A (2006), “Classes sociais e valores em contexto europeu”, in J. Vala e A. Torres (orgs), Contextos e Atitudes Sociais na Europa, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais.
Ávila, Patrícia (2007), “Literacia e desigualdades sociais na sociedade do conhecimento”, in Costa, Machado e Ávila (orgs) (2007), Portugal no Contexto Europeu, vol. II - Sociedade e Conhecimento, Oeiras, Celta.
Carapinheiro, Graça (org.) (2006), Sociologia da Saúde: Estudos e Perspectivas, Coimbra, Pé de Página.
Carvalho, Helena (2008), Análise Multivariada de Dados Qualitativos, Lisboa, Sílabo.
Cockerham, William (2008), Social Causes and Health and Disease, Cambridge, Polity Press.

http://observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/index.jsp?page=projects&lang=pt&id=85

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