Miguel Inácio (texto) / Inês Seixas (fotos)
Diz a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 65.º, que «todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar». Um direito ignorado pelo Governo que impôs, no início do mês de Fevereiro, aos moradores dos bairros sociais, actualizações dos preços das rendas imorais e incomportáveis. A este ataque desumano, o PS, com o apoio do PSD, através da aprovação do Orçamento do Estado, veio acrescentar outros cortes ao nível dos apoios sociais, que se materializam nas mais diversas áreas da intervenção do Estado Social, numa clara opção política que mantém intocáveis os lucros do grande capital em detrimento das populações mais desfavorecidas.
O Avante! foi conhecer o Bairro da Quinta do Cabral, a cargo do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), na Freguesia de Arrentela, onde, por via do Decreto-Lei n.º 166/93 que define o regime da renda apoiada, foram impostos aumentos escandalosos e injustos, que nalguns casos ascendem a mais de 300 euros.
Situado junto à Zona Ribeirinha do Seixal, quem por ali passa está longe de imaginar os problemas sentidos pelos habitantes, famílias de rendimentos baixos, muitos desempregados, todos vítimas da mesma política que os sucessivos governos vêm desenvolvendo.
Abriram-nos as portas e fomos conhecer as razões do seu desespero, que vai crescendo à medida que o tempo passa e as suas casas vão ficando mais deterioradas, e com rendas, a partir de Fevereiro, que aumentaram, em muitos casos, cerca de mil por cento.
Nunca, em momento algum, os moradores se opuseram a acertos, desde que os possam suportar, de modo a viver com alguma dignidade. «Eu pagava 35,71 euros de renda e passei a pagar 297,49 euros. Fizeram o cálculo baseando-se nos custos das obras que fizemos ao longo dos anos, com grande esforço, quando as mesmas eram da responsabilidade do ERU», confessou-nos um casal de meia idade que tem rendimentos mensais de apenas 419 euros (do subsídio de desemprego). «Eles [IHRU/Governo] querem é explorar as pessoas. Estão a tirar dinheiro apenas àqueles que não podem pagar», desabafou o homem, desesperado, confessando não ter «dinheiro para comer».
Numa outra habitação, com a renda a chegar aos 108 euros, quando antigamente era de 39,41 euros, deparámo-nos com um relato surreal. «No meu quarto entrava água por uma racha no tecto. Tive que ser eu a tapá-la. Durante a noite, quando chovia, tinha que despejar o alguidar duas ou três vezes», informou o morador, dando conta, para além do negro das paredes, do «cheiro a mofo» que se tornava insuportável e das consequências daí resultantes: a esposa sofre de problemas nos pulmões. Também a «alcatifa» teve de desaparecer, uma vez que «não prestava para nada». «Havia sempre pó no ar», elucidou, enumerando outros problemas: «Na casa de banho os azulejos saltaram todos» e, um dia destes, «rebentam os canos da água». «Se no rés-do-chão estiverem com a água ligada, os de cima já não a podem utilizar», denunciou.
Num outro apartamento fomos conhecer uma viúva que tem a seu encargo dois filhos e aufere um ordenado bruto de 630 euros. Pagava 22 euros e agora, até 2015, vai passar para os 170 euros. «Os armários da cozinha estavam quase a cair, logo tive que os substituir. Ao longo dos anos coloquei o pavimento, as portas dos roupeiros e dos quartos, e só não faço mais porque não posso», afirmou, desabafando: «Uma vez veio cá um empreiteiro da ERU que me pintou as paredes de cores diferentes. As obras deles são assim.»
Mas os casos não se ficam por aqui. Eis mais quatro exemplos de quão injustos são os aumentos. Quem pagava 35,15 euros, 11,70 euros, 68, 70 euros e 26 euros, passou ou vai passar até 2015 para os 306,81211,49 euros, 303,7 euros e 331,67 euros, respectivamente. euros,
Para além da questão das rendas, a situação assume um cariz ainda mais infame porque durante mais de 25 anos o proprietário destas habitações, o IHRU, se limitou a efectuar, recentemente, uma mera intervenção ao nível das fachadas, ignorando por completo os aspectos estruturais. Dada a desresponsabilização do Estado na preservação dos imóveis, os arrendatários foram obrigados a efectuar obras para dignificar as condições de habitabilidade. «Em alguns casos, os aumentos das rendas chegam a ser ainda mais escabrosos, agravando uma medida já de si completamente ruinosa para os moradores da Quinta do Cabral», lê-se numa moção aprovada pela CDU na Assembleia Municipal do Seixal, que contou com o apoio do BE e do CDS, os votos contra do PS e a abstenção do PSD.
PS e PSD unidos contra as populações
Na sexta-feira, também com os votos contra do PS e a abstenção do PSD, foram inviabilizados na Assembleia da República os projectos de lei apresentados pelo PCP, BE e CDS sobre o Regime de Renda Apoiada. A iniciativa dos comunistas propunha a alteração da fórmula de cálculo das rendas.
«Apesar de ser do conhecimento público que o Regime de Cálculo de Renda Apoiada é injusto, e de o Governo, em 2008, ter assumido que iria proceder à sua alteração, passados estes anos não só não o fez como continua a aplicá-lo, sabendo que o mesmo conduz a valores de rendas exorbitantes [alguns na ordem dos 400 euros], face aos rendimentos [das famílias]», afirmou Paula Santos, que apresentou o Projecto de Lei do PCP, referindo ser «inaceitável» que os moradores que realizaram obras de melhoramento das suas habitações «tenham visto a sua renda agravada», uma vez que «o critério de conforto foi valorizado».
«Para além de o Governo não cumprir com a sua responsabilidade de realizar as intervenções que lhe competem, vai beneficiar com os investimentos dos moradores», acrescentou a deputada comunista, que propôs, entre outras medidas, «considerar para efeitos de cálculo dos rendimentos do agregado, com vista à aplicação da taxa de esforço, apenas os rendimentos dos elementos do agregado com idade igual ou superior a 25 anos» e «retirar do cálculo de rendimentos todos os prémios e subsídios de carácter não permanente, tais como horas extraordinárias, subsídio de turno, entre outros».
Depois de todas as bancadas parlamentares se terem pronunciado, Paula Santos frisou que ali «ficou claro quem está e se preocupa com os direitos e interesses dos moradores». A terminar, a deputada reafirmou que o PCP «vai continuar a lutar para eliminar estas injustiças». Também os projectos de lei apresentados pelo BE e pelo CDS foram chumbados.
A assistir ao debate e à votação estiveram dezenas de moradores de bairros de Lisboa (Lóios e Amendoeiras), Almada (Rosa) e Seixal (Quinta do Cabral).
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