Correia da Fonseca
Infelizmente, a XIX Cimeira Ibero-Americana não começou nada bem. Ainda ela estava nos entretantos, como diria uma figura de telenovela brasileira que ficou na memória e no apreço de muitos telespectadores, e do céu desceu uma carga de água que estragou o efeito previsivelmente lindo que devia resultar da instalação de uma gigantesca tenda transparente à ilharga da Torre de Belém. Pelos vistos, Deus já não é brasileiro ou, na alternativa, S.Pedro (tido correntemente como coordenador dessa questão das chuvas e do bom tempo), entrou em rebelião, espera-se que pontual. Depois, foi aquilo da Mariza. Não se trata, nem de longe, de suspeitar sequer de que Mariza não cante bem, era o que faltava! A questão é até precisamente a contrária: estou inclinado a crer que Mariza anda a cantar bem de mais, isto é, despropositadamente bem, porque canta o Fado, e para o Fado não está indicado o estilo do bel-canto operático nem nada que dele se avizinhe. Talvez seja uma espécie de maleita que ataca as intérpretes com muito bons dotes vocais, porque o caso tem precedentes. É claro que o pessoal dos vinte e um países estrangeiros participantes na Cimeira não terão dado por nada e terão ficado convencidos de que ouviram cantar o Fado, tanto mais que Mariza cuidou de nomear Amália a propósito de uma autoria que em rigor me parece polémica. O facto, porém, é que o Fado é outra coisa, como qualquer um pode confirmar indo ouvi-lo onde ele é cantado sem pretensões líricas. Depois, houve pequenos contratempos, desde o aspecto não excessivamente solene dado pelos guarda-chuvas abertos até à escassa orientação que levou o colombiano Uribe a entrar no recinto pela porta errada. Este minúsculo incidente, é claro que totalmente irrelevante, foi talvez consequência de a Cimeira não se realizar em Nova Iorque ou em Washington, lugares com que suponho Uribe mais familiarizado, hipótese que pode constituir motivo para uma ponderação quanto a futuros eventos similares. Compreende-se que ao executivo norte-americano, sempre muito atento ao que se passa na América Latina, dê mais jeito ter ali à mão os presidentes ou equiparados dos diversos países, e que alguns deles também prefiram, de futuro, encurtar distâncias.
Entretanto
Para além disto e até a julgar pelo que se ouviu a jornalistas destacados para fazerem a cobertura da Cimeira, esta também ficou um nadinha desvalorizada pela ausência de Hugo Chavez, de Raul Castro e de Daniel Ortega. Houve quem dissesse que Chavez não teria vindo para «não se sentar à mesma mesa com Uribe», mas a explicação ficou a boiar sem confirmações. Uma outra, adiantada ou apenas sugerida por outro comentador, pareceu interessante: o objectivo último desta Cimeira poderá ter sido, afinal e no fim de contas, o reforço do modelo capitalista implantado na grande maioria dos países do continente americano, e acontece que os governos de Cuba, da Venezuela e de outros países ainda, têm projectos diferentes. Assim, quando diversas vozes dirigentes se fizeram ouvir reclamando medidas coordenadas para «vencer a crise», o seu desejo deve ser entendido como sendo o do regresso a um capitalismo estabilizado por uns tempos, isto é, até que se levante a onda de uma nova crise. Entretanto, quer dizer, durante a estabilidade, estarão estáveis a exploração de recursos naturais da América Latina por empresas norte-americanas, a miséria de milhões de camponeses e de operários, outros traços socioeconómicos que se consagraram como típicos da região. Entende-se que este não seja um projecto que entusiasme um Chavez ou um Castro (Raul ou Fidel, para o caso tanto faz). Em compensação, digamos assim, parece ter sido quase unânime entre os participantes da Cimeira a rejeição pela encenação eleitoral havida nas Honduras para tentar a legitimação do golpe militar ali ocorrido em Junho, e convém salientar que essa recusa constitui uma clara derrota da administração Obama que apadrinhara a tosca maquilhagem. Enquanto isto, o tempo melhorara, as visitas estavam acomodadas num hotel decerto muito cómodo, nas horas em que o Sol tenha surgido por entre as nuvens hão-de ter notado a beleza natural da Linha do Estoril. Talvez algumas delas um dia voltem a título privado e, se assim for, a Cimeira terá sido um êxito no plano da promoção turística. Não se terá perdido tudo. E talvez alguém reflicta que é assim, com pequenos êxitos negociais, que se vai vencendo a crise. Até à próxima, é claro.
Avante - 03.12.09
À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.
03/12/2009
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