À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

26/09/2009

Considerações breves sobre a crise e sua evolução

Carlos Carvalhas

A crise aí está a mostrar como foram erradas:

- A política do tudo à exportação, com o abandono da política da produção de bens transaccionáveis para a substituição de importações e o definhamento do mercado interno.

- A política de desindustrialização do país, com a crescente e excessiva dependência do investimento estrangeiro aumentando a vulnerabilidade e a incerteza quanto ao futuro, de que a Quimonda – que assegurava ficticiamente o nosso saldo positivo na balança tecnológica – e a Auto-Europa são exemplos.

- A política das privatizações dos empresas básicas e estratégicas e serviços públicos, que não se traduziu em benefícios para o país, antes pelo contrário. No sector financeiro por exemplo, importantes Bancos nacionais caíram em mãos estrangeiras e outros aumentaram a sua dependência. Perdeu o Orçamento de Estado, pois as receitas dos impostos sobre estas empresas diminuíram de imediato. Perdeu a economia nacional como um todo, pois o crédito – bem público – passou a ser gerido segundo os interesses particulares dos accionistas e não segundo o interesse público[1]. As trafulhices no BCP, BPN e BPP – que são para já as conhecidas - evidenciam com clareza quais os desígnios da gestão privada e o pedido para a renacionalização da COSEC por parte dos exportadores, proposta já anunciada pelo governo, é a confirmação que aquela empresa nas mãos dos privados guiando-se pelos interesses particulares e de grupo não serve os interesses das exportações nacionais.

- A política de desvalorização e subalternização do investimento público; o combate ao défice com o estrangulamento da actividade económica; a submissão ao Pacto de Estabilidade e as concepções de que o mercado por si só era auto-regulador.

- A política de concentração de riqueza e da diminuição do poder aquisitivo das massas trabalhadoras e das camadas intermédias.

- O atraso com que se começou a reagir à crise, com as soberbas afirmações de que a economia portuguesa estava robusta e outras balelas do género, que só deixaram agravar a situação. A primeira resposta do governo foi a de ignorar a crise com o Banco de Portugal no seu “rame rame” e em que a política orçamental esteve praticamente ausente.

- A política de gestão das nossas reservas de ouro que foram sendo vendidas nos períodos de baixas cotações com o argumento de que não eram rentáveis – o que era verdade – mas não nos períodos de crise. A displicência com que têm sido geridas as reservas de ouro e as levianas concepções que tem aparecido quanto à sua aplicação mostram por parte do Banco de Portugal e de outros “doutos” economistas do sistema, que para estes tínhamos chegado ao «fim da história » e que já não haveria mais uma crise como a que estamos a viver. Como dizia um clássico, num outro sistema o ouro até pode servir para fazer latrinas, mas no sistema vigente continua a ser um valor refúgio que deve ser gerido não de forma imobilista – boi ápis – mas para a sua valorização e rentabilidade[2].

No plano internacional esta crise põe também em evidência a falência, entre outras, das políticas neoliberais e as bombas ao retardador que são as deslocalizações com as importantes desindustrializações nos países capitalistas mais desenvolvidos – Europa, principais países da UE... e consequentes pressões sobre os salários e o emprego, geradores de novas crises. Mostrou também a falência da supervisão, mantendo-se os off-shores e a livre circulação de capitais.[3]

A liberalização financeira, a livre circulação de capitais, as deslocalizações e a extensão da globalização capitalista com o desaparecimento da URSS foram factores de uma significativa transformação negativa na repartição dos rendimentos, designadamente em países mais desenvolvidos, o que foi engendrando um “modelo” de crescimento fundado no crescimento do endividamento, favorecido também pela inovação financeira. O consumo foi promovido essencialmente pelo crédito. E como as medidas de combate à crise continuam no mesmo sentido – à excepção do aumento da despesa pública de investimento, com efeitos lentos – estamos num período em que e recessão se auto-alimenta pela conjugação da diminuição dos rendimentos – salários, pensões – pelo desemprego e pelo endividamento.

No plano europeu esta crise mostrou também a falência do credo neoliberal e o mito da superioridade e eficácia do modelo norte-americano; a desadequação dos estatutos e da política do Banco Central Europeu e do Pacto de Estabilidade. Mostrou ainda como era ilusória a tese de que a economia europeia aguentaria taxas de juro elevadas, nas tentativas de credibilizar e valorizar o Euro, para alcançar um maior espaço como moeda de reserva e de pagamentos internacionais. Na realidade quando todos os sinais já eram evidentes da extensão em profundidade da crise em Junho do ano passado, o BCE ainda estava a subir a taxa de juro, só a 13 de Agosto é que começou a injectar liquidez no sistema e só em Outubro é que procedeu à primeira descida da taxa de juro da Euribor.

A crise pôs e continua a pôr em evidência estas erradas opções políticas e «teorias» económicas que não são neutras. Servem os interesses das classes dominantes e para melhor aceitação são revestidas com a capa de ciência económica e divulgadas por universidades e académicos enfeudados ao sistema.

Vencer a crise com operações de marketing

Não se vence a espiral descendente da recessão e a desconfiança, com slogans ou com sucessivas declarações de Obama, Trichet e outros responsáveis, de que já se começam a ver sinais de recuperação ou de que já se vê «a luz ao fundo do túnel...».

As declarações optimistas multiplicam-se mas depois a realidade espelhada no aumento do desemprego, nas previsões negativas do crescimento na zona euro, nas estimativas do FMI sobre o volume do lixo tóxico, sobre a situação do sistema financeiro nos EUA, na Inglaterra, na Alemanha, na Hungria, Letónia, Espanha, Irlanda, etc., etc., contrariam essas declarações.

Ainda recentemente (22.05.09) faliu um importante Banco da Flórida e o ABN Amro, que foi nacionalizado em Outubro de 2008, pediu uma nova ajuda financeira e a Comissão Europeia tem dado o seu acordo a várias injecções de liquidez.

Várias operações têm sido também desenvolvidas para se estabelecer a confiança na opinião pública. Uma delas foi a dos “testes de stress”[4] do sistema financeiro nos EUA, com declarações fantasiosas sobre a sua robustez; depois foi o FMI que afirmou que os “stress tests” deviam ser efectuados na Europa, mas depois de questionado ficou a saber-se que os resultados não seriam públicos e que a metodologia bem como os critérios também não o seriam. Também em Portugal o Banco de Portugal dava a conhecer segundo o Jornal “I” de 11.05.2009, que os Bancos nacionais tinham sido submetidos a “exames de stress” para avaliar a sua saúde financeira e necessidades de capital. Se a avaliação foi feita como a supervisão ao BPN, BCP e BPP podemos estar descansados!

Nos EUA os Bancos passaram a valorizar os seus activos não pelo valor do mercado, mas pelo valor que os próprios banqueiros consideram ser o seu valor real... Estima-se que esta operação vai «insuflar» os lucros artificialmente, o que poderá induzir incautos à especulação bolsista! É a contabilidade criativa em marcha! Infelizmente para os trabalhadores e para os povos a crise é muito mais complexa, profunda e longa do que os analistas e comentadores do sistema tinham previsto e designadamente nos EUA[5].

A incerteza do dólar e a
amortização da dívida


OS EUA têm continuado a resistir à constituição de um novo “Brethon Woods” e à perda dos privilégios do dólar. Mas as coisas vão-se agravando. Em Março a FED decidiu comprar Títulos de Tesouro emitindo moeda que não corresponde à produção de bens e
serviços, prática seguida também pelo Banco de Inglaterra e pelo Japão. Mas com um perigo adicional, pois o dólar é moeda de reserva e meio de pagamento internacional. Este aumento de papel moeda corresponde a uma desvalorização de facto.

Recentemente foi a vez do BCE com as chamadas “medidas não convencionais”! A credibilidade das divisas, a começar pelo dólar, está em causa, mas no caso do Euro que não tem o papel do dólar, a criação de moeda é uma medida que favorece o relançamento das economias e alivia o financiamento das dívidas públicas dos Estados membros.

Os EUA têm feito pressão sobre a China para que continue a comprar títulos de tesouro, maneira de financiar a sua gigantesca dívida externa.
Mas os receios da China, que já detém uma fatia importante daquela dívida – estima-se que a China e o Japão detenham cerca de 50% da dívida dos EUA – levam-na a ser prudente.

A China terá cerca de 2 000 milhares de milhão de dólares, sob a forma de títulos do Tesouro US e de obrigações de Agências mistas americanas e tem consciência do que lhe poderá acontecer face a uma desvalorização acentuada do dólar. O Banco Central Chinês no seu último Relatório trimestral avisava que «no momento em que diversas economias estavam a adoptar políticas monetárias não convencionais, o risco de desvalorização das principais divisas poderia crescer». E segundo Ambrose Evans Pritchard, no «The Telegraph», de 07.05.2009, a China tenta diversificar uma parte das suas reservas procurando alternativas aos Títulos de Tesouro americanos, adquirindo nomeadamente direitos de exploração de matérias-primas. E como é também sabido, a China já propôs uma nova moeda internacional assente nos “Direitos de Saque Especiais” emitidos pelo FMI.

Há quem afirme que os excedentes comerciais dos parceiros dos EUA não são suficientes para financiar o défice orçamental dos EUA, que continua a aumentar com as duas guerras em que está envolvido. E que estas despesas inconsideradas pressionam a cotação do dólar para a baixa, levando numa próxima etapa à perda do seu papel como moeda de reserva. Veremos. Mas esta é uma questão estratégica central. Uma queda acentuada do dólar teria consequências e reacções difíceis de imaginar, porque os países que acumularam excedentes com a exportação do petróleo e de muitas mercadorias veriam as suas reservas caírem a pique.

Mas nesta questão essencial dos privilégios do dólar não se pode contar somente com a força ou a fraqueza económica, mas também, com a força militar e política. Os principais países produtores de petróleo estreitamente ligados e dependentes dos EUA continuam a vender o barril do petróleo em dólares e a pressão dos EUA continua para que esta situação se mantenha. Não podemos esquecer o peso e o domínio do sistema financeiro americano sobre toda a vida dos EUA[6] e as suas ligações aos diversos países produtores de petróleo.

É neste quadro que o Ministro dos Negócios Estrangeiros português, Luís Amado, num artigo publicado no “Público” de 5de Junho, com o título «Futuro do Ocidente e das relações transatlânticas», começa por se interrogar «qual o lugar do Ocidente, no mundo pró-ocidental?», afirmando que a «resposta dependerá em boa medida da forma como o Ocidente souber controlar, na próxima década, o seu próprio processo de declínio» (sic). Isto é a «irrecusável partilha do poder!». E entre as várias propostas do governo português lá figura o «futuro da Aliança Atlântica e a definição e articulação do seu pilar europeu», concluindo que a entrada da França na estrutura militar da Aliança e as perspectivas abertas no domínio PESD vão permitir inovações importantes para o futuro da aliança, que o novo Conceito Estratégico da Nato, a aprovar na próxima Cimeira de Lisboa, deverá consagrar.

Face à crise e aos ganhos de força económica e não só de vários países ditos emergentes, o Ocidente» quer reforçar o seu braço armado, a NATO!
Dir-me-ão que isto nada tem a ver com respostas à crise do tipo - keynesianismo militar – ou com o acesso e domínio dos mercados de matérias primas estratégicas, que isto nada tem a ver com perspectivas de dominação. Que é só uma estratégia de defesa...


O Bloco Central e a crise

O PSD tem afirmado com verdade que antes da crise internacional, Portugal já se encontrava numa situação de marasmo e de crise. À quase estagnação em que o país se encontrava juntou-se a crise internacional. O que o PSD esconde é que foram também as suas políticas, no essencial coincidentes com a de Sócrates, e os seus governos os responsáveis por esse marasmo, estagnação crescente e dependência do estrangeiro.

António Guterres deixou o governo com a economia em declínio e saiu para não ficar no pântano,

Durão Barroso, para justificar a continuação das políticas de austeridade, em nome do défice disse que estávamos de tanga. Santana Lopes chegou a decretar o fim da austeridade e Sócrates, com a ajuda Constâncio, traduziu a linguagem da tanga com um défice orçamental excessivo, para justificar de novo a austeridade para os mesmos de sempre.

Há entre outros dois dados que mostram como se tem agravado a nossa situação com a rotação dos dois partidos sem alternativa. Em 1996, o nosso nível de endividamento externo líquido em % do PIB era de 10,4%. Em 2008 já era de 97,2%. Por outro lado o crescimento do PIB em Portugal entre 2005 e 2008, foi de metade da média dos países da zona euro, onde estão os países mais desenvolvidos. Quer dizer, entre 2005 e 2008, em vez de convergirmos, o que implicava termos tido um crescimento superior à média europeia, continuamos a divergir e a ser ultrapassados por outros. E as perspectivas não são melhores.

A ruptura com as políticas do Bloco Central de interesses protagonizado pelo PS e PSD é uma condição necessária para se romper com o domínio da oligarquia e avançar com uma política ao serviço do povo e do país.

Notas:
[1] O governo criou um grupo de contacto entre a banca e associações empresariais para avaliar as queixas dos empresários sobre gestão e concessão do crédito. “Diário Económico” 22/05/09
[2] Face à incerteza da evolução do dólar a China tem vindo a comprar importantes quantidades de ouro.
[3] As medidas propostas pelo G20 de Londres, que não acabou com os off-shores e as medidas aí preconizadas, bem como as que foram propostas pela Comissão Europeia, dois meses após o «Comité Europeu de risco sistémico» e o «Sistema europeu dos supervisores financeiros», embora possam reforçar o controlo e a supervisão, são medidas mais para darem satisfação à opinião pública do que para resolverem os problemas.
[4] Em 25 de Março de 2009 a Goldman Sachs estimava que as perdas potenciais dos Bancos europeus deveriam representar 10,1% do PIB desta zona e o FMI afirmava a 22.04.2009, “Diário Económico”, que o Banco Mundial precisaria de 875 milhões de dólares até final de 2010!
[5] O número de Bancos americanos que estão na lista vermelha da FDIC (Federal Deposit Insurance Corporation), organismo federal americano que garante os depósitos bancários, passou no último trimestre deste ano de 252 a 305, um aumento de 21% e de um tamanho médio de 631 milhar de milhão de dólares em capital para 721 milhares de milhão em igual período.
[6] Simon Johson, antigo economista chefe do FMI, numa interessante audição, em 21 de Abril, do Comité Económico, conjunto de parlamentares e senadores dos EUA, explicou como o sistema financeiro conquistou e arruinou a América e como conseguiram inculcar a ideia de que o que era bom para a finança era bom para os EUA, como no século passado se afirmava para a General Motors agora falida.

ODiario.info - 26.09.09

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