À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

09/04/2009

A crise e a contradição insanável do sistema capitalista

Pedro Carvalho

É evidente hoje para todos que estamos a viver a maior crise mundial desde a Grande Depressão dos anos 30 do século passado. Uma crise mundial que emana do centro do sistema capitalista mundial, com epicentro na sua potência hegemónica – os Estados Unidos.

As últimas previsões da OCDE apontam para uma contracção conjunta do produto nos países capitalistas mais desenvolvidos de 4,3% em 2009 e uma nova contracção em 2010 (-0,1%). Facto inédito nos últimos 60 anos. E avançam que em 2010, o número de desempregados no G7 atinja os 36 milhões, quase o dobro face a Julho de 2007.

Apontam também para uma contracção do produto mundial em 2009, pela primeira fez desde a segunda guerra mundial. Uma redução de 2,75%, superior à prevista pelo FMI e o Banco Mundial. A par com uma redução do comércio mundial de 13,2% em 2009, ou seja, a maior redução dos últimos 80 anos. O Banco Mundial prevê a contracção do produto na América Latina (-0,6%) e na Europa de Leste e Ásia Central (-2%) e uma desaceleração nas restantes regiões, o que mostra o cariz global da crise.

A OIT, por seu lado, afirma que o número de desempregados a nível mundial pode atingir os 240 milhões, sem ter em conta as centenas de milhões de trabalhadores «pobres»/vulneráveis e as centenas de milhões de excluídos do «mercado» de trabalho.

Estas previsões mostram a profundidade da crise. Crise que é mais um episódio de crise numa crise mais geral e estrutural do modo de produção capitalista.

Após um breve retorno aos episódios de crise dos anos 70, com a «estagflação» em 2007 e no primeiro semestre de 2008, os sinais de deflação são cada vez mais evidentes e a transformação da recessão numa depressão é hoje o principal receio da Tríade – Estados Unidos, União Europeia e Japão.

E tem razões para isso. Basta lembrar o exemplo do Japão, mergulhado numa longa estagnação económica e deflação continuada, pontuada com recessões, desde o crash bolsista de 1987, com o «rebentar» da bolha financeira. Crise que continua, apesar de todas as injecções liquidez e pacotes de estímulo fiscal do(s) governo(s) nipónicos nos últimos anos. Caso que dá vida à «armadilha da liquidez» keynesiana.

Ora as previsões agora avançadas para 2009, são as que são, já tendo em conta os efeitos dos maiores pacotes de sempre de estímulos monetários e orçamentais, concertados ao nível mundial, sobretudo na Tríade.

O «motor» do crédito, do qual depende actualmente a acumulação capitalista e o processo de valorização do capital, está parado e a volatilidade dos mercados financeiros continua, tendo em conta o stock de dívida existente e o grau de capitalização bolsista artificialmente atingido nos últimos 20 anos.

Isto apesar dos Governos e dos Bancos Centrais estarem a aplicar a «cartilha» de que foram acusados de não aplicar a quando do crash bolsista de 1929: aumentar os meios monetários em circulação, reduzir as taxas de juros nominais e estimular a procura agregada, por via orçamental, sobretudo com pacotes de investimento público para colmatar a falta de investimento privado.

Contudo, como no caso do Japão, as respostas clássicas de política monetária e orçamental parecem cada vez mais ineficazes. E obviamente a sustentabilidade orçamental destas políticas é cada mais posta em causa pela desproporção avassaladora entre a base material da economia – o produto, e o volume de capital financeiro, nomeadamente o volume de crédito, com a substituição progressiva de dívida privada por dívida pública. Desproporção que põe em causa um papel essencial do estado para o sistema capitalista, o de prestamista de último recurso.

E se muitos são tomados de surpresa pela dimensão da actual crise e da relativa ineficácia das medidas tomadas para a sua resolução, a questão fundamental é que não podemos compreender a crise se não tivermos em conta a sua natureza sistémica, que germina das contradições e limites do modo de produção capitalista.

A contradição entre o rápido desenvolvimento das forças produtivas e as condições limitadas em que se processa o crescimento do consumo, ou seja, entre a sobreprodução de capital sobre todas as suas formas e o crescente subconsumo das massas.

A crise é um momento de destruição de capital, de uma massa das forças produtivas como afirmava Marx no Manifesto, onde o sistema procura um equilíbrio que permita retomar o processo de valorização do capital. A crise é por isso inerente ao modo de produção capitalista, meio pelo qual se resolvem os bloqueios à realização da mais-valia, que provocam interrupções cíclicas no processo de acumulação de capital. A crise traz sempre consigo a transformação nas relações sociais de produção. Mas contraditoriamente, na resposta a crise o capital sai sempre mais concentrado e centralizado, aumentado por todas as vias a taxa de exploração do trabalho.

Os capitais que dão mais eficiência ao trabalho, que mais chamam a si os ganhos de produtividade, que mais substituem trabalho vivo por morto, elevam em cada crise o patamar da composição orgânica do capital, criando assim condições para uma nova crise.

Como afirmava Marx, na resposta à crise o sistema prepara «crises mais omnilaterais e mais poderosas», diminuído em cada etapa «os meios de prevenir as crises». O capital constitui assim uma barreira a sua própria expansão. A crise que vivemos é por isso a soma de todas as crises e do grau de sobre-acumulação atingindo pelo sistema capitalista.

Sendo a taxa de lucro o principal elemento de orientação do processo de acumulação capitalista, as condições que levam a sua baixa tendencial estão no centro da crise. E são as dificuldades crescentes de obtenção pelos capitalistas das taxas médias de lucro esperadas e de realização das mais-valias geradas na esfera produtiva que provocam a interrupção do processo de acumulação capitalista. Pois os gastos de investimento e consumo são indispensáveis para o processo de valorização do capital, garantindo a expansão do stock de capital existente e a realização das mais-valias.

A estagnação no crescimento da massa global de mais-valias transforma-se numa tendência natural do sistema para a estagnação económica. O sistema gera em resultado um cada vez mais maior número de desempregados, reflexo da crise de sobreprodução, do aumento da produtividade e cujo número é uma variável estratégica no aumento da exploração do trabalho.

A concorrência intercapitalista agudiza-se reforçando o processo de concentração e centralização do capital. O desenvolvimento das forças produtivas impõe a saída das fronteiras nacionais.

A internacionalização da produção contribui para o aumento da taxa de exploração, através da deslocalização dos segmentos da produção de mão-de-obra intensiva do centro do sistema capitalista para a sua periferia e através do alinhamento dos preços a nível mundial, que reduz o custo dos meios de reprodução da força de trabalho.

A obtenção de cada vez maiores quotas de mercado é assim uma forma de garantir uma maior apropriação de mais-valias a uma escala mundial, a qual é «ajudada» pela financeirização do capital.

Do que decorre uma progressiva autonomização dos fluxos financeiros e do capital-dinheiro, com o aumento exponencial do crédito, que permite antecipar o resultado do processo de valorização do capital. Esta é maior ilusão capitalista, um processo de valorização, em que o capital-dinheiro gera mais capital-dinheiro, sem passar pela produção.

A não obtenção das taxas médias de lucro esperadas na esfera produtiva leva à transferência das mais-valias geradas para a esfera financeira e sua cada vez maior centralização.

O progressivo predomínio do capital financeiro e sua autonomização potenciam o surgimento de crises monetárias e financeiras, com a desproporção crescente entre as mais-valias extraídas na esfera produtiva e o crescimento exponencial do capital financeiro, entre os meios monetários em circulação e os valores reais que supostamente representam.

Esta contradição traduz-se num crescente «cheque sem cobertura», na medida em que se vai esgotando a capacidade de expansão do capital financeiro, por não haver crescimento da base material que o suporte como contrapartida.

A crise financeira põe em evidência a natureza fictícia deste capital, mas é em si mesmo um sintoma da crise de sobreprodução e de sobre-acumulação que se alastra no sistema capitalista mundial.

A crise na sua génese advém, por isso, das contradições e divisões geradas pela apropriação privada das condições de produção – a questão central da propriedade. Esta é a característica distintiva da relação social que o capital representa. Esta é marca do actual estádio desenvolvimento capitalista, apontada por Lénine, a contradição entre o grau de socialização de produção atingido e o grau de concentração e centralização da mesma. Contradição insanável do modo de produção capitalista, que põe também a nu os limites do reformismo.

Contradição entre sobreprodução/subconsumo que evidencia um dilema moral irresolúvel no quadro do sistema, entre a capacidade de satisfazer as necessidades básicas de todos, tendo em conta o grau de desenvolvimento das forças produtivas, e a crescente pauperização relativa (e mesmo absoluta) das massas, que deixa milhares de seres humanos longe da satisfação das suas necessidades básicas.

Mas ilustremos alguns dos pontos em cima referidos. A segunda guerra mundial foi a saída para a Grande Depressão dos anos 30 e permitiu gerar as condições para relançar um novo ciclo longo de acumulação do capital ao nível do sistema capitalista mundial, nos anos 50 e 60. Mas no final dos anos 60, com o esgotamento das condições específicas do pós-guerra e com o rápido desenvolvimento das forças produtivas na Alemanha e no Japão, a crise de rentabilidade retornou ao sistema capitalista mundial, a concorrência intercapitalista intensificou-se e nem o «keynesianismo militar» que alimentava as guerras imperialistas no sudeste asiático, continha a crise latente de sobreprodução.

As crises dos anos 70, os denominados choques petrolíferos, puseram em evidência de novo a crise estrutural do sistema. Foi a época da «estagflação», que marca também a transformação da até então resposta inflacionária ou keynesiana do sistema à crise. Crise que reflectia também uma crise monetária e energética.

Na resposta, face ao desenvolvimento atingido das forças produtivas e as dificuldades na realização das mais-valias, o capital internacionalizou-se e concentrou-se. As multinacionais surgem em força, a par com uma nova revolução dos meios de produção.

O sistema monetário internacional, assente na conversão dólar/ouro, ruiu, criando as condições para o crescimento exponencial do capital financeiro. O desemprego disparou, permanecendo até hoje a níveis elevados. Em termos médios, só na tríade o número de desempregados aumentou 18 milhões entre os anos 60 e a actualidade.

Todas estas condições permitiram uma nova etapa na exploração do trabalho, impondo uma mudança na correlação de forças entre o capital e trabalho saída do pós-guerra.

Estes foram os elementos que se desenvolveram com as crises dos anos 80 e 90. Os anos da resposta neoliberal ou deflacionária do sistema à crise. Crises que consolidaram o denominado Consenso de Washington e mais tarde a Estratégia de Lisboa, impondo um novo aumento da taxa de exploração – redução dos salários reais, intensificação dos ritmos de trabalho e aumento do horário de trabalho.

A parte do produto que ia para o capital aumentava, com a progressiva descida de década para década do peso dos salários no produto ao nível mundial, mas sobretudo ao nível da tríade, traduzindo transferências de ganhos de produtividade do trabalho para o capital. O que reflectia também as dificuldades crescentes em manter as taxas de lucro e expandir a massa global de mais-valias.

Em paralelo, as taxas médias de crescimento do produto mundial continuavam a desacelerar de década para década, sobretudo nos países capitalistas mais desenvolvidos, confirmado a progressiva estagnação económica do sistema.

A par dum crescimento cada vez maior do capital financeiro, que entre bolhas e crises financeiras, de maior ou menor intensidade, ia mantendo «balões de oxigénio» temporários e fazendo crescer o stock de dívida, adiando e agravando a crise. Nas vésperas da crise do subprime do Verão de 2007, a capitalização bolsista, a dívida titularizada e os activos financeiros em posse dos bancos comerciais, representava mais de quatro vezes o produto mundial.

O desemprego continuou a crescer, com mais 35 milhões de desempregados só nos últimos 20 anos ao nível mundial, num quadro de proletarização crescente de quase todas as camadas sociais, reflectindo também o agravamento da sobreprodução de capital em todas as suas formas, nomeadamente o excesso de capacidade industrial instalada.

Mas a crise de sobreprodução e sobre-acumulação do sistema capitalista mundial traduz-se hoje também numa crise ambiental, nomeadamente uma crise energética, que põe em causa a normal «alimentação» da acumulação capitalista, criando não só bloqueios ao processo de valorização do capital, como potenciando a deriva destrutiva do sistema para toda a Humanidade, com as possibilidades de guerra e de catástrofes ambientais.

A anarquia do modo de produção capitalista e a apropriação privada das condições de produção, têm levando a uma concentração dos consumos e um ritmo acelerado de delapidação dos recursos naturais, gerando poluição e desperdício. O declínio tendencial da taxa de reposição do capital natural evidencia a contradição crescente entre a capacidade de regeneração do meio natural e as necessidades da acumulação capitalista.

Tendência, a par com o declínio tendencial da taxa de lucro, marca o quadro da concorrência intercapitalista, num contexto de crescente dependência de matérias-primas do centro do sistema capitalista mundial, que tem levado à progressiva recolonização da sua periferia (como é o caso de África), à militarização das relações internacionais e à guerra.

Mas existe uma outra «crise» com contornos ainda não definidos e que potencia a deriva destrutiva do sistema, relacionada com a progressiva mudança do mapa geopolítico a nível internacional e a emergência de novas potências na cena internacional, como a China, ou re-emergência, como no caso da Rússia. Emergência que no caso na China e da Índia também contribuem para a crise de sobreprodução e sobre-acumulação.

Crise potenciada pelo declínio da hegemonia política e económica dos Estados Unidos, particularmente do papel de reserva de valor do dólar a nível mundial, face a sua crescente hegemonia militar, chamando a si metade das despesas militares mundiais e com tropas estacionadas em mais de 120 países. Para mais num quadro crescente dependência externa dos Estados Unidos, de recursos naturais e do financiamento da sua economia.

Neste quadro, agravado pela sobre-extensão planetária do sistema capitalista, é pertinente questionar que o grau de destruição das forças produtivas é necessário para que se retome o processo de valorização do capital? Que condições podem potenciar um novo ciclo longo de acumulação de capital? Ou pondo a questão como Lénine, no terreno do capitalismo, «que outro meio poderia haver, a não ser a guerra, para eliminar a desproporção existente entre o desenvolvimento das forças produtivas e a acumulação de capital, por um lado, e, por outro lado, a partilha das colónias e das esferas de influência do capital financeiro?». É de sublinhar que esta foi a «solução» encontrada para a Grande Depressão dos anos 30.

Se é verdade que a crise que atravessamos põe em evidência os limites históricos do sistema capitalista, o sistema não implodirá ou cairá por si. O capital é uma relação social e por isso precisa ser derrotado. O sistema sobreviverá em crise permanente, em progressiva estagnação, pontuada com episódios de retoma não sustentados, acompanhados pela destruição de capital e desemprego crescente, em paralelo com o aumento da pauperização relativa (e mesmo absoluta) dos trabalhadores e dos povos e a continuada degradação ambiental do planeta.

A certeza que temos, é que na resposta à crise, a ofensiva de classe vai agudizar-se, procurando por todas as vias aumentar a taxa de exploração. Se as crises potenciam a luta de classes, como se pode depreender do recrudescimento das convulsões sociais e das oportunidades revolucionárias que despontam ao nível mundial, estas não resultam em processos revolucionários, a não ser quando surgem sujeitos sociais com disposição revolucionária.

É por isso cada vez mais necessário que os trabalhadores tomem consciência das causas sistémicas por detrás da crise e das desigualdades sociais – a apropriação privada das condições de produção. Que o capitalismo não é reformável, nem regulável, nem existem soluções capitalistas para a crise estrutural do capitalismo. Que não é possível conciliar os interesses antagónicos entre exploradores e explorados.

Superar a ilusão reformista é o primeiro passo na assunção das responsabilidades pelos trabalhadores na ruptura essencial com o modo de produção capitalista, o que dependerá como sempre, da luta, resistência e conquistas dos trabalhadores e dos povos. Da luta de classes.

A revolução de Outubro abriu uma época de revolução social, uma janela de esperança na construção de uma nova sociedade. E a condição essencial, hoje como em 1848, encontra-se na abertura do Manifesto – «proletários de todos os países, uni-vos!». Uni-vos, para libertar o Homem do jugo da exploração. Uni-vos, para continuar a construção do socialismo.
ODiario.info - 09.04.09

Sem comentários:

Related Posts with Thumbnails