Natália Faria
O protesto dos universitários contra os cortes na atribuição das bolsas pode inaugurar um novo ciclo de insurreição dos jovens, avisa o sociólogo e professor de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Elísio Estanque.
Se os jovens que saem das universidades continuarem a defrontar-se com a precariedade laboral, marcada pelos contratos a termo e pelos recibos verdes, o mais certo é que protestos como a recente invasão do call center do BES, em Lisboa, se propaguem e radicalizem. Quem avisa é o sociólogo Elísio Estanque - co-autor da investigação Do activismo à indiferença - Movimentos estudantis em Coimbra - a propósito da manifestação dos estudantes universitários portugueses que protestam hoje, em Lisboa, contra as alterações nos critérios de atribuição das bolsas de estudo. Os universitários alegam que, por causa dos cortes, milhares de estudantes vão ser forçados a abandonar a universidade. O sociólogo lembra a propósito que as questões financeiras foram o gatilho para a onda de protestos dos anos 1990 e sustenta que podemos estar na antecâmara de um novo ciclo de insurreição da juventude. Apesar disso, não antevê que se repitam em Portugal rebeliões de massa ou sequer a violência que, noutros países europeus, colocou os jovens na dianteira dos protestos contra as medidas de austeridade dos governos.
Por que é que, em Portugal, os protestos dos estudantes são tão ordeiros, sem a violência que vimos ainda há dias em Inglaterra, França e Grécia?
Uma das explicações tem que ver com o crescimento muito acelerado do sistema de ensino em Portugal, que levou a que, num período curto, tivessem entrado na universidade jovens oriundos das classes trabalhadoras e das classes média e média baixa. Um estudo que fizemos há pouco tempo em Coimbra mostrou que à volta de 30 por cento dos jovens universitários eram filhos da classe trabalhadora. Os constrangimentos económicos e também culturais das famílias de onde os jovens são oriundos levantam barreiras à compreensão do que se passa no mundo, porque, quanto maior a escassez de recursos, maior é a pressão familiar para que os estudantes aproveitem o tempo em que estão deslocados e, portanto, a pagar rendas e a contribuir para aumentar as despesas do orçamento familiar. Isso, associado a um panorama mais geral de um certo desinteresse das camadas mais jovens pelas questões públicas, contribui para reduzir os níveis de participação pública da nossa juventude.
Haverá também algum fenómeno de contaminação? Esta espécie de conformação social não é exclusiva dos jovens.
Não é exclusiva dos jovens mas, se pensarmos nas grandes viragens políticas do mundo ocidental a partir dos anos 60, foi a juventude que apareceu em pleno como grande protagonista, uma espécie de super sujeito quase a querer substituir o velho operariado enquanto protagonista das viragens político-culturais. Aí, a juventude afirmou-se como uma espécie de vanguarda capaz de tomar a dianteira e de impor uma vontade colectiva no sentido de obrigar à abertura das instituições e de promover o aprofundamento da democracia. Os movimentos dos anos 60 e do Maio de 68 em França simbolizam essa pressão enorme por parte da juventude e foram a apoteose para a afirmação de um novo actor colectivo: a juventude escolarizada.
Em França continua a ser a juventude a liderar os protestos, mesmo quando o que está em causa são medidas como o adiamento da idade da reforma, que não os toca de forma imediata.
Em França, onde há quatro ou cinco anos houve aquele ciclo de violência urbana com jovens dos bairros periféricos e das minorias étnicas, os protestos também decorrem do contexto cultural e das tensões de índole racial e étnica que são delicadas de gerir. O povo português tende a ser mais passivo e a estar sob influência de uma certa cultura de resignação e de aceitação das dificuldades. Isso é algo que é ancestral e que foi inculcado através dos séculos por acção de uma lógica muito patriarcal, tutelar e paternalista, em que a própria Igreja Católica teve alguma influência, já para não falar do Estado Novo, que levou esta situação até ao extremo. Portanto, o facto de os jovens portugueses habitualmente não se rebelarem de forma tão intensa e tão radical, como acontece noutros países mais desenvolvidos, terá porventura que ver com a dimensão da escolarização no nível superior que, em França, é muito maior, começou muito mais cedo e, portanto, a familiarização da juventude com as questões científicas, culturais e políticas está muito mais consolidada. Em Portugal, apenas 11 a 12 por cento da população em idade activa tem formação superior, e, mesmo nas faixas etárias abaixo dos 34 anos, os nossos valores de presença de jovens na universidade são ainda dos mais baixos da Europa. Por outro lado, ao contrário do que aconteceu com a geração rebelde nos anos 60, os apelos do consumo, das actividades lúdicas e das ocupações do tempo livre são muito mais despolitizados, muito mais fora de uma certa cultura de irreverência que existia na época em que a universidade era bem mais elitista do que hoje.As ferramentas que, como o Facebook, estão largamente disseminadas não ajudam a mobilizar os jovens para as causas?
As redes sociais e a Internet não podem de maneira nenhuma ser ignoradas porque têm e vão continuar a ter um papel decisivo na construção de redes de insurreição da juventude. A questão é que os jovens continuam numa fase de grande desinteresse e cepticismo relativamente à vida pública e à vida política. Agora, isso não quer dizer que os jovens fiquem indiferentes quando se sentem directamente atingidos. Viu-se, por exemplo, que a última onda de contestação nas universidades portuguesas deu-se nos anos 90, quando foram introduzidas as propinas. Portanto, quando a questão económica se torna mais patente, os jovens acabam por participar mais. As manifestações de hoje também têm que ver com as alterações nos critérios de atribuição das bolsas de estudo, portanto, mais uma vez são as questões económicas, só que agora num enquadramento de crise e num momento em que a própria indiferença e o próprio individualismo e o próprio consumismo atingiram um ponto de exaustão. Daqui para a frente não se pode ir mais fundo e, como a sociedade funciona por ciclos e os movimentos sociais também funcionam por ciclos, acredito que poderemos assistir nos próximos anos a um revigoramento das formas de participação juvenil em diversas dimensões da vida pública.
Estamos à beira de um momento de viragem?
As viragens na época que estamos a viver nunca são repentinas. Penso é que poderá haver vários momentos, várias situações que até podem ser passageiras e que não serão certamente linearmente cumulativas, no sentido de se esperar que venha a haver uma grande rebelião de massas, como nos anos 60. Hoje tudo se dilui muito rapidamente, e os protestos tendem a ser muito mais momentâneos. Há dias, aqueles jovens dos precários [Precários Inflexíveis] invadiram simbolicamente o call center do BES, em Lisboa, e eu acredito que iniciativas deste tipo vão começar a propagar-se e a ter um impacto maior, porque os jovens começam a ficar desesperados e, se não virem uma luz ao fundo do túnel, vão começar a insurgir-se. Os que entraram no mercado de trabalho na última década estão, na sua larga maioria, em situação precária, com contratos a termo certo, em regime de recibos verdes, numa relação muito pontual com o mercado de emprego, o que revela uma situação de autoritarismo, por um lado, e de grande dependência por parte de quem necessita de um emprego, seja ele qual for, e que tem que estar disponível para tudo, até para aceitar estágios e trabalhos praticamente a custo zero, na esperança de que isso venha a entreabrir uma porta para o emprego. Se este panorama geral não for invertido, acredito que situações como a invasão do call center do BES vão propagar-se. Acredita que esse extravasar de raiva possa acontecer mesmo num país em que uma greve geral se convoca com um mês e meio de antecedência?
Somos ordeiros e - a não ser em períodos extraordinários como o 25 de Abril e, antes disso, a 1.ª República - pouco dados a revoltas espontâneas radicais, mas não acho que seja de excluir que elas possam acontecer. Não sabemos ainda o que é que poderá seguir-se em termos do efeito que esta greve geral pode ter. A agitação e a instabilidade ainda não se propagaram muito para o campo social e, não querendo ser alarmista, há um certo recalcamento do descontentamento social que tem que se manifestar de alguma maneira. Sobre isto queria lembrar que estas manifestações de descontentamento mais ou menos programadas a prazo, se vierem a ter uma boa adesão, o natural é que inibam outro tipo de reacções mais violentas e mais radicais. Habitualmente, alguns comentadores exageram nos juízos que fazem relativamente a iniciativas deste tipo e acusam os sindicatos de todas as coisas maléficas. Enquanto sociólogo, quero sublinhar que as sociedades, sistemas onde a ordem e o caos convivem permanentemente, têm necessidade de se fazer ouvir. Quando os partidos, os governos, os parlamentos não cumprem aquilo que deveriam cumprir em termos do mandato que recebem dos cidadãos, é natural que o descontentamento venha ao de cima e, numa sociedade democrática, esse descontentamento tem todo o direito de se fazer ouvir.
Por que é que, em Portugal, os protestos dos estudantes são tão ordeiros, sem a violência que vimos ainda há dias em Inglaterra, França e Grécia?
Uma das explicações tem que ver com o crescimento muito acelerado do sistema de ensino em Portugal, que levou a que, num período curto, tivessem entrado na universidade jovens oriundos das classes trabalhadoras e das classes média e média baixa. Um estudo que fizemos há pouco tempo em Coimbra mostrou que à volta de 30 por cento dos jovens universitários eram filhos da classe trabalhadora. Os constrangimentos económicos e também culturais das famílias de onde os jovens são oriundos levantam barreiras à compreensão do que se passa no mundo, porque, quanto maior a escassez de recursos, maior é a pressão familiar para que os estudantes aproveitem o tempo em que estão deslocados e, portanto, a pagar rendas e a contribuir para aumentar as despesas do orçamento familiar. Isso, associado a um panorama mais geral de um certo desinteresse das camadas mais jovens pelas questões públicas, contribui para reduzir os níveis de participação pública da nossa juventude.
Haverá também algum fenómeno de contaminação? Esta espécie de conformação social não é exclusiva dos jovens.
Não é exclusiva dos jovens mas, se pensarmos nas grandes viragens políticas do mundo ocidental a partir dos anos 60, foi a juventude que apareceu em pleno como grande protagonista, uma espécie de super sujeito quase a querer substituir o velho operariado enquanto protagonista das viragens político-culturais. Aí, a juventude afirmou-se como uma espécie de vanguarda capaz de tomar a dianteira e de impor uma vontade colectiva no sentido de obrigar à abertura das instituições e de promover o aprofundamento da democracia. Os movimentos dos anos 60 e do Maio de 68 em França simbolizam essa pressão enorme por parte da juventude e foram a apoteose para a afirmação de um novo actor colectivo: a juventude escolarizada.
Em França continua a ser a juventude a liderar os protestos, mesmo quando o que está em causa são medidas como o adiamento da idade da reforma, que não os toca de forma imediata.
Em França, onde há quatro ou cinco anos houve aquele ciclo de violência urbana com jovens dos bairros periféricos e das minorias étnicas, os protestos também decorrem do contexto cultural e das tensões de índole racial e étnica que são delicadas de gerir. O povo português tende a ser mais passivo e a estar sob influência de uma certa cultura de resignação e de aceitação das dificuldades. Isso é algo que é ancestral e que foi inculcado através dos séculos por acção de uma lógica muito patriarcal, tutelar e paternalista, em que a própria Igreja Católica teve alguma influência, já para não falar do Estado Novo, que levou esta situação até ao extremo. Portanto, o facto de os jovens portugueses habitualmente não se rebelarem de forma tão intensa e tão radical, como acontece noutros países mais desenvolvidos, terá porventura que ver com a dimensão da escolarização no nível superior que, em França, é muito maior, começou muito mais cedo e, portanto, a familiarização da juventude com as questões científicas, culturais e políticas está muito mais consolidada. Em Portugal, apenas 11 a 12 por cento da população em idade activa tem formação superior, e, mesmo nas faixas etárias abaixo dos 34 anos, os nossos valores de presença de jovens na universidade são ainda dos mais baixos da Europa. Por outro lado, ao contrário do que aconteceu com a geração rebelde nos anos 60, os apelos do consumo, das actividades lúdicas e das ocupações do tempo livre são muito mais despolitizados, muito mais fora de uma certa cultura de irreverência que existia na época em que a universidade era bem mais elitista do que hoje.As ferramentas que, como o Facebook, estão largamente disseminadas não ajudam a mobilizar os jovens para as causas?
As redes sociais e a Internet não podem de maneira nenhuma ser ignoradas porque têm e vão continuar a ter um papel decisivo na construção de redes de insurreição da juventude. A questão é que os jovens continuam numa fase de grande desinteresse e cepticismo relativamente à vida pública e à vida política. Agora, isso não quer dizer que os jovens fiquem indiferentes quando se sentem directamente atingidos. Viu-se, por exemplo, que a última onda de contestação nas universidades portuguesas deu-se nos anos 90, quando foram introduzidas as propinas. Portanto, quando a questão económica se torna mais patente, os jovens acabam por participar mais. As manifestações de hoje também têm que ver com as alterações nos critérios de atribuição das bolsas de estudo, portanto, mais uma vez são as questões económicas, só que agora num enquadramento de crise e num momento em que a própria indiferença e o próprio individualismo e o próprio consumismo atingiram um ponto de exaustão. Daqui para a frente não se pode ir mais fundo e, como a sociedade funciona por ciclos e os movimentos sociais também funcionam por ciclos, acredito que poderemos assistir nos próximos anos a um revigoramento das formas de participação juvenil em diversas dimensões da vida pública.
Estamos à beira de um momento de viragem?
As viragens na época que estamos a viver nunca são repentinas. Penso é que poderá haver vários momentos, várias situações que até podem ser passageiras e que não serão certamente linearmente cumulativas, no sentido de se esperar que venha a haver uma grande rebelião de massas, como nos anos 60. Hoje tudo se dilui muito rapidamente, e os protestos tendem a ser muito mais momentâneos. Há dias, aqueles jovens dos precários [Precários Inflexíveis] invadiram simbolicamente o call center do BES, em Lisboa, e eu acredito que iniciativas deste tipo vão começar a propagar-se e a ter um impacto maior, porque os jovens começam a ficar desesperados e, se não virem uma luz ao fundo do túnel, vão começar a insurgir-se. Os que entraram no mercado de trabalho na última década estão, na sua larga maioria, em situação precária, com contratos a termo certo, em regime de recibos verdes, numa relação muito pontual com o mercado de emprego, o que revela uma situação de autoritarismo, por um lado, e de grande dependência por parte de quem necessita de um emprego, seja ele qual for, e que tem que estar disponível para tudo, até para aceitar estágios e trabalhos praticamente a custo zero, na esperança de que isso venha a entreabrir uma porta para o emprego. Se este panorama geral não for invertido, acredito que situações como a invasão do call center do BES vão propagar-se. Acredita que esse extravasar de raiva possa acontecer mesmo num país em que uma greve geral se convoca com um mês e meio de antecedência?
Somos ordeiros e - a não ser em períodos extraordinários como o 25 de Abril e, antes disso, a 1.ª República - pouco dados a revoltas espontâneas radicais, mas não acho que seja de excluir que elas possam acontecer. Não sabemos ainda o que é que poderá seguir-se em termos do efeito que esta greve geral pode ter. A agitação e a instabilidade ainda não se propagaram muito para o campo social e, não querendo ser alarmista, há um certo recalcamento do descontentamento social que tem que se manifestar de alguma maneira. Sobre isto queria lembrar que estas manifestações de descontentamento mais ou menos programadas a prazo, se vierem a ter uma boa adesão, o natural é que inibam outro tipo de reacções mais violentas e mais radicais. Habitualmente, alguns comentadores exageram nos juízos que fazem relativamente a iniciativas deste tipo e acusam os sindicatos de todas as coisas maléficas. Enquanto sociólogo, quero sublinhar que as sociedades, sistemas onde a ordem e o caos convivem permanentemente, têm necessidade de se fazer ouvir. Quando os partidos, os governos, os parlamentos não cumprem aquilo que deveriam cumprir em termos do mandato que recebem dos cidadãos, é natural que o descontentamento venha ao de cima e, numa sociedade democrática, esse descontentamento tem todo o direito de se fazer ouvir.
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