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13/09/2010

"Não vale a pena voltarem das férias. Estão despedidas!"

Partiram para as férias com a felicidade típica de quem põe o trabalho para trás das costas durante algumas semanas, mas no regresso encontraram os portões das fábricas fechados e uma carta de despedimento selada e pronta para entregar no centro de emprego mais próximo. Sem trabalho, sem explicações e, na maior parte dos casos, com salários e subsídios em atraso. Os casos deste género multiplicaram-se este Verão no nosso país e afectaram centenas de trabalhadores que agora deitam as mãos à cabeça e fazem contas ao que o futuro lhes reserva. São histórias de costureiras, carpinteiros, pedreiros, metalúrgicos, operários e operárias, homens e mulheres, todos a engrossar uma lista de desempregados que conta já com quase 600 mil nomes. Conheça algumas das pessoas para quem as férias transformaram o descanso de ter um ordenado certo ao fim do mês no desespero de não saber o que lhes reserva o futuro.

"Na semana antes de irmos de férias passei duas noites em claro, ali naquele barracão, agarrada ao ferro de engomar, só para garantir que a encomenda ficava pronta. Se soubesse o que sei hoje..." Os olhos de Maria de Fátima perdem- -se na direcção daquele que até há poucas semanas era o seu local de trabalho e que agora serve de garagem para o BMW do dono da Salgado & Cunha, uma fábrica de confecção têxtil de Brito, em Guimarães, que encerrou portas de vez quando as suas funcionárias partiram para férias.

Os lamentos da mulher sobem de tom à medida que vai desfiando a história de um despedimento que ainda não consegue explicar, ecoam pela rua e esbarram nos acenos de cabeça consternados das colegas que a acompanham na peregrinação à empresa. Aproveitando o tradicional período de paragem para férias, o dono da Salgado & Cunha decidiu fechar a empresa, atirando para o desemprego as suas 20 funcionárias, todas mulheres, todas desesperadas.

O encerramento, garantem, era o último cenário que lhes passava pela cabeça quando, no dia 6 de Agosto, arrumaram as suas fardas nos cacifos e se despediram umas das outras, no ambiente típico de quem se prepara para esquecer o trabalho por algumas semanas. "Ainda não tínhamos recebido as horas extraordinárias que nos devia e prometeu pagar-nos o subsídio de férias na semana a seguir", interrompe Ema Azevedo, assegurando que "como não havia sinais de que isso podia não acontecer foi tudo para casa". "O problema foi depois: o patrão disse que nos ligava para vir receber. Passou uma semana, passou outra e nada. Quando nos fartámos de esperar, viemos aqui à fábrica receber, mas nem nos abriu o portão. Entregou- -nos umas cartas pelas grades e disse que não havia subsídios para ninguém", lamenta a costureira de 38 anos, lembrando a sentença que lhe ditou o homem que a empregava desde os seus 16 anos: "Não vale sequer a pena voltarem das férias. O melhor é ir já ao centro de emprego, porque estão todas despedidas!"

Desesperada, Ema conta como sentiu naquela manhã o desamparo que vivem os quase 600 mil portugueses que actualmente se encontram desempregados. "O que é que eu faço agora? Tenho duas filhas pequenas para criar, o meu marido ganha 500 euros. Não vamos ter dinheiro para conseguir comer o mês todo, quanto mais para comprar o material da escola!", indigna-se. "Pois, aqui estamos todas assim. Temos todas filhos. E o nosso futuro? E os nossos direitos?", atira Alzira Natália, uma das mais velhas do grupo. Com mais de uma década de trabalho na empresa, as veias desta operária de 45 anos ameaçam saltar para fora do pescoço, enquanto amaldiçoa o antigo patrão.

Alzira conta que nunca pensou que a fábrica pudesse fechar. No entanto, confessa que desconfiou da fiabilidade da promessa feita pelo dono da fábrica em relação ao pagamento dos subsídios de férias, tendo confrontado a sua mulher acerca do assunto. "Perguntei-lhe se nos ia mesmo pagar, e ela respondeu-me toda ofendida: 'Estás a duvidar da minha palavra? Olha que a minha palavra vale mais que o dinheiro', disse-me ela, e eu acreditei. Agora estamos na rua e sem subsídios", lamenta-se. O calor da conversa faz com que Alzira deixe escapar um desabafo que resume toda a sua situação. "Somos simples operárias, toda a nossa vida foi passada na fábrica. Agora tiram-nos isto e deixam-nos sem futuro."

Confrontado com a notícia deste encerramento, Arménio Carlos não precisa de ouvir as queixas das operárias até ao fim. "É sempre assim. Os patrões aproveitam o período de férias para encerrar a fábrica de vez e não dão nenhuma satisfação aos trabalhadores. Quando regressam de férias, tudo o que os espera é um portão fechado a cadeado, uma fábrica vazia e uma carta de despedimento", explica ao DN este membro da comissão executiva da CGTP, responsável pelo acompanhamento deste tipo de situações um pouco por todo o País.

O fenómeno, garante, "não é novo, mas tem vindo a agravar-se nos dois últimos Verões, principalmente na zona norte". O "modus operandi", sublinha o sindicalista, "é quase sempre o mesmo, quase sempre ilegal." "São situações de lockout [quando um trabalhador é impedido de ocupar o seu posto de trabalho (um crime punível com pena de prisão)] em que, na maior parte das vezes, os patrões aproveitam a ausência para férias dos trabalhadores para retirar as máquinas do interior das fábricas e assim reduzir o valor que tem a empresa para efeitos de insolvência e de pagamento das dívidas aos seus trabalhadores."

Foi exactamente a retirada das máquinas da fábrica de mobiliário em que trabalhava que alertou Henrique Leal para o pesadelo em que se transformou a sua vida nos últimos meses. Até aqui tudo corria bem. "Este estava a ser o melhor ano da minha vida", desabafa o antigo encarregado da ZS Mobiliário, em Rebordosa, Paredes, encerrada no final de Junho, durante as férias dos funcionários.

Com apenas 26 anos, Henrique sentia que tudo lhe corria bem: tinha um emprego estável, acabara de comprar casa e passava o tempo livre na companhia da mulher a preparar a chegada de Melina Sofia, a filha que há-de nascer ainda este mês. No entanto, tudo se ensombrou subitamente quando, na tarde do último sábado de Junho - alguns dias depois de ter iniciado as férias -, recebeu um telefonema, no mínimo, perturbador.

"Henrique, não sei o que se está a passar, mas acho que estão a tirar as máquinas da empresa. É melhor vires cá." A voz do outro lado do auscultador era de uma vizinha, acordada pelo barulho dos camiões que se enchiam à medida que as máquinas da ZS eram transportadas para fora das instalações. Com o coração aos saltos de preocupação, Henrique não perdeu tempo. "Fui a correr para lá e no caminho chamei os outros colegas que também moram por perto", recorda, confessando que, "embora não quisesse admitir", assim que chegou ao local da fábrica percebeu o que se estava a passar. "Estava lá o patrão e disse que a empresa não ia fechar, mas ninguém acreditou, e por isso usámos os nossos carros para bloquear a saída dos camiões."

Os ânimos exaltaram-se quando, confrontado com a persistência dos trabalhadores, o proprietário da empresa decidiu contar a verdade: "Disse que havia problemas, mas que depois iria esclarecer tudo", recorda Henrique, lembrando que só a chegada de uma patrulha da GNR conseguiu acalmar a situação e travar a saída das máquinas da fábrica, por um lado, e, por outro, comportamentos "menos próprios" dos empregados, habituais em quem se vê a cair num poço sem fundo.

Nos 15 dias que se seguiram a este sábado, os 12 funcionários da ZS Mobiliário - nove homens e três mulheres, uma das quais estava na altura do encerramento da fábrica grávida de oito meses - montaram literalmente um acampamento à porta da empresa. "Decidimos ficar em vigília, para garantir que não saía uma única máquina", conta o jovem desempregado, lembrando que naquelas duas semanas passou a fazer a sua vida num pequeno espaço relvado junto à entrada, entre as vigílias diárias com todos os funcionários e os turnos nocturnos de três horas, divididos pelos homens. A guarda só terminou quando um funcionário do Tribunal de Penafiel se deslocou à fábrica e procedeu ao arresto dos bens.

"Nessa altura é que viemos para casa. Já sabíamos bem o que se estava a passar. Sabíamos que a fábrica ia fechar, que íamos ficar sem emprego. Já tínhamos um advogado e já tínhamos avançado com um pedido de insolvência da empresa", descreve Henrique com a calma de quem conta uma história que ouviu no telejornal.

O tom sereno das suas palavras altera-se apenas quando é questionado sobre a previsibilidade da situação em que agora se encontra. "Nunca foram capazes de nos dizer nada. Nem uma palavra. Quando decidi comprar casa e soube que a minha mulher estava grávida, fui falar com o patrão, para saber com o que podia contar, e ele disse-me que não me preocupasse, que a empresa estava a crescer e que ia continuar assim. Dois meses depois fechou", indigna-se. Embora admita ter-se apercebido de que "nem tudo ia bem, porque às vezes se atrasavam a pagar ordenados", o agora antigo encarregado da ZS Mobiliário assegura que palavras como encerramento ou desemprego não faziam parte do seu vocabulário.

Henrique é hoje um poço de preocupações: o "pé-de-meia" que tinha guardado para o nascimento da filha e que lhe garantiu a sobrevivência nestes meses está a terminar, a mulher está prestes a dar entrada na maternidade e não há perspectivas para o futuro. "Já nos inscrevemos no fundo de garantia salarial e já há data marcada para a questão da insolvência, mas isso não resolve nada. Continuamos sem trabalho e cheios de dívidas", lamenta com um encolher de ombros.

O facto de os funcionários da ZS Mobiliário terem impedido a saída das máquinas da empresa pode ter garantido que vão receber tudo a que têm direito, explica Messias Carvalho, um especialista em direito do trabalho que já teve em mãos muitos casos deste género. "Saber se a empresa tem património e accionar os tribunais no sentido de garantir que esse património é usado para pagar eventuais dívidas", salienta, referindo que este é um instrumento importante para utilizar no caso de encerramento de empresas com despedimentos ilícitos.

Caso os trabalhadores não consigam identificar o património da fábrica - porque já foi retirado ou vendido -, "devem tentar perceber se os sócios, administradores, ou o 'dono' da empresa tem património e accioná-lo", recorda Messias Carvalho. O especialista diz que este "é um mecanismo pouco usado porque as pessoas normalmente não sabem que o podem fazer, mas o Código do Trabalho prevê a responsabilização destes pelas dívidas da empresa". "É um mecanismo que já usei com sucesso em algumas situações", refere.

De acordo com este advogado, o aumento deste tipo de casos deve-se "ao mau funcionamento do sistema judicial português: há muita impunidade e os empresários aproveitam- -se disso", acusa, sublinhando que os casos se arrastam sempre por vários anos nos tribunais antes de ficarem completamente resolvidos.

Lina foi surpreendida com a notícia do despedimento por um sms. Já passava das 23.00 do dia 26 de Agosto quando o telemóvel desta trabalhadora da Pinhosil, uma fábrica de confecção de calçado em Arouca (Aveiro), anunciou a chegada de uma nova mensagem. "A partir de segunda-feira, a empresa vai fechar. Vão receber a carta para o desemprego", dizia o sms. "Nem queria acreditar no que lia", conta a funcionária, rodeada pelas restantes 17 colegas que receberam a mesma mensagem.

Reunidas à entrada da vivenda que nos últimos anos serviu de base a esta empresa que chegou a receber grandes encomendas de sapatos para a Zara, as 18 funcionárias esperam por Manuel Pinho Silva, o dono da empresa e responsável pelos inéditos sms. "O que queríamos era que ele desse a cara e nos explicasse porque fez as coisas assim, porque decidiu fechar a fábrica quando sempre houve trabalho e porque nos despede sem explicações", lamenta Lina Ferreira, que diz que "se a Pinhosil fechou não foi por falta de trabalho. O que se diz por aí é que ele [Manuel Pinho Silva] tem muitas dívidas às finanças e assim...".

"Eu já só quero receber o que me devem: dois meses de trabalho e o subsídio de férias", exclama a poucos metros uma outra funcionária da Pinhosil. Aos 42 anos, esta é já a terceira vez que Conceição Teixeira se vê no desemprego por causa do encerramento do seu local de trabalho. "É sempre a mesma coisa, sempre as mesmas desculpas e no fim acabo sempre no desemprego", queixa-se, mostrando uma preocupação acrescida com este último revés de uma vida que não tem sido fácil. É que, se nas outras situações, explica, sempre conseguiu dar a volta por cima, agora é mais complicado: "É a terceira vez que fecha uma empresa onde trabalho, mas aqui é diferente porque estamos numa altura em que não há trabalho, esta é uma região muito pobre e além disso já tenho 42 anos e isso faz com que não haja muitas expectativas em relação ao futuro."

No entanto, garante Conceição, mais importante que o futuro é o presente. "Preciso de dinheiro agora. Preciso de comprar comida, preciso de vestir os meus dois filhos", insurge-se enquanto recorda que o facto de a empresa não ter pago os salários e os subsídios atempadamente fez "com que fosse obrigada a passar as férias em casa". "Coitados dos meus filhos, não tiveram direito a um único dia de praia este ano..."

Entre as queixas e as lamúrias das funcionárias chega o representante do patrão - que acabou por não aparecer -, que as convida a uma reunião no interior da fábrica. Duas horas depois, saem da cave da vivenda com um olhar ainda mais consternado. Lina traz um envelope branco, a carta de despedimento, numa mão e uma pá e uma vassoura na outra. "Tudo o que trazemos da reunião é isto: uma pá e uma vassoura, que são nossas porque fomos nós a pagá-las", lamenta Lina Ferreira, resignada ao facto de que os próximos meses serão repartidos entre os dias passados no centro de emprego e as reuniões com o advogado, para "tentar receber aquilo a que temos direito".

http://dn.sapo.pt/bolsa/emprego/interior.aspx?content_id=1659929

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