À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

02/09/2010

A besta

Anabela Fino

A informação foi veiculada na edição de segunda-feira do Diário de Notícias: ascende a quase meio milhar o número de medicamentos que desapareceram temporária ou permanentemente do mercado, muitos dos quais sem alternativa.

Não se pense que se trata de fármacos mais ou menos dispensáveis. Nada disso. Em causa estão medicamentos fundamentais para tratar o cancro, doenças raras e cardiovasculares, que é como quem diz indispensáveis para a saúde pública e, segundo a própria Ordem dos Médicos, «insubstituíveis porque não há outros que verdadeiramente tenham a mesma eficácia».

Para a pergunta imediata que uma questão de tal monta coloca – é bom ter consciência de que se trata de fármacos para defender a vida ou pelo menos minorar o sofrimento de seres humanos –, a saber, por que foram tais medicamentos retirados do mercado, a resposta é brutal: deixaram de dar lucro.

Lê-se e não se acredita. Será talvez um lapso, um exagero, um texto truncado... Mas não; o DN, que volta ao tema no dia seguinte, cita mesmo o secretário de Estado da Saúde, Óscar Gaspar, que admite «uma revisão excepcional» do preço a pagar por aqueles medicamentos, alguns dos quais não seriam «revistos há dez anos». Tão simples como isso, uma questão de preço, sem uma palavra de indignação, sem uma nota de reflexão sobre a política do medicamento e da saúde que deixa a vida humana dependente de critérios de lucro. Enquanto isso, o Infarmed (Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de saúde, I.P. sob a tutela do Ministério da Saúde) limitou-se a escamotear o assunto num comunicado publicado na respectiva página oficial, onde nada diz sobre as razões da retirada dos 500 medicamentos do mercado mas faz saber, alegadamente para sossegar os cidadãos, que existem «alternativas terapêuticas» e que Portugal dispõe de «cerca de 14 000 medicamentos autorizados, nas suas diferentes dosagens e formas de apresentação». Uma nova fórmula de «quem quer saúde, paga-a». Quanto ao drama dos que ficam à mercê da ganância do lucro, os serventuários da besta capitalista nada têm a dizer.

http://www.avante.pt/pt/1918/opiniao/110292/

Sem comentários:

Related Posts with Thumbnails