Vítor Dias
Já me tinha, por várias vezes, aproximado deste tema embora de forma relativamente subtil (ver 2º § desta «carta aberta»), mas agora é tempo de o abordar com a maior clareza possível. O que quero avançar é que, com a ressalva de que a memória é traiçoeira, julgo estar em marcha um nunca visto (e de contornos absolutamente asfixiantes) movimento de opinião publicada no sentido de expropriar as próximas eleições de conteúdos que, por definição, lhe deviam ser intrinsecamente inerentes, e de amarrar e formatar, em cínico nome do «pragmatismo» e de um suposto «estado de necessidade», as opções dos eleitores a um limitado quadro de escolhas de voto, alegadamente sustentado ou ancorado no ponto a que, em diversos domínios, o país chegou. Assim, a este respeito:
O que é muito triste de verificar é que esta poderosa e perigosa operação, vindo sobretudo de políticos, comentadores e bloggers próximos do PS, do PSD e do CDS, está também sendo servida, naturalmente com nuances próprias e diferentes celofanes, por pessoas que pertencem àquele esquerda que agora descobriu (Cavaco Silva não diria melhor) os encantos de adjectivos como «credível» e «exequível» (ver aqui). No primeiro grupo, pode dar-se o exemplo de Marcelo Rebelo de Sousa ontem na sua missa dominical na TVI a querer circunscrever o debate eleitoral à questão de saber quem é que tem soluções para que em Abril e em Junho se possam pagar as tranches da dívida externa, matéria que naturalmente limitou ao PS, PSD e CDS, depois de ter deixado claro que discussões sobre culpas não interessam nem ao menino Jesus. Quanto a mim, só certamente por falta de memória ou inspiração, é que não repetiu a cena de Mário Soares em 83 ou 84 virando-se na AR para a bancada do PCP para perguntar se, por acaso, na caixa da Soeiro Pereira Gomes não haveria cacau bastante que o PCP pudesse emprestar para que o país honrasse urgentes compromissos financeiros externos.
Quanto ao segundo grupo, o da «esquerda» razoável ou pragmática, pode valer por todos a crónica que Daniel Oliveira hoje publicou no Expresso online onde prevê as tácticas dos diversos partidos e depois enuncia o que, segundo ele, os eleitores realmente esperam de cada um na actual situação. Neste âmbito, vale a pena reter que Daniel Oliveira enquanto ao PS só pode moderadamente que « esclareça se, para além de adiar a intervenção do FMI e queixar-se da oposição, tem soluções a médio prazo, que passem por uma coordenação europeia para a inevitável e urgente renegociação da dívida. E se, entretanto, pretende começar a distribuir os sacrifícios com alguma decência.», depois de prever quanto ao PCP e BE que « vão gritar, julgando que basta ser o eco da irritação geral. Só que se é para acumular forças com a desgraça alheia, os desgraçados vão percebem que não é dali que virá a solução», o que vem exclusivamente reclamar do PCP e do BE é que « digam as suas condições para participar numa alternativa ao bloco central. ».
Como se vê, para este esclarecido teclado, aí está de novo a ideia peregrina e absurda de que as campanhas eleitorais são o terreno ideal para negociações entre partidos a um ponto tal que parece que a defesa dos suas próprias orientações, políticas e projectos deveriam ficar para segundo plano. Depois, segue-se a infantilidade ou genética diletância de supôr que isso das «condições» é coisa fácil de formular antes de terem sido contados os votos. De caminho, esquecem-se várias outras coisas: é que se as «condições» fossem cerradas e extensas, logo viria quem dissesse que só foram enunciadas para serem rejeitadas; se forem escassas, «mínimas» ou «credíveis» esquece-se que quem as apresentasse passaria a ter como campanha tudo o resto (bem maior e mais grave certamente) que teria revelado estar disposta a aceitar, tolerar ou engolir. E, por fim, esquece-se que a qualquer coisa medianamente decente (e que honestamente, no estado actual das artes, não sei o que seja) o PS logo responderia que não, nem pensar, o que só criaria para quem tivesse apresentado as tais «condições» o fortalecimento da imagem pública da sua marginalização em termos de futuras soluções governativas e definições de política.
Agora atenção: eu não sou nem tão estúpido, nem tão inexperiente nem tão distraído que não pressinta ou saiba que esta poderosa ofensiva ideológica e política de conformação e formatação do pensamento e atitudes dos eleitores não tenha pernas para andar. A diferença está em que eu não me submeto nem me rendo a ela, não lhe confiro nem inocência nem naturalidade, antes a procuro denunciar e combater com o limitado vigor intelectual e político que me resta.
Não, prezados cidadãos e cidadãs: não há nada que ateste melhor a força e a vitalidade da democracia e a soberania dos eleitores do que votarem de acordo com as suas convicções de fundo e em coerência com as indignações, protestos e lutas em que participaram nos últimos anos de desgraça, crise, atraso e retrocesso social. Sim, estimados eleitores e eleitoras: o que vos estão a pedir e vos vão pedir cada vez mais intensamente até ao dia de voto é que se esqueçam e assim absolvam as políticas que nos conduziram aqui e quem partidariamente tem indisfarçáveis culpas e responsabilidades, é que circunscrevam o leque das vossas opções de voto precisamente às forças cujas políticas e medidas tanto vos agrediram, indignaram e irritaram. Sim, caros compatriotas, o que mais pesa, no pós-eleições, sobre as soluções governativas e respectivas políticas não é um voto aprisionado naquilo que alguns, por conveniência e interesse próprio, baptizam de «credível», «possível» ou «exequível» mas o convicto, confiante reforçado apoio em votos a uma nova política e aos que, contra ventos de falsas inevitabilidades e marés de alegadas fatalidades, coerentemente a defendem e propõem.
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