À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

04/04/2011

A legenda

Correia da Fonseca

"1. Era, às 20 horas do passado sábado, a RTP1, isto é, o mais importante canal da televisão pública, a brindar-nos com a primeira notícia da noite, decerto a mais importante.
A imagem, a locução vinda do estúdio, as últimas informações prestadas em directo pelo repórter deslocado ao local do acontecimento, falavam-nos das eleições para a presidência do Sporting. Longe de mim a veleidade de objectar a relevância do evento no plano da vida nacional. Quanto a esse aspecto basta dizer que as imagens nos deram conta da presença do dr. Jorge Sampaio que ali se dirigia para exercer o seu direito de voto clubista, não decerto em prejuízo dos seus esforços para erradicar a tuberculose do mundo mas testemunhando que as preocupações de escala planetária são perfeitamente compatíveis com o interesse pelo futuro imediato do clube do seu afecto. Por acaso, não tive a oportunidade de ver imagens da presença do dr. Pedro Santana Lopes no mesmo local, mas não tenho a menor dúvida de que também ele ali acorreu. Enfim, as coisas são o que são e a escala de prioridades da RTP é o que é. E foi quando a RTP1 tanto se esforçava para dar ao País o que presumivelmente ao País mais interessava, pois de outro modo não se entenderia tamanha dimensão noticiosa, que uma informação dada em discreta legenda passada em rodapé, aliás de mistura com muitas outras, li qualquer coisa que me prendeu a atenção.
2. O que eu li então, e como eu decerto uns bons milhares de telespectadores decerto sobretudo sportinguistas (sem prejuízo de a mesma legenda poder ter sido repetida noutro ou noutros momentos da emissão da RTP1 naquela noite, já se vê) foi, palavra por palavra, que «a população não quer cortes no sector público». A informação não me surpreendeu por várias razões, sobretudo porque também faço parte dessa massa humana de dez milhões, números redondos, que a RTP tratava, e bem, por «população», isto é, por povo. É claro que eu já sabia, e não apenas por mim próprio mas antes porque estou atento ao que se passa e diz à minha volta, no que aliás não faço favor nenhum, que o povo não quer que os tais cortes no sector público, de que tanto se tem falado recentemente e que tanto têm sido preconizados por distintos cavalheiros que são muito assíduos na TV, passem de um projecto supostamente técnico para se tornarem em realidade que facilmente se revelará funesta, para não dizer que atroz. É que o povo sabe muito bem que é o sector público que ainda lhe proporciona cuidados médicos, medicamentosos e afins, quando a doença lhe bate à porta. Sabe que é o sector público que ainda presta algum apoio monetário, embora cada vez mais magro e mais difícil, quando a violência do despedimento o atinge. Sabe que é o mesmo sector que, por intermédio da agora tão agredida Escola Pública, lhe permite a instrução e formação dos seus filhos quando os recursos financeiros não lhe chegam para pagar uma das quase sempre caríssimas escolas privadas. E sabe mais: sabe que o Serviço Nacional de Saúde, o subsídio de desemprego enquanto efectivo amparo perante a perda de posto de trabalho, a possibilidade de que crianças e jovens estudem mesmo quando não tenham pais ricos, são não apenas direitos obtidos na sequência do derrube da ditadura fascista mas também, e sobretudo, valores civilizacionais que também integram os Direitos Humanos apenas invocados, e muito parcialmente, quando o reaccionarismo internacional os quer usar para justificação dos seus crimes.
3. Ora, é sabido que a direita política, agora liderada por aquele jovem já perto da meia-idade que anda por aí tendo no bolso o elenco governativo a que anseia presidir, tem como primeira das suas medidas supostamente saneadoras da crise o tal corte no sector público. Não espanta: é óbvio que não se dispõe a cortar nos interesses privados que de facto a telecomandam; além de que a direita é revanchista, está longe de ter esquecido Abril e por isso quer, com sequentemente, destruir o que dele ainda resta. Trata-se, afinal, de roubar a quase todos para não incomodar alguns nem beliscar os seus proventos. Não é difícil de perceber que seja assim, e é claro que o povo entende-o, de onde decerto a tal informação em rodapé. Mas aqui emerge qualquer coisa de misterioso: diz-se que uma ou mais sondagens, decerto realizadas por impecáveis empresas, prevêem uma estrondosa vitória eleitoral do PSD e a entronização de um Governo Coelho. Perante a evidente contradição entre legenda e sondagem, fica a suspeita de que alguém está a enganar-se nas contas."

http://www.odiario.info/?p=2030

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