"O processo político em Portugal está centrado nisto: um esforço enorme do centrão político para prosseguir na sua presença no poder. E, portanto, os interesses económicos e sociais inerentes à sustentação desse centrão - com mais inclinação para o PS, com mais inclinação para o PSD - é que jogam neste processo. Estamos desafiados a encontrar alternativas. (...) A esquerda tem um grande desafio, que é o de passar de uma posição de denúncia e afrontamento pontual para uma posição de desenvolvimento de estratégias que mobilizem a sociedade portuguesa"
Na semana em que o Governo anunciou ao País o mais grave pacote de austeridade dos últimos anos e a CGTP, a comemorar o seu 40.º aniversário, reagiu marcando uma greve geral para 24 de Novembro, o secretário-geral da intersindical - cargo que ocupa desde Dezembro de 99, tendo sido seu coordenador desde Junho de 86 - analisa o momento que se vive na sociedade portuguesa e critica que as medidas agora tomadas atinjam apenas os mais pobres. À beira de completar 62 anos, o filho de agricultores cuja formação-base é o Curso Industrial de Montador Electricista, entretanto reforçado com um curso superior, que tem como referências de vida Lula da Silva, Álvaro Cunhal e Nelson Mandela, reconhece que está na altura de a Esquerda começar a envolver-se nas grandes decisões da governação.
A greve geral [marcada para 24 de Novembro] já estava decidida ou foi determinada pelas medidas que foram conhecidas esta semana e que o Governo pretende inscrever no Orçamento Geral do Estado de 2011?
Eu posso fazer uma confissão. A decisão desta greve geral é uma construção muito complicada, trabalhosa. Foi sendo feita aos bocadinhos, conforme se foi reflectindo sobre a situação em que se encontram os trabalhadores e sobre aquilo que se perspectiva para o futuro, do ponto de vista das medidas que têm incidência fortíssima nas condições de vida dos trabalhadores, dos reformados, dos desempregados.
Desde quando?
A reflexão para a possibilidade de avançarmos para uma greve geral surgiu antes das férias. Quando, em Maio/Junho, se debatia a possibilidade de uma luta conjunta a nível europeu - que se realizou agora a 29 de Setembro -, fomos dos que defenderam que se deveria mesmo equacionar declarar greve em todos os países...
Mas só agora foi conhecida essa decisão, depois de José Sócrates ter anunciado as medidas [a inscrever na proposta de Orçamento]… Foi determinante o anúncio destas medidas para a CGTP dizer "vamos fazer uma greve"?
Este foi um "clique" último que reforçou a dinâmica que vinha sendo construída.
Havia [na CGTP] divergências quanto a essa decisão?
Havia divergências quanto a tempos, quanto a formas. E múltiplas! O que levou à convergência foi um debate profundo em que este aspecto entrou, mas entraram muitos outros. Do ponto de vista nacional e do ponto de vista europeu.
O senhor e a CGTP estavam à espera de um apertar de cinto desta dimensão?
Infelizmente, nós sabemos que o País caminha no sentido de se afundar. Portanto, quando caminha num sentido destes e quando a sociedade manifesta sinais de pressão para uma harmonização no retrocesso - que é uma falsa harmonização, nunca se consegue igualdade nesse caminho -, as coisas podem ser muito duras. Agora, o que foi anunciado não é o mais grave do problema. O mais grave é que estas medidas provocam recessão, provocam directamente mais desemprego. E com recessão económica não há possibilidade de se criar emprego, diminuem as contribuições para o Estado, diminuem os impostos.
Portanto, poderá ter de haver um outro pacote adicional a este em 2011?
Tem de haver um sacudir desta [política]. O grande problema é que nós vivemos num sistema político muito concreto, e neste sistema sabemos que há coisas a que temos de responder. Estamos prisioneiros da dívida externa.
E também do défice…
E do défice! Mas também de uma falta de estratégia de desenvolvimento. Esta terceira componente de olhar o futuro, de ver como se há-de dinamizar a economia, de como se há-de melhorar a capacidade do poder de compra dos portugueses que vivem pior...
Mas a montante não tem de estar sempre o resolver destes problemas pontuais?
Não. Tem de ser resolvido em simultâneo! Essa é uma visão que nós não aceitamos.
O que falta, então, nesta visão do Governo?
Em fases de grande crise nas sociedades ou nos países, o segredo para sair dessas situações de bloqueio está sempre em dois ou três aspectos fundamentais. Um é haver uma concepção estratégica que faça convergir dimensões de reforma com dimensões de ruptura. Temos esses bloqueios da dívida, do défice, temos de responder a eles, temos de encontrar reformas. Mas temos de encontrar, também, as dimensões de ruptura. Temos de sacudir a submissão de Portugal a este processo de agiotagem que está a aprisionar a Europa, em particular os países mais débeis. O segundo aspecto é apresentar projectos que tenham credibilidade, falar a verdade. Não é possível mobilizar a sociedade dizendo que o pacote X vai resolver tudo e, passadas umas semanas, dizer que já não é esse pacote, que tem de ser outro. Tem de haver a capacidade de sensibilizar e mobilizar os portugueses, porque há uma coisa que o povo tem mais do que adquirida perante os problemas: a necessidade de fazer sacrifício.
Neste processo encontra mentiras de líderes políticos?
Mentiras claras. Quando um primeiro-ministro ou um ministro diz "com este pacote estão resolvidos todos os problemas", por exemplo, e depois chega-se a outra edição e "não, não estão. Afinal, agora tem de se ir fazer isto, porque isto era o submarino de que nos esquecemos...", isto não é verdade! Mas há aspectos piores. O ministro das Finanças tornou-se inimigo do povo e inimigo da economia. Acho que é patético um ministro das Finanças quase apelar ao sector privado para reduzir salários! Então ele não quer mais impostos?! Então ele não quer os portugueses a contribuírem para a Segurança Social? Então ele não quer mais emprego? Que concepção é esta?! Como se, alguma vez na história, os patrões tivessem cometido o erro de pagar salários acima daquilo que podem pagar. Isto é uma aberração do ponto de vista objectivo de um actor político! O ministro das Finanças - tenho todo o respeito por ele enquanto tecnocrata, enquanto académico - pode saber muito, mas não sabe interpretar esse conhecimento para o pôr ao serviço do povo.
Qual destas medidas o surpreendeu mais?
Não queria responder a isso. Há uma que é a continuação da pior surpresa: tudo o que é sacrifícios para o mundo do trabalho e para o povo é quantificado. Aquilo que diz respeito aos sacrifícios do sector financeiro é enunciado, podendo a montanha vir a parir um rato.
Mas foi anunciado um novo imposto para o sector financeiro.
Viu alguma descrição de como vai ser aplicado? Quais as amplitudes disso? Em regra, estas medidas em direcção aos poderosos… no fim são como a montanha que pare um rato.
Há especialistas que já dizem que este pacote não vai chegar e que provavelmente ainda vêm aí medidas adicionais em 2011. Também é essa a sua opinião?
Eu coloco é a outra questão. Acima de tudo, estas medidas não resolvem o fundamental, porque fundamental é arranjar caminhos para haver crescimento económico e haver criação de emprego!
O que pensa da incorporação de fundos da PT no Estado para resolver o problema do défice em 2010?
Por falta de tempo, ainda não tive oportunidade de falar com o presidente da PT. Desejo ouvir directamente dele o que diz sobre isto. Do que se vai conhecendo, esta colocação dos fundos permite uma transferência que resolve o problema do défice em relação a 2010, mas no futuro compra encargos para o Estado. E alguém vai pagar. Falta saber uma coisa: se aquilo não tem nenhum buraco. Porque há muita gente que diz que é capaz de já vir com um buraco de algumas centenas de milhares de euros.
Sim ou não? Acha que vai ser possível um entendimento entre o PS e o PSD com base nestas medidas que foram conhecidas?
Acho que desde o início há um entendimento entre o PS, o PSD e o Presidente da República. E esse é o drama, designadamente quando estamos às portas de umas eleições presidenciais, em que parece que vamos ter umas eleições que não são em democracia. É uma espécie de colocação do indivíduo que serve o entendimento e o compromisso, sendo que o entendimento e o compromisso são sobre uma actuação e sobre a execução de políticas que colocam povo a sofrer. Veja-se isto: no Brasil estamos em tempo de eleições presidenciais. O Lula não pode ser candidato, tem uma candidata que apoia, e Lula tem o apoio de cerca de 80% da população brasileira. Essa possibilidade de manipulação do poder, que é real para um indivíduo que tem 80%, não o inibiu de ir ao debate político para a sociedade. É uma coisa que vale a pena ver! Nós aqui andamos à espera de nomear um presidente em nome de um entendimento e de um compromisso. Azar dos diabos, entendimento e compromisso que estão cheios de malfeitorias para o povo.
Já percebemos em quem não vota. Em quem vai votar nas próximas eleições presidenciais?
Quando chegar ao dia, decido.
Temos visto crescer a dramatização em torno da aprovação, ou não, do Orçamento do Estado. O senhor e a CGTP consideram importante que o País tenha um Orçamento aprovado na Assembleia?
É importante e indispensável para o País ter governação, ter Orçamento do Estado e ter Orçamento do Estado apresentado com clareza, com rigor e com transparência. E que haja uma assunção muito objectiva dos conteúdos e dos compromissos inerentes a esse Orçamento do Estado.
E, segundo a sua perspectiva, isso não está no horizonte?
Temos andado numa situação em que o Governo tem grandes dificuldades em avançar com as propostas que acha que devem avançar - porque não quer assumir essa clareza e essa transparência, tem medo das implicações, dos custos que isso tem na sua credibilidade perante a sociedade e da sua projecção para o futuro. Entretanto, formou-se aqui um jogo de chutar responsabilidades de um lado para o outro. Ou seja, o Governo, que tem a convergência do PSD e o apoio do PSD em tudo que são medidas sociais de aperto do cinto ao povo, quer também que o PSD assuma alguma responsabilidade noutras matérias menos simpáticas e de mais custos para outros sectores da sociedade portuguesa. E o PSD, com a sua ambição de ser alternativa, sente que não deve fazer isto, e andam aqui a ver quem é que fica com a responsabilidade da coisa. Há uma convergência objectiva quanto à linha política que pretendem seguir - continuação e aprofundamento da matriz que vem de trás. E o Presidente da República gosta disto, é defensor do centrão e do compromisso para a continuidade. E este jogo até lhe está a dar jeito, porque vai fazendo campanha eleitoral sem estar em campanha eleitoral. Ou melhor, vai ganhando posições eleitorais sem estar formalmente em campanha eleitoral.
Na análise política que faz desta situação não se referiu aos partidos de esquerda, o Partido Comunista e o Bloco que normalmente estão à margem destas questões da governação. Não acha que isso tem de mudar para que a sociedade portuguesa não fique refém das negociações entre PS e PSD?
Acho que é útil e muito importante que mude. Mas o facto é que, neste momento, o processo político em Portugal está centrado nisto: um esforço enorme do centrão político para prosseguir na sua presença no poder. E, portanto, os interesses económicos e sociais inerentes à sustentação desse centrão - com mais inclinação para o PS, com mais inclinação para o PSD - é que jogam neste processo. Isso continua a marcar. Agora... nós estamos desafiados a encontrar alternativas. E acho que a esquerda tem um grande desafio, que é o de passar de uma posição de denúncia e afrontamento pontual para uma posição de desenvolvimento de estratégias que obriguem perante a percepção e a mobilização da sociedade portuguesa.
José Sócrates garante que vai defender o chamado Estado social e diz que prefere subir impostos a cortar na saúde e na educação. O PSD já veio dizer que não aceitará qualquer aumento da carga fiscal. Como acha que se vai resolver esse impasse e, faço já outra pergunta associada a esta, até quando estão os contribuintes portugueses dispostos a aguentar mais impostos em nome do despesismo do Estado?
Primeiro: quem são os contribuintes portugueses? É que há uma parte significativa da riqueza que não contribui para o Orçamento do Estado.
Está a falar de que sectores?
Estou a falar, por exemplo, da dimensão da economia clandestina, da economia paralela. Bem mais de 20% do volume da nossa economia. Estamos a falar de muitos milhares de milhões de euros. Depois, é necessário um efectivo combate à fraude e à evasão fiscal. Há que ir aonde a riqueza está concentrada! E em Portugal criou-se uma barreira. Quando se fala em pôr a riqueza a pagar mais, resumem isto a uma camada, às vezes média/alta, ligada ao trabalho, e não querem ver a dimensão concreta da riqueza.
Mas acha que, por outro lado, também é preciso combater o despesismo do Estado?
É indiscutível. Nós temos três grandes problemas: aumentar as receitas é indispensável, diminuir as despesas - evitar os desperdícios, os descarrilamentos -, mas, simultaneamente, tratar do desenvolvimento do País, e disto quase não se fala!
Não acha que é preciso cortar nas despesas do Estado, nos gastos das famílias...
Claro! Mas, atenção, os três grandes problemas são estes: dívida pública, que é preciso baixar senão andamos a pagar juros. Mas esta dívida resulta, em grande parte, da desvalorização do sector produtivo; uma das teses de modernização neste País é que era natural o desaparecimento do sector produtivo, e não há nenhum país que se desenvolva, veja-se aliás a estratégia dos países que estão a sair da crise...
Está a falar dos cortes que Portugal fez durante muitos anos na agricultura, nas pescas...?
Na agricultura, nas pescas, nos transportes marítimos, na indústria metalomecânica, em sectores da indústria pesada...
Vamos ter de fazer de novo o caminho inverso?
Claro que temos de fazer um caminho inverso! Pode não ser com as mesmas actividades, porque entretanto a sociedade desenvolveu-se. Outra questão é o défice. Nós temos um défice que é preciso combater. Mas o défice agravou- -se não por aumento das pensões e da melhoria do sistema de saúde mas porque se foi buscar dinheiro ao Orçamento para ir em socorro da economia privada em nome da crise! E o terceiro aspecto que é preocupante é uma acumulação de falsos sentidos de modernidade. Portugal engoliu em pleno a ideia de que o consumo a qualquer custo é sinónimo de modernidade.
Há pouco pareceu-me depreender das suas palavras que não considerou muito importante a acção do Presidente da República de chamar os partidos a Belém antes de se começar a discutir o Orçamento na Assembleia...
Ele tem de os chamar. Até já devia ter chamado [antes]! Há aqui um retardamento em função de um jogo eleitoral, também protagonizado pelo Presidente da República, que é um acrescento negativo a tudo o que lhe disse sobre esta situação que estamos a viver no plano político. Há um retardamento claro!
Para ficar muito claro, acha que o PS e o PSD vão entender-se quanto ao Orçamento?
Não há dúvida quanto a isso! Primeiro, naquilo que diz respeito ao apertar do cinto do povo entendem-se. Aliás, uma das questões que colocamos no momento presente é esta: o País está limitado por uma ignóbil campanha de pedidos de sacrifícios a uma parte da sociedade muito grande, que é cerca de metade da sociedade portuguesa, que vive em limites baixos. As pessoas têm pouco e foram convencidas de que os subsídios de desemprego, que os salários mínimos, que as pensões sociais e as prestações já são benesses e, "cuidado, porque vocês são uns malandros"! Mais de metade, talvez mais de cinco milhões de portugueses, é esta sociedade. Não têm organizações próprias muito vivas, não têm uma dinâmica social e estão debaixo desta pressão, da inevitabilidade dos sacrifícios. Isto é uma perda enorme para se encontrar saídas, e é a isto, também, que uma central sindical tem de dar resposta.
Se o Governo avançar com a penalização total ou em parte dos funcionários públicos no que respeita ao décimo terceiro mês, qual será a posição da CGTP?
Não tem sentido, não pode ser! Há muito onde cortar antes disso. Não aceitamos! Uma coisa que dizemos, e não dizemos levianamente, é que é um imperativo nacional aumentar os salários.
Isso não pode estar em causa se, por acaso, o salário mínimo ficar congelado?
Não tem sentido! Os dois factores que evitaram que a pobreza em Portugal se agravasse profundamente na última década, e que ainda criam aqui alguns tampões de segurança, são o efeito de um aumento progressivo e significativo do salário mínimo nos últimos anos, desde 2006, e duas ou três medidas significativas adoptadas: uma primeira pelo eng.º Guterres e mais uma ou duas que criaram alguns tampões e protecção a camadas da população muito desprotegidas. Se isso não acontecesse, era um desastre.
Para encerrarmos esta questão, se por acaso não houvesse entendimento e se Portugal tivesse de partir para 2011 a viver em duodécimos, isso seria mau para o País?
É mau para o País! É um prejuízo para o País não ter um Orçamento claro e com responsabilidades identificadas. Uma situação que leve a uma diluição das responsabilidades no plano político é um agravamento da situação política, que terá de imediato reflexos do ponto de vista económico e do ponto de vista social. Essa é a minha convicção, estou a dizê-lo em nome pessoal, não fizemos ainda um debate sobre essa hipótese. Agora, o que é verdade e me parece inquestionável, é isto: nós precisamos das coisas claras e da responsabilização assumida para que se possa fazer penalizações, mas também de escolhas e questionamentos sérios na sociedade.
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