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30/10/2009

Saque na América Latina: Caminhos e Agentes

Ana Esther Ceceña

Actualmente, estamos em crise. Crise sistémica que não anuncia uma queda ou o rebentamento imediato, mas que exprime a vocação mutante do capitalismo e a sua capacidade de adaptação ou reeducação às condições de mudança do que acontece, não só economicamente mas também socialmente. No entanto, o carácter sistémico da crise mostra a não sustentabilidade civilizacional do capitalismo.

Nas actuais circunstâncias, a crise cíclica é indicativa da incapacidade do mercado em garantir por si só as condições gerais do processo de acumulação do capital e de apropriação da riqueza e, nesse sentido, apela aos mecanismos de contenção social para assegurar tudo o que o mercado não consegue tornar coeso e controlar, sobretudo quando a economia capitalista é ao mesmo tempo legal e ilegal. A ninguém escapa que a crise económica não está a tocar nos sectores ilegais que, indubitavelmente, contribuíram para a gerar e muito provavelmente serão parte da sua solução.

De qualquer modo, a crise exige uma mudança de estratégia e uma mudança da modalidade de dominação que abarca todas as dimensões da organização social, territorial e política do sistema, sobretudo porque a necessidade das condições gerais de valorização correspondente aos momentos de ajustamento cíclico, característicos do regular funcionamento do processo de acumulação do capital, ocorre agora num momento de questionamento integral da crise sistémica, da incapacidade de resolver internamente a contradição progresso-depradação criada nos próprios fundamentos da sociedade capitalista como lugar de domínio da natureza pelo homem.

Por tudo isto a actual crise não é apenas financeira nem se resolve com subsídios ou com fusões e centralização do capital. Isso permite seguir em frente mas, simultaneamente agrava a situação de suicídio técnico em que irremediavelmente se encontra o capitalismo, apesar da sua capacidade em manter o mundo inteiro sob as suas regras de funcionamento, mesmo sabendo que, paradoxalmente, tendem para a insustentabilidade da própria vida.

A IIRSA COMO ESTRATÉGIA DO PODER HEGEMÓNICO

A força interna do capitalismo defende-se e reconstrói-se permanentemente através do desenho de um conjunto de estratégias integrais, multidimensionais, que se estendem planetariamente, entre os quais se encontram os megaprojectos de reordenamento territorial, que também são necessariamente de reordenamento político, como o da Integração Regional da América do Sul, IIRSA [na sua sigla em castelhano]. A principal virtude de projectos como a IIRSA é a de serem capazes de restabelecer e potenciar as condições gerais da valorização, mais do que a de gerar chorudos negócios na sua própria execução, o que também acontece.

Observados numa perspectiva ampla, a IIRSA e o Plano Puebla Panamá são duas partes do mesmo projecto: supostamente, ambos foram concebidos por um Presidente da região, num caso Vicente Fox, do México, e no outro Fernando Henrique Cardoso do Brasil. Com toda a diferenciação cultural, intelectual e política que há entre os dois, presuntivamente desenharam ao mesmo tempo dois projectos semelhantes e geograficamente iguais [empatados]. As negociações e execuções específicas variam de acordo com as condições subregionais, mas os fundamentos dos projectos são: construir uma infra-estrutura de comunicações, transportes e geração de energia que constitua um ágil e dinâmico sistema circulatório que permita enlaçar as economias regionais com o mercado mundial.

Um único projecto de mercantilização total da natureza para uso massivo desde o centro do México até ponta da Terra do Fogo. Não se trata da exploração dos elementos naturais para uso doméstico, nem local nem nacional, mas da sua exploração de acordo com as dimensões de um comércio planetário sustentado em cerca de 50% por empresas transnacionais. A infra-estrutura que se propõe – e que é exigida – é precisamente a que permitirá à América Latina converter-se numa peça chave do mercado internacional de bens primários, à custa da devastação dos seus territórios, abrindo novamente essas veias da abundância que sangram a pachamama e que alimentam a acumulação de capital e a luta mundial pela hegemonia. O desenho desta infra-estrutura vai do coração às extremidades, do centro da América do Sul até aos portos no caso da IIRSA e da Colômbia-Panamá até à fronteira com os Estados Unidos no caso do Projecto Meso-americano, novo nome do Plano Puebla Panamá.

A dimensão da exploração do território da América Latina e da extracção dos seus valiosos elementos encontra-se em relação com os crescentes níveis exigidos por uma economia mundial que responde às vertiginosas necessidades de multiplicação dos próprios lucros muito mais do que às necessidades reais da população mundial, e apela a uma maior agilidade da circulação de mercadorias para reduzir ao máximo os momentos improdutivos do capital. O nível de extracção e de produção das empresas envolvidas, ainda que a sua origem seja local, modificou-se na proporção desta nova procura de recursos. Casos como o de Vale do Rio Doce são sintomáticos das novas dinâmicas: as empresas enraizadas na produção mineira numa zona de grande abundância de jazidas são, a pouco e pouco, estrangeiradas através da colocação de acções na bolsa de valores de Nova Iorque ou outras idênticas e os seus níveis de produção, já elevados, multiplicam-se de acordo com as necessidades de valorização dos capitais proprietários. O ritmo dos comboios que transportam o ferro até ao porto incrementou-se e a quantidade de vagões carregados multiplicou-se nos últimos anos, assegurando com isso a posse privada, agora fora da terra, já na qualidade de mercadoria, de um elemento natural que se converteu em parte importante da disputa hegemónica. Com isto se aumenta o saque de que foram objecto os povos latino-americanos desde há mais de 500 anos, com o começo da conquista-colonização, e se submetem os territórios, espaço da relação natureza-sociedade a uma depreciação selvática e irreversível. [1]

A exportação de matérias-primas, vista pelos analistas macroeconómicos como um sinal de desenvolvimento e prosperidade está a alterar as próprias condições de vida pelo seu carácter massivo e por responder a necessidades alheias às das sociedades locais. O mesmo ocorre com as modernas vias de transporte que se propõem e que se estão a preparar com a IIRSA. As rotas da IIRSA colocam o enorme território sul-americano à disposição das necessidades de saque dos recursos estratégicos, como a pode observar-se no mapa 1, que mostra o que considero o desenho estratégico da IIRSA.



Agora os canais inter-oceânicos não procuram a rota mais curta entre oceanos mas a mais vasta e rica. Os 80 km do Canal do Panamá são agora substituídos por 20 km da rota amazónica. Esta diferença de critérios evidencia que a conexão tem outros objectivos diferentes dos do passado, de acordo com o aumento das capacidades e envergadura da apropriação capitalista. Com as rotas da IIRSA assegura-se não apenas a extracção de recursos de cada uma das suas partes, mas que essa extracção se realiza de forma articulada. Ligam-se interesses nacionais ou locais com interesses transnacionais e inclusive estratégicos.

As rotas da IIRSA passam pelas recursos de água, de minerais, de gás e petróleo; pelos corredores industriais do subcontinente; pela áreas de diversidade genética mais importantes do mundo, pelos refúgios indígenas e por tudo o que é valioso e apropriável na América Latina. A ampliação dos caudais dos rios para os dedicar a um trânsito intenso estão a pôr em risco os pantanais e a degradar as condições de vida de espécie animais e vegetais, ao mesmo tempo que violenta os modos de vida de comunidades confinantes ou a eles ligadas; a exploração e exportação massiva de minerais castiga a selva com um tráfego pesado constante que vai rapidamente comendo a mancha amazónica e ameaça os glaciares; as modalidades locais de organização da vida vêem-se confrontadas com uma dinâmica vertiginosa que lhes é alheia e que as altera clara e irreversivelmente.

O EMARANHADO DE INTERESSES DA IIRSA

Têm sido largamente denunciados os danos presentes ou previsíveis presentes neste projecto, mas apesar disso a insistência em o manter é tenaz. Cabe então perguntar que espécie de interesses prevalece sobre os elevadíssimos riscos ecológicos e sociais inerentes à IIRSA?

Por um lado, o facto de contar com a anuência ou inclusivamente o entusiasmo de muitos governos latino-americanos é o resultado de uma combinação em que os governos e empresas locais recebem alguns benefícios que, ao seu nível, podem ser significativos.

Por outro lado, evidentemente que uma rede infraestrutural das características da que está planeada é indubitavelmente uma facilidade para as actividades extractivas, e económicas em geral, dos grandes capitais do mundo na busca de recursos competitivos e valiosos, que em muitos casos podem ser considerados estratégicos para a reprodução global do sistema e, portanto, para assegurarem não só as condições de vida do capitalismo mas também a sua hegemonia.

A construção da própria infra-estrutura parece não ser o prato mais cobiçado. As grandes transnacionais têm como foco dos seus interesses muito mais a exploração dos recursos que são grandes negócios para os investidores locais, mas relativamente modestos para elas, como a construção de estradas, caminhos-de-ferro, hidrovias, represas e outras semelhantes.

Pela forma como se comportaram os governos e as empresas, parece haver um quase acordo de complementaridade em que ambos beneficiam, e por isso ambos defendem o projecto como próprio. Esta bizarra comunhão de interesses cresceu ultimamente com a entrada de capitais estrangeiros em empresas locais, a maioria das vezes dedicadas a actividades extractivas, como é o caso de Vale do Rio Doce. Estas empresas potenciam-se, aumentam a sua produção e, evidentemente, as suas exportações; ligam-se mais estreitamente ao mercado mundial, mas continuam a aparecer como nacionais, apesar de em vários casos o seu capital já ser maioritariamente estrangeiro.

Actualmente, talvez a empresa sul-americana mais favorecida pela IIRSA seja a Odebrecht, que se apresenta como brasileira. Por se tratar de uma empresa de engenharia e construção, nesta primeira etapa está envolvida em projectos em toda a região da IIRSA.

A Odebrecht tem investimentos em 13 países na América para além do Brasil. Geograficamente vai desde o México até à Argentina e também com actividades no Caribe (República Dominicana), América Central (Costa Rica, Panamá) e América do Sul (Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai), como pode ver-se no mapa que mostra a proximidade das áreas dos seus projectos de investimento com as de recursos mais valiosos.



Historicamente, nas actividades extractivas registou-se sempre a presença de grandes transnacionais estrangeiras, daí esta ligação de interesses que mencionámos. É um sector em que a concorrência dificulta a entrada de capitais nacionais, sobretudo depois da desprotecção e da mudança de critérios sobre os patrimónios devidas ao neoliberalismo.

Revendo as listas das 500 maiores empresas do mundo, há muito anualmente elaborada pela revista Fortune, e a das 500 maiores da América, elaborada pela revista América Economia, o que se observa é a escassa participação de empresas latino-americanas de maior envergadura. Ainda que se encontrem nestas actividades, a sua participação é de muito menor importância, excepto os casos de Odebrecht, Aracruz e Votorantim, originalmente as três de capital brasileiro.

A extracção de petróleo e gás é em alguns países exclusivo de empresas do Estado, mas no que respeita aos outros países, as empresas principais neste sector são a Exxson, Royal Dutch, British Petroleum, Chevron, CONOCO-Phillips, ENI, Petrobras, Repsol-YPF, SK, Occidental Petroleum, Lukoil, En Cana e Oil and Nature Gás. A localização de projectos destas empresas não deixa dúvidas sobre a sua boa perspicácia, visto que se encontram em todas as regiões de importantes jazidas, como se observa no mapa. Estas localizações vão ser protegidas pelas facilidades das infra-estruturas, de tal forma que o seu acesso ao mercado mundial, que em si já é bastante ágil, como se pode observar no mapa. Estas localizações ficam protegidas pelas facilidades das infra-estruturas projectadas pela IIRSA, de tal forma que o seu acesso ao mercado mundial, já bastante ágil como vimos, ver-se-á ainda melhorado.



Os minerais, elementos que definem a estrutura material básica dos processos produtivos, têm na América Latina um dos seus espaços de maior diversidade e abundância. Os minerais metálicos são um foco de atracção de grandes empresas de dimensão planetária como a Anglo American, BHP Billinton, Rio Tinto, Vale do Rio Doce, Xstrata e Nippon Mining Holdings, e a sua distribuição territorial leva-as a diversas regiões sul-americanas, regiões que, em todos os casos, têm a virtude de estarem ligadas através das rotas da IIRSA (ver mapa)



A apropriação dos bosques, naturais ou artificialmente criados, tem as suas principias zonas em pontos muito específicos. O seu desenvolvimento territorial é muito menos extenso que o das actividades anteriores, mas também se trata de capitais de enorme montante, ligados à produção de celulose e papel (ver mapa). As principais empresas do sector são a Stora Enzo, Weyerhauser, Aracruz Celulose, Votorantim Celulose, Kablin, Suzano Papel e Celulosa, CELCO y CMPC, as duas últimas com investimentos no sul do Chile.



Evidentemente, além das empresas mencionadas há todo um emaranhado de empresas mais pequenas ligadas às actividades das maiores e totalmente dependentes daquelas, ou os seus níveis de produção não se repercutem nos grandes mercados nem definem as dinâmicas da economia.

A ideia que preside à apresentação do desenvolvimento geográfico destes grandes investimentos vem do interesse em ver a capacidade destes agentes capitalistas para ocupar e definir o território e as suas dinâmicas. Uma das coisas que nos devem preocupar é a forma como o território está a ser explorado e como projectos como a IIRSA reforçam essa tendência.

E, na realidade, apesar de neste campo podermos constatar a grande quantidade e diversidade dos interesses em jogo, é o sujeito hegemónico quem está à frente do processo. Nós sabemos quanto é o território ocupado por bases militares estadunidenses (território estrangeiro), mas seria necessário medir o território ocupado pelas propriedades das empresas para se ficar com uma ideia da dimensão territorial da dominação.

Com esse cálculo ficaríamos em melhores condições para valorizar se a IIRSA é um projecto dos Estados sul-americanos ou uma exigência desses grandes capitais que arrastam os Estados para a formulação de políticas que os beneficiam pois, que são hoje os Estados se não uma parte desse sujeito económico, desse sujeito dominante que por vezes se chama capital brasileiro, outras vezes capital equatoriano, muitíssimas vezes mais capital estadunidense mas que, por fim, revela uma fusão de interesses relacionados com o grande capital das empresas transnacionais, impulsionadas, protegidas e representadas pelo Estado norte-americano?

Inclusive, hoje, ainda que seja difícil falar de nacionalidade do capital, efectivamente há um enorme peso do capital estadunidense em todas as actividades mais importantes, mais dinâmicas e com maior futuro no mundo. É isso que autoriza a continuar a falar do sujeito estadunidense como sujeito hegemónico, isto é, esse grande capital que se aglutina à volta do Estado estadunidense, ainda que contenha alguns mexicanos, brasileiros, japoneses ou capitais provenientes de qualquer outro lugar, mas organicamente incorporados nessa estrutura de poder.

Notas:
Este trabalho contou com a valiosa contribuição de Rodrigo Yedra, membro do Observatório Latinoamericano de Geopolítica.

[1] Basta ver o que está a acontecer no estado brasileiro do Pará, originalmente selvagem, hoje cheio de pastagens para o gado e de crateras mineiras que desflorestam e transformam as lógicas locais de sociabilidade e organização da reprodução.


ODiario.info - 30.10.09

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