À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

07/07/2011

A cobardia enquanto forma de honestidade

Filipe Diniz

Num daqueles desabafos bacocos que profere quando está mais à vontade, Cavaco Silva confessou que não copiava na escola «por ter medo de ser apanhado». É a sua versão do velho ditado segundo o qual «vergonha não é roubar. Vergonha é roubar e não poder fugir».
Como sempre que este género de pessoas fala com o coração mais perto da boca, o que dizem acaba por adquirir um significado mais amplo do que a simples afirmação que estão a fazer. Essa atitude contém todo um programa de acção política.
O PSD, o CDS e o PS – como sucede com quaisquer forças ao serviço da classe dominante no quadro da democracia burguesa – têm um único princípio a orientar a acção política: o poder legitima tudo, todos os meios são legítimos para conservar o poder.
A recente campanha eleitoral constitui um autêntico compêndio na matéria. Todos eles subscreveram o «memorando» da troika estrangeira. Todos eles mentiram, omitiram, ocultaram o seu conteúdo e, em alguns casos, fizeram promessas de sentido inverso ao que sabiam estar imposto no «memorando». Juntos obtiveram uma larguíssima maioria dos votos expressos. Juntos, em coro com Cavaco, afirmam que esses votos legitimam o «memorando» cujo conteúdo cuidadosamente ocultaram.
Face ao roubo anunciado de 50% do 13.º mês, um dos candidatos à direcção do PS veio acusar o PSD de «violar compromissos eleitorais». Como se, de Soares a Sócrates, não tivesse sido sempre também essa a prática do seu partido.
Para estes políticos, mentir ou mesmo ser um completo trafulha não é problema. E, a uma certa escala, tudo o que não seja cadastro é currículo. Veja-se o que consta sobre a figura que, segundo parece, vai assumir a presidência do BCE. Trata-se de alguém que foi alto funcionário da firma Goldman Sachs, uma das que ganhou milhões à conta da chamada crise do «subprime». De alguém de quem se diz que, nessa firma, ajudou ao encobrimento e à maquilhagem da verdadeira dimensão do endividamento externo da Grécia. De alguém de quem se diz que fez uso ilegítimo da informação privilegiada a que tinha acesso.
Tem todas as condições para presidir ao BCE. Pode ter feito isso tudo. Mas vergonha era se tivesse sido apanhado.

http://www.avante.pt/pt/1962/opiniao/115321/ 

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