João Ferreira
A agricultura, como qualquer outra actividade humana, pressupõe uma interacção entre o homem e a Natureza.
O homem é parte integrante da Natureza e age sobre ela, sobre os seus recursos e elementos constituintes – água, solo, seres vivos. É através do seu trabalho, da acção criadora sobre estes recursos, que o homem satisfaz necessidades básicas, como a da alimentação, e outras.
Foto LUSA
Ao agir sobre a Natureza, o homem modifica-a. Molda-a. A Natureza produz, também ela, efeitos sobre o homem, que dela é parte integrante. Entre ambos estabelece-se uma relação dialéctica, em que ambos se influenciam mutuamente.
A emergência das primeiras sociedades produtoras, no Neolítico, marca uma mudança qualitativa importante na relação do homem com a Natureza. O homem deixa de ser apenas um caçador-recolector, como até aí, e passa a domesticar plantas e animais, servindo-se da combinação de diferentes recursos naturais para, através do seu trabalho, satisfazer as suas necessidades de alimentação e outras.
A acção do homem sobre a Natureza – ao contrário do que por vezes se crê (ou do que alguns querem fazer crer) – não é necessariamente nefasta ou destrutiva. Ela depende, em grande medida, do contexto de relações sociais e económicas em que se processa e dos seus objectivos.
Durante séculos, a agricultura na Europa moldou as paisagens e os ecossistemas naturais. O tipo de agricultura praticado, uma agricultura extensiva, com nula ou reduzida incorporação de fertilizantes e de outros produtos de síntese química, visando maioritariamente a satisfação de necessidades locais ou regionais, com cadeias de abastecimento curtas, criou sistemas agro-ecológicos de elevado valor, do ponto de vista da biodiversidade (animal, vegetal, microbiana) e do ponto de vista funcional – ou seja, da sua importância nos ciclos biogeoquímicos, determinantes para a provisão daquilo a que se costuma chamar «bens públicos», como a água e o ar limpos e o solo fértil.
Ocorrem hoje na Europa habitats e espécies animais e vegetais, cuja existência se deve à acção transformadora do homem sobre a Natureza, através da actividade agrícola. Habitats e espécies com valor notável do ponto de vista da conservação, alguns deles considerados prioritários, protegidos por legislação diversa, incluindo as directivas comunitárias Aves e Habitats. Trata-se de habitats e de espécies que não existiriam em muitas regiões se não por acção do homem. E que desaparecerão no futuro – sendo que muitos deles correm actualmente esse risco, se essa acção cessar ou se alterar significativamente.
É o exemplo dos montados, de alguns prados de altitude, das estepes cerealíferas e outros. HabitatsHabitats, que albergam valores faunísticos ou florísticos notáveis, e que estão, todos eles, associados a algum tipo de actividade agrícola ou agro-pastoril. E que desaparecerão se essa actividade cessar. incluídos na Directiva
A Política Agrícola Comum e o ambiente
O tipo de agricultura praticada na Europa alterou-se substancialmente, em especial ao longo da segunda metade do século XX, num processo dinâmico, ainda em curso. Tendo características específicas em cada país, os seus aspectos centrais são comuns a todos eles.
Nas últimas décadas, a Política Agrícola Comum (PAC) e as suas sucessivas reformas são indissociáveis e determinantes destas alterações.
Ao longo dos anos, a PAC promoveu o abandono de modos de produção extensivos, compatíveis com a preservação da biodiversidade nas zonas rurais, nalguns casos mesmo potenciadores dessa biodiversidade; e promoveu modelos de produção intensiva, de cariz exportador, com elevada incorporação de água, de energia e de fertilizantes e de outros produtos de síntese química.
Era a própria Agência Europeia do Ambiente, uma agência da União Europeia, que em 2009, numa publicação sobre «Questões ambientais chave para a Europa», afirmava que: «a maior parte dos agricultores ou intensificaram a produção ou abandonaram a agricultura por completo»1.
A primeira fase da PAC é marcada por um significativo crescimento da produção, em especial nos países do centro da CEE/UE, iniciadores do processo de integração. Numa segunda fase, já marcada pela grande quantidade de excedentes agrícolas ao nível destes países, e já depois de sucessivos alargamentos que constituíram uma periferia da CEE/UE (Irlanda, Grécia, Portugal, Espanha), para onde esses produtos passaram a poder ser mais facilmente escoados, a PAC passa a apoiar simultaneamente o abandono da actividade agrícola e a redução da produção.
Ou seja, por um lado, a PAC continuou a apoiar e a promover os mesmos sistemas de produção intensiva acima descritos; por outro lado, promoveu o abandono da actividade, em especial por parte de pequenos e médios agricultores e da chamada agricultura familiar.
Em consequência, podemos dizer que houve uma deslocalização e uma concentração da produção. Desaparecem pequenas e médias explorações extensivas, concentrando-se a produção em grandes produções intensivas. É também nestas grandes explorações de cariz intensivo, voltadas para a exportação, que se concentram a maior parte dos subsídios atribuídos no âmbito da PAC. Trata-se de um típico processo de concentração capitalista que, conduzindo à predominância de um modo de produção capitalista na agricultura europeia, acompanha o desenvolvimento mais geral do processo de integração capitalista europeia que foi e é a CEE/UE. Este processo de concentração passa-se dentro de cada país e à escala da UE, com a desarticulação dos sistemas produtivos a afectar diferentemente os vários estados-membros. Alguns deles – como é o caso de Portugal – aumentaram significativamente a sua dependência alimentar, pondo em causa a sua soberania alimentar.
A par da PAC e do mercado único, as políticas de comércio internacional – nomeadamente as políticas de liberalização e desregulação do comércio mundial – tendem a acentuar este fenómenos e a conferir-lhe uma dimensão mundial.
As necessidades alimentares das populações passaram a ser asseguradas com a produção de alimentos feita noutras regiões, noutros países ou mesmo noutros continentes. As cadeias de abastecimento tornaram-se muito mais longas; os intermediários entre o produtor e o consumidor ganharam um peso determinante. Aumentaram extraordinariamente os fluxos de energia e de mercadorias inerentes à satisfação das necessidades alimentares das populações.
As consequências das alterações descritas são múltiplas e profundas, simultaneamente nos planos económico, social, ambiental, da saúde pública e da segurança alimentar. Foquemo-nos nas consequências ambientais.
Alienação da relação do homem com a natureza
A intensificação da produção levou a um cada vez maior e menos eficiente uso de água, de energia, de fertilizantes e de pesticidas; aumentou a dependência (directa e indirecta) da agricultura dos combustíveis fósseis; promoveu regimes de monocultura e uma redução do número de espécies cultivadas ou criadas. Os problemas de poluição, em especial por compostos azotados e fósforo, dos solos e recursos hídricos (superficiais e subterrâneos) ganharam uma dimensão preocupante em muitos casos. Os solos degradaram-se do ponto de vista físico (com o aumento da erosão em resultado de mobilizações mais agressivas), químico (com a poluição) e biológico (com a redução da matéria orgânica e da diversidade microbiana). Houve uma redução significativa da biodiversidade – da fauna, flora e do solo. Aumentaram as emissões dos chamados gases com efeito de estufa.
Acelerou-se o processo de desertificação do mundo rural. Em Portugal, desde a adesão à CEE/UE, foram liquidadas centenas de milhares de explorações agrícolas – fundamentalmente pequenas e médias explorações e de agricultura familiar. Assistimos a migrações das populações rurais para as zonas urbanas. Aprofundam-se desequilíbrios na distribuição da população, que tem consequências a diversos níveis, e também a nível ambiental.
Por um lado, o abandono dos campos compromete os sistemas agro-ecológicos tradicionais – a sua biodiversidade e a sua funcionalidade, afectando a provisão dos chamados bens públicos. O coberto vegetal modifica-se, tornando-se mais vulnerável a fogos, cuja dimensão, por vezes devastadora, é propiciada pela ausência de qualquer actividade humana em grandes extensões de território. Trata-se de autênticas catástrofes ambientais, a que se encontram particularmente vulneráveis, como temos visto nos últimos anos, os países do Sul da Europa.
Por outro lado, a concentração de população nas zonas urbanas conduz frequentemente a uma ocupação territorial problemática, com o crescimento desordenado de grandes urbes, e tende a criar uma enorme pressão sobre certos ecossistemas, alguns particularmente sensíveis, consequentemente, como é o caso das zonas costeiras.
Estamos perante aquilo a que, há 150 anos, com um extraordinário poder de antecipação, Marx afirmava ser a alienação da relação do homem com a natureza.
Ao mesmo tempo que extensas áreas rurais na Europa são votadas ao abandono, a nível mundial, em diversos países em desenvolvimento, intensifica-se a pressão para reclamar novas áreas de cultivo a ecossistemas naturais, como florestas e zonas húmidas, repositório de uma enorme biodiversidade e importantes reservatórios de carbono. Estas áreas de cultivo, intensivo, em regime de monocultura, destinam-se a de produções que têm como destino os países industrializados (veja-se o exemplo dos chamados biocombustíveis).
Também nestes países, a industrialização da agricultura, conduzida pelas multinacionais do agro-negócio, com o desenvolvimento de um modelo exportador intensivo, caminha a par da destruição da pequena e média agricultura e do aumento da dependência alimentar. Esta dependência aumenta a vulnerabilidade face à volatilidade dos preços dos bens alimentares podendo conduzir – como a experiência nos vem demonstrando – a situações explosivas do ponto de vista social e dramáticas do ponto de vista humanitário.
Os modelos de produção que ameaçam e degradam a Natureza são os mesmos que ameaçam a soberania e segurança alimentares de vários países e dos respectivos povos.
No contexto da formação económica e social actualmente dominante – o capitalismo, na sua actual fase de desenvolvimento, o neoliberalismo – o homem tem vindo a estabelecer com a Natureza uma relação «insustentável». Quer dizer, uma relação que exaure e degrada a Natureza e os seus recursos a uma velocidade superior à da sua capacidade de regeneração natural. Deste modo, compromete-se, a prazo, a satisfação de necessidades humanas diversas, incluindo a própria alimentação.
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1 Agência Europeia do Ambiente, 2009. «Sinais da AEA 2009, Questões ambientais chave para a Europa»
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(*) Excerto da intervenção sobre a "PAC e o Ambiente" proferida na Audição Pública organizada pelo Grupo da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Verde Nórdica - GUE/NGL sobre o futuro da PAC; Bruxelas, 02/03/2011http://www.avante.pt/pt/1951/temas/114124/
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