Paul Krugman
Algo correu terrivelmente mal, para passarmos a tratar os cuidados de saúde como transacções comerciais em que os médicos são vistos como vendedores e os doentes como consumidores.
Esta semana, o "The Times" noticiou a reacção do Congresso contra o Independent Payment Advisory Board (IPAB), uma parte essencial dos esforços para controlar os custos dos cuidados médicos. A reacção foi previsível, mas também profundamente irresponsável, como vou explicar.
Mas outra questão me assaltou quando vi os argumentos republicanos contra o IPAB, que se prende com a noção de que o que realmente precisamos fazer, como se afirma na proposta de orçamento, são "programas de cuidados de saúde que respondam mais à escolha dos consumidores".
Aqui está a minha pergunta: como é que se tornou normal, ou até aceitável, que nos se referíssemos aos pacientes como "consumidores"? A relação entre doente e médico costumava ser considerada especial, quase sagrada. Agora os políticos e os supostos reformadores falam do acto de receber cuidados médicos como se não fosse diferente de qualquer transacção comercial, como a compra de um carro - e a sua única queixa é que não é comercial o suficiente.
O que é que nos passou pela cabeça?
Quanto ao IPAB, temos de fazer algo quanto aos custos de saúde, o que significa que temos de encontrar uma maneira de começar a dizer não. Tendo em conta a contínua inovação médica, não podemos manter um sistema no qual a Medicare paga praticamente qualquer coisa que um médico recomende. E isso é especialmente verdadeiro quando essa abordagem tipo "cheque em branco" se alia a um sistema que dá a médicos e hospitais - que não são santos - um forte incentivo financeiro para se terem cuidados excessivos.
Por isso é que foi criado o IPAB, na sequência da reforma da saúde, do ano passado. Ao conselho, composto por especialistas em saúde, seria dado um objectivo de crescimento nos gastos do Medicare. Para manter as despesas abaixo deste objectivo, o Conselho apresentaria as suas recomendações de controlo de custos, que entrariam em vigor automaticamente, a menos que o Congresso não as aprovasse.
Antes que comece a gritar sobre "racionamento" e "painéis de morte", lembre-se que não estão em causa os cuidados de saúde que estamos autorizados a comprar com o nosso próprio dinheiro - ou o da companhia de seguros. Falamos apenas sobre o que será pago com dinheiro dos contribuintes. E da última vez que vi a declaração de independência, nada diz que temos o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade com todas as despesas pagas. O meu ponto é: é preciso tomar opções. Seja de que forma for, os gastos do Estado com a saúde têm de diminuir.
Bom, o que os republicanos propõem é que o governo simplesmente empurre o problema do aumento dos custos com cuidados de saúde para os idosos; ou seja, que se substitua o Medicare por vales que podem ser usados em seguros privados e que os mais velhos e as seguradoras resolvam a questão entre si. Isto, dizem, seria melhor do que a análise dos peritos porque iria abrir caminho às maravilhas da "escolha do consumidor".
O que está errado (além do valor manifestamente insuficiente dos vouchers)? Bem, primeiro, não iria funcionar. A medicina com base no consumidor correu mal em toda parte onde foi tentada. Tomemos o exemplo mais directamente relevante, a Medicare Advantage - originalmente chamado Medicare (PLUS) Choice - devia poupar dinheiro; acabou por sair bem mais caro do que o Medicare tradicional. Os EUA têm o sistema de cuidados de saúde mais "orientado para consumidor" do mundo desenvolvido. Também é, de longe, o mais caro, mas a qualidade dos cuidados disponibilizados está muito aquém de serviços de saúde muito mais baratos de outros países.
Mas o facto de que os republicanos estarem a exigir que apostemos a nossa saúde, até mesmo as nossas vidas, numa abordagem já falhada é apenas parte do que está mal. Como já disse, há algo terrivelmente errado com a noção de que os pacientes são "consumidores" e os cuidados de saúde simples operações financeiras.
Afinal, os cuidados médicos são uma área em que têm de ser tomadas decisões cruciais - de vida ou morte. E tomar tais decisões de forma inteligente requer conhecimentos especializados. Além disso, muitas vezes elas são tomadas com o paciente incapacitado, sujeito a grande stresse ou em momentos em que é preciso agir imediatamente, sem tempo para discussão, quanto mais comparação de preços.
É por isso que existe a ética médica. É por isso que os médicos são vistos como pessoas especiais e espera-se que se comportem de acordo com padrões mais elevados do que outros profissionais. Há uma razão para haver séries de TV sobre médicos heróis e não sobre chefes de departamento hipercompetentes.
A ideia de que tudo isto pode ser reduzido a dinheiro - de que os médicos são apenas vendedores de serviços de saúde a consumidores - é, bem, um nojo. E a prevalência deste tipo de linguagem é sinal de que algo muito errado aconteceu, não apenas nesta discussão, mas com os valores da nossa sociedade.
Mas outra questão me assaltou quando vi os argumentos republicanos contra o IPAB, que se prende com a noção de que o que realmente precisamos fazer, como se afirma na proposta de orçamento, são "programas de cuidados de saúde que respondam mais à escolha dos consumidores".
Aqui está a minha pergunta: como é que se tornou normal, ou até aceitável, que nos se referíssemos aos pacientes como "consumidores"? A relação entre doente e médico costumava ser considerada especial, quase sagrada. Agora os políticos e os supostos reformadores falam do acto de receber cuidados médicos como se não fosse diferente de qualquer transacção comercial, como a compra de um carro - e a sua única queixa é que não é comercial o suficiente.
O que é que nos passou pela cabeça?
Quanto ao IPAB, temos de fazer algo quanto aos custos de saúde, o que significa que temos de encontrar uma maneira de começar a dizer não. Tendo em conta a contínua inovação médica, não podemos manter um sistema no qual a Medicare paga praticamente qualquer coisa que um médico recomende. E isso é especialmente verdadeiro quando essa abordagem tipo "cheque em branco" se alia a um sistema que dá a médicos e hospitais - que não são santos - um forte incentivo financeiro para se terem cuidados excessivos.
Por isso é que foi criado o IPAB, na sequência da reforma da saúde, do ano passado. Ao conselho, composto por especialistas em saúde, seria dado um objectivo de crescimento nos gastos do Medicare. Para manter as despesas abaixo deste objectivo, o Conselho apresentaria as suas recomendações de controlo de custos, que entrariam em vigor automaticamente, a menos que o Congresso não as aprovasse.
Antes que comece a gritar sobre "racionamento" e "painéis de morte", lembre-se que não estão em causa os cuidados de saúde que estamos autorizados a comprar com o nosso próprio dinheiro - ou o da companhia de seguros. Falamos apenas sobre o que será pago com dinheiro dos contribuintes. E da última vez que vi a declaração de independência, nada diz que temos o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade com todas as despesas pagas. O meu ponto é: é preciso tomar opções. Seja de que forma for, os gastos do Estado com a saúde têm de diminuir.
Bom, o que os republicanos propõem é que o governo simplesmente empurre o problema do aumento dos custos com cuidados de saúde para os idosos; ou seja, que se substitua o Medicare por vales que podem ser usados em seguros privados e que os mais velhos e as seguradoras resolvam a questão entre si. Isto, dizem, seria melhor do que a análise dos peritos porque iria abrir caminho às maravilhas da "escolha do consumidor".
O que está errado (além do valor manifestamente insuficiente dos vouchers)? Bem, primeiro, não iria funcionar. A medicina com base no consumidor correu mal em toda parte onde foi tentada. Tomemos o exemplo mais directamente relevante, a Medicare Advantage - originalmente chamado Medicare (PLUS) Choice - devia poupar dinheiro; acabou por sair bem mais caro do que o Medicare tradicional. Os EUA têm o sistema de cuidados de saúde mais "orientado para consumidor" do mundo desenvolvido. Também é, de longe, o mais caro, mas a qualidade dos cuidados disponibilizados está muito aquém de serviços de saúde muito mais baratos de outros países.
Mas o facto de que os republicanos estarem a exigir que apostemos a nossa saúde, até mesmo as nossas vidas, numa abordagem já falhada é apenas parte do que está mal. Como já disse, há algo terrivelmente errado com a noção de que os pacientes são "consumidores" e os cuidados de saúde simples operações financeiras.
Afinal, os cuidados médicos são uma área em que têm de ser tomadas decisões cruciais - de vida ou morte. E tomar tais decisões de forma inteligente requer conhecimentos especializados. Além disso, muitas vezes elas são tomadas com o paciente incapacitado, sujeito a grande stresse ou em momentos em que é preciso agir imediatamente, sem tempo para discussão, quanto mais comparação de preços.
É por isso que existe a ética médica. É por isso que os médicos são vistos como pessoas especiais e espera-se que se comportem de acordo com padrões mais elevados do que outros profissionais. Há uma razão para haver séries de TV sobre médicos heróis e não sobre chefes de departamento hipercompetentes.
A ideia de que tudo isto pode ser reduzido a dinheiro - de que os médicos são apenas vendedores de serviços de saúde a consumidores - é, bem, um nojo. E a prevalência deste tipo de linguagem é sinal de que algo muito errado aconteceu, não apenas nesta discussão, mas com os valores da nossa sociedade.
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