À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

25/04/2011

Moderníssimo

Correia da Fonseca

Com o facebook de Cavaco a modernidade comunicacional já mora em Belém. O que não mata as fomes mas talvez revigore o orgulho nacional.
1. Debates, entrevistas, opiniões, até reportagens acerca da crise de pelo menos três identificadas faces (económica, financeira, política) e uma só profundamente verdadeira, a do povo português intimado a pagar a factura dos diversificados consumos que um punhadão de seleccionados cavalheiros fizeram, é o que nestas últimas semanas mais tem havido na televisão portuguesa, não apenas nos canais especialmente vocacionados para nos fornecerem notícias e comentários, estes também cuidadosamente seleccionados, mas também nos canais generalistas, onde até se infiltram nos programas mais ligeiros e nas piadas do Herman. No meio de tudo isto, perdoar-se-me-á que já não me recorde ao certo em que programa um dos participantes observou que o senhor Presidente da República está agora muito virado para a utilização dos meios de comunicação electrónica, frequentemente até em regime de exclusividade, para informar o País, isto é, os portugueses, do que ele próprio faz e pensa. Assim, o site da Presidência da República na Net, o facebook, tornaram-se não apenas lugares onde a democracia portuguesa floresce na sua forma tecnologicamente mais avançada mas também prova irrefutável de que Portugal não é um lugar onde uma população incivilizada e preguiçosa passa os dias nas praias (a molhar os pés, como inesquecivelmente disse o engenheiro Belmiro referindo-se aos trabalhadores que se obstinam em ter fins-de-semana fora dos postos de trabalho), ignorante das mais avançadas maravilhas do nosso tempo. E essa é, como bem se entende, uma forma preciosa de mostrar aos europeus lá de cima, os que vivem em lugares brumosos e se roem de inveja pelo nosso Sol, que este nosso País não é lugar de gente atrasada que em matéria de comunicações só sabe usar telemóveis maioritariamente fabricados na Finlândia, Vê-se bem, pois, como a modernidade exibida a partir do Palácio de Belém é um modo de intervir sobre factores condicionantes da crise e promotores da sua resolução, o que desmente as afirmações de que o senhor PR não faz nada quanto a este fundamentalíssimo assunto ou, o que é pior e decerto ainda mais injusto, de que quando faz alguma coisa mais lhe valera estar quieto, a ele ou a nós todos. Ou quase todos.
2. Acontece, contudo, que decerto por azar meu conheço uma boa porção de cidadãos que não têm computador, nem sequer um magalhãezinho para uso juvenil, e por isso ficam excluídos do acesso às informações e esclarecimentos que o senhor Presidente verte no tal site presidencial. Esses serão «os outros», quase sempre cidadãos feridos por uma circunstância muito incómoda mas infelizmente muito frequente entre nós: são pobres. Eles poderão ver e ouvir, na TV, o senhor Presidente responder aos jornalistas que o abordam de que não presta quaisquer declarações, que aquele não é momento oportuno, e que o que há a fazer é ir ao site da presidência da República e aí passarão a saber tudo. Não se duvida, é claro, de que os jornalistas e não só eles se precipitem para os seus computadores neles saciando a sua avidez por informações, e eu próprio me incluiria nesse número se considerasse muitíssimo importante, de um modo geral, o que o senhor PR pensa, escreve ou manda escrever, o que decerto por defeito meu não me acontece. Fico a recear, porém, que o Presidente da República creia que todos os cidadãos de que precisamente ele é o Presidente tenham em suas casas, ou em pior hipótese em casa de um vizinho simpático e acessível, um computador onde possam aceder às palavras inevitavelmente fundamentais que saiam de Belém para o País inteiro. É verdade que este imaginado equívoco do senhor Presidente é improvável: ele, que já publicamente mostrou saber que muitos portugueses precisam das sobras dos restaurantes para matar a fome, que até estimulou perante câmaras e micros da TV essa original forma do «Estado social» à portuguesa, não acredita decerto que em todas as casas com dispensas vazias não faltem computadores com ligação à Net. É também certo que Natália Correia disse um dia que «a Poesia é para comer», mas não acredito que o senhor professor tenha tomado excessivamente à letra esta metáfora nem, de qualquer modo, que entenda terem as suas palavras, por mais sábias que sejam, uma utilidade literalmente alimentar. Resta, pois, que sirvam para demonstrar que a modernidade comunicacional já mora em Belém. O que não mata as fomes mas talvez revigore o orgulho nacional.

http://www.odiario.info/?p=2051

Sem comentários:

Related Posts with Thumbnails