Em outubro, o Rio de Janeiro esteve no centro das atenções mundiais. No dia 2, em Copenhague, Dinamarca, o Comitê Olímpico Internacional (COI) escolheu a cidade para sediar os Jogos de 2016. Mais de 100 anos depois do início dos Jogos modernos, finalmente um país latino-americano conseguiu a façanha.
E pra chegar lá não foram medidos esforços. Prefeitura, governo do estado e governo federal trabalharam (e investiram) juntos. O material apresentado pela candidatura do Rio foi de primeira qualidade: o projeto, no papel, contempla e suplanta todas as exigências do COI; o poder público garante o orçamento e qualquer necessidade extra; vídeos cinematográficos mostram o melhor da cidade e por aí vai.
Em um desses vídeos, a personagem-narradora, uma jovem negra, fala, em inglês, com tradução para o português, sobre união, vida e paixão, “elementos que vão se encontrar” no Rio em 2016. Um complemento do discurso do presidente Lula, que pouco antes da exibição do vídeo havia dito aos delegados do COI: “a mais linda e maravilhosa cidade está de portas abertas para a maior festa da humanidade”. Emociona qualquer um.
Todo esse otimismo é compreensível, mesmo porque a realização de um evento deste porte abre inúmeras oportunidades para a cidade do Rio de Janeiro, em particular, e para o Brasil em geral. No entanto, por trás da emoção podemos encontrar indícios de que os Jogos Olímpicos estão muito mais para Negócios Olímpicos.
“Temos visto que o esporte vem sendo usado como produtor de consenso e venda de uma cidade”, diz Alessandro Biazzi, do Comitê Social que acompanhou os Jogos Pan-Americanos e que está acompanhando o processo das Olimpíadas. O pesquisador enxerga uma proposta bastante elitizada, com a maior parte dos investimentos na Barra da Tijuca: “o prefeito Eduardo Paes já disse que o modelo da Vila Pan-Americana vai ser mantido”, ou seja, a Vila Olímpica será construída com padrão de classe média alta para que depois dos Jogos os apartamentos sejam vendidos com alto retorno financeiro. “Um absurdo se considerarmos o déficit habitacional do Rio”, diz Alessandro, para quem a oportunidade poderia ajudar a contornar o problema, se após os Jogos a Vila tivesse destinação popular.
A concentração dos investimentos na Barra derruba outra oportunidade histórica para a cidade, que viria com a instalação do Parque Olímpico na Zona Portuária. Além de revitalizar a região, hoje bastante degradada, a obra abriria espaço para a integração viária do Centro com a Zona Norte e a Baixada Fluminense, desafogando as atuais vias de acesso. O prefeito do Rio afirma que isto é inviável devido ao compromisso assumido com o COI, mas Alessandro suspeita que há outros interesses em jogo: além da concentração da grana na Barra, região com a maior parte dos “lançamentos imobiliários”, o empresário Eike Batista estaria tentando preservar a Zona Portuária com outros propósitos.
O projeto “Porto Maravilha”, como vem sendo chamado no Rio, será uma das maiores intervenções de todos os tempos na cidade. Numa área que abrange meia dúzia de bairros, cerca de 40 mil pessoas estão ameaçadas de despejo violento. O gabarito da região passará de 4 para 50 andares. O que se diz é que será construído um enclave, uma cidade dentro da cidade, onde os cidadãos comuns serão impedidos de transitar. Terão lugar apenas as grandes corporações como Microsoft, que já teria comprado um edifício por algo em torno de R$ 50 milhões. Em tempo: Eike doou R$ 23 milhões para a campanha Rio 2016.
Em 2007, a Organização Desportiva Panamericana orçou o evento em R$ 409 milhões, mas foram gastos R$ 5 bilhões. Houve alerta do Tribunal de Contas da União, que posteriormente encontrou irregularidades nos gastos. “Se você pegar em toda a história de todos os grandes eventos do mundo, não encontra uma diferença tão grande. A diferença máxima é 15%”, diz Eliomar Coelho, vereador do PSOL que entrou com pedido de CPI na Câmara dos Vereadores. Ganhou, mas não levou. “A CPI foi aprovada, mas não conseguimos instalar. Dos cinco membros, dois eram ligados a Cesar Maia (DEM) e outro a Eduardo Paes, que na época era secretário de Esportes e Turismo do governo estadual. Eles sempre davam um jeito de embananar tudo”.
No caso dos Jogos Olímpicos, o orçamento oficial da candidatura Rio 2016 prevê gastos totais de R$ 28.865.657,00, como consta do sumário executivo publicado na página oficial da campanha: www.rio2016.org.br.
Outra crítica de Alessandro e Eliomar diz respeito ao legado do Pan. A adaptação dos imóveis públicos para favorecer o acesso de deficientes físicos não ocorreu. As instalações construídas estão abandonadas, sub-utilizadas ou privatizadas, como, por exemplo, o Velódromo, o Parque Aquático Maria Lenk e a Arena Multiuso, hoje administrada pelo HSBC.
Ao ler o projeto vitorioso Rio 2016 – calhamaço com duas centenas de páginas – é possível notar a intenção de se aprofundar a privatização da cidade. Das oito instalações sob o controle do poder público municipal, apenas uma não está/será concedida à iniciativa privada. As três estaduais serão terceirizadas. As onze construídas com recursos federais terão uso misto ou serão licitadas para empresas privadas. A iniciativa privada não vai investir em nenhuma instalação esportiva nova.
Violência contra o povo trabalhador
Outro aspecto envolvido no processo dos Jogos Olímpicos de 2016 são as ameaças de despejo violento contra moradores de favelas do Rio, sobretudo as que ficam na Zona Oeste, região que nas últimas duas décadas vem passando por um acelerado processo de especulação imobiliária. “Com o anúncio das Olimpíadas, a comunidade voltou a ficar preocupada”, afirma a defensora pública Maria Lúcia Pontes, em relação à Vila Autódromo. O Núcleo de Terras da Defensoria já acompanha o caso desta favela desde a década de 1990, quando tiveram início as tentativas de despejo. No processo movido pela Prefeitura em 1993, quando Eduardo Paes era sub-prefeito da Barra, a acusação é de que a Vila causava “dano estético” à paisagem.
“Na verdade, o grande problema da Prefeitura é com a pobreza, é isso que incomoda”, rebate Maria Lúcia. Com cerca de duas mil famílias, a Vila Autódromo nasce a partir de uma colônia de pescadores e vem resistindo com o amparo dos títulos de concessão por 99 anos, concedidos pelo governo estadual entre as décadas de 1980 e 1990. Há dois anos, em função dos Jogos Pan-Americanos, a tentativa de despejo foi rechaçada pelos moradores com paus e pedras.
Os moradores do Canal do Anil, outra favela da região, também estão de orelha em pé. Vizinha da Vila Pan-Americana, a comunidade vem sendo ameaçada há pelo menos dois anos. “Com o Pan, 500 casas foram marcadas para remoção, sem nenhum aviso prévio”, lembra Maria Lúcia Pontes. A destruição das residências chegou a começar, mas foi embargada por uma decisão judicial que acatou ação cautelar da Defensoria. Na época foram realizadas vigílias e os moradores tiveram apoio de movimentos sociais organizados, como o do MST, da Pastoral de Favelas, de organizações de direitos humanos, de setores do Ministério Público e de parlamentares como Brizola Neto, Edson Santos, Eliomar Coelho e Marcelo Freixo.
O Núcleo de Terras da Defensoria Pública acredita que até as Olimpíadas haverá muita pressão para que essas duas favelas sejam riscadas do mapa. Uma pressão muito maior do que aconteceu por ocasião dos Jogos Pan-Americanos. O próprio projeto apresentado pela candidatura Rio 2016 já mostra o Parque Olímpico construído no espaço onde hoje está a Vila Autódromo. Mas, se depender da defensora pública Maria Lúcia Pontes, a história vai ser diferente: “Alguns órgãos já dão a remoção como certa. Eu não trabalho com essa idéia. Trabalho com a resistência das comunidades”.
Os próximos sete anos vão dizer quem sairá vitorioso nas Olimpíadas Rio 2016: os Jogos ou os Negócios.
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