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20/09/2011

O complexo militar industrial e a energia núclear

Rui Namorado Rosa

O reprocessamento de combustível irradiado descarregado dos reactores é absolutamente necessário para disponibilizar combustível (reciclado ou convertido) em quantidade bastante para fazer da energia nuclear uma alternativa duradoura aos combustíveis fósseis; todavia poucos países procedem ao reprocessamento do combustível.
Esta situação irracional é de explicação complexa, mas não será separável da origem da indústria nuclear, desenvolvida para fins militares, no seio do complexo militar-industrial.

O COMPLEXO MILITAR INDUSTRIAL
É geralmente reconhecido que o termo “complexo militar-industrial” foi introduzido pelo general Dwight Eisenhower no seu discurso de despedida como presidente dos EUA, em 1961. As suas palavras parecem caracterizar a transformação económica e política então em curso, de que tinha profundo conhecimento decorrente das experiencias e responsabilidades assumidas nos cargos militares e políticos que exercera. É essencialmente a afirmação categórica de uma doutrina militarista, mas com precauções de ordem moral ou talvez táctica. Recordemos:
«…Até este último conflito mundial, os Estados Unidos não tinham indústria de armamentos. Os fabricantes americanos de arados poderiam, com tempo e se necessário, fazer igualmente espadas. Mas agora não podemos mais arriscar improvisar a emergência da defesa nacional; fomos obrigados a criar uma indústria de armamentos permanente e de vastas proporções. Somado a isso, três milhões e meio de homens e mulheres estão directamente envolvidos em instituições de defesa. Gastamos anualmente em segurança militar mais do que o lucro líquido de todas as corporações dos Estados Unidos.
Esta conjunção de um imenso estabelecimento militar e uma grande indústria de armamentos é nova na experiência americana. Essa influência total - económica, política, mesmo espiritual - é sentida em cada cidade, cada capital de Estado, todos os serviços do governo Federal. Reconhecemos a necessidade imperativa deste desenvolvimento. Contudo, não podemos deixar de compreender as suas graves implicações. Nossos trabalhos, recursos e meios de subsistência estão todos envolvidos; assim é a própria estrutura da nossa sociedade.
Nos conselhos de ministros, temos de nos precaver contra a aquisição de influência indevida, intencional ou não, pelo complexo militar-industrial. O potencial para a ascensão desastrosa de um poder indevido existe e vai persistir. Devemos impedir que o peso desse complexo alguma vez coloque em perigo nossas liberdades ou processos democráticos. Não podemos tomar nada por garantido…»
E também oportunamente identificou a relevância que nessa época simultaneamente adquirira a “revolução científica e técnica”, e como esta fora apropriada pelo referido complexo militar-industrial:
«…Semelhantemente, e com larga responsabilidade nas mudanças radicais da nossa postura industrial e militar, tem sido a revolução tecnológica verificada ao longo das décadas recentes. A investigação tornou-se central, também mais formalizada, complexa e dispendiosa. E uma parcela em constante crescimento é executada para o governo Federal, por este, ou por determinação deste…»
Assim registamos o testemunho de como o grande capital tomou a sinistra oportunidade da guerra para lançar mão sobre os cofres do estado e ganhar acrescida influência na sua direcção política. O projecto Manhattan, que em menos de quatro anos permitiu criar as bases da indústria nuclear e fabricar duas bombas que seriam testadas sobre cidades japonesas, já praticamente no fim da guerra em Agosto de 1945, é o exemplo máximo dessa profunda, rápida e perigosíssima transformação.
Decorreu meio século sobre esse discurso de Eisenhower.
A descoberta científica e a inovação tecnológica alargou ainda muito mais o horizonte em que o capital pode e consegue instalar a sua influência económica e política. A concentração do capital conferiu acrescido peso aos oligopólios que de facto comandam sectores industriais inteiros, que enquanto transnacionais abarcam como polvos o mundo inteiro, e persuadem ou impõem a sua vontade aos governos de estados dominadores ou dominados.
AS CORPORAÇÕES ARMAMENTISTAS
A lista das 100 maiores corporações produtoras de armamento, compilada pelo Instituto Internacional de Investigação para a Paz de Estocolmo (SIPRI), é uma fonte de reflexão. Essas 100 corporações controlam mais 20 outras subsidiárias, aí também listadas. Concretamente estas grandes empresas fabricam armas ligeiras e munições, artilharia, mísseis, veículos militares, serviços especializados, aviões, navios, satélites, equipamentos electrónicos, motores, e componentes diversos a serem integrados em equipamentos militares.
As suas vendas totais somaram 1543 mil milhões de US$ em 2009, sendo que só as vendas de armamentos somaram 457 mil milhões de US$ (cerca de 30%). E não obstante a crise financeira, nesse universo de 120 corporações as vendas totais não diminuíram de 2008 para 2009.
As 20 maiores delas (em volume de vendas) somaram 300 mil milhões em vendas de armamentos, enquanto que as 100 restantes somaram 157 mil milhões, indicando um elevadíssimo grau de concentração na produção e venda para fins militares. Os países em que essas corporações estão sedeadas são EUA (14), Reino Unido e França (2 cada) e Itália e Países Baixos (1 cada).
Se consultarmos a lista ‘Forbes 2000’, publicada em 2010, das duas mil maiores empresas do mundo cotadas em bolsa, classificadas no sector “Aeroespacial e Defesa” constam 21 corporações, com um total de vendas 448 mil milhões US$ (em 2009). Estão elas sedeadas nos EUA (9), Reino Unido e França (3 cada), Itália e Países Baixos (1 cada) e ainda Canadá, Singapura e Brasil (1 cada). Seguindo critério de classificação diferente dos do SIPRI, os resultados da Forbes não diferem muito, mas complementam a informação.
Ao longo de meio século subsequente ao discurso de Eisenhower, o complexo militar industrial permaneceu e reforçou-se, a par de outras formas de assumpção do poder absoluto pelo capital industrial e financeiro. Mas há mudanças e nuances que importa destacar.
A indústria militar não perdeu a sua ambivalência militar e civil, como Eisenhower interpretou e descreveu no seu tempo. Das 120 maiores corporações produtoras de armamentos compiladas pelo SIPRI, apenas 27 estão altamente especializadas na produção militar (com vendas civis inferiores a 10% do seu negócio). Este sector industrial tem beneficiado de enormes financiamentos da parte do estado, quer para execução de programas de investigação e desenvolvimento de novas armas e sistemas quer mediante encomenda e aquisição massiva de armamentos, equipamentos e serviços militares. Após o que as inovações e tecnologias desenvolvidas para fins militares encontraram numerosas vias de aplicação em produtos e serviços na esfera civil, assim facultando a multiplicação e acumulação de lucros. E em sentido inverso, componentes, produtos e conceitos da esfera civil foram e são incorporados ou adaptados para fins militares, permitindo alargar a base de aprovisionamento e o embaratecimento de produtos e sistemas militares, e facilitando o seu fabrico e difusão internacional, com análogo proveito para a indústria.
Assim aconteceu com os desenvolvimentos de ponta realizados em semicondutores de potência, sensores/actuadores e softwares, com o apoio de programas para a defesa, antes da sua incorporação e difusão em produtos de consumo massivo pela Intel, Motorola ou DaimlerChrysler, uma década mais tarde. De tal modo que as partes (circuitos integrados e várias camadas de software que os accionam) que pesam no preço e conferem enorme agilidade e precisão a novas armas são fabricadas pelas mesmas empresas que manufacturam microprocessadores para PCs e amplificadores para telefones celulares.
Por aí se compreende que a grande maioria das corporações que trabalham para a “defesa” repartam a sua produção entre fins civis e fins militares, para seu maior proveito.
A ENERGIA NUCLEAR
Diversos sectores industriais estão envolvidos no complexo militar-industrial, mas o nuclear será por ventura o mais exemplar e grave.
A energia do núcleo atómico foi uma descoberta científica que se precipitou nos finais da década de 1930, nas vésperas da Segunda Guerra Mundial. O projecto Manhattan, tendo em vista o fabrico de bombas de muita alta potência, permitiu criar as bases da indústria nuclear em menos de quatro anos. Em 1945 já haviam sido instaladas enormes unidades de separação de urânio-235 (o primeiro combustível nuclear) a partir do urânio natural; e já haviam sido construídos os primeiros reactores nucleares com a finalidade de conversão de urânio-238 em plutónio (um combustível nuclear de separação mais fácil e potencialmente acessível em maior quantidade); tal que as bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki eram, a primeira, de urânio-235 e, a segunda, de plutónio.
A base da indústria nuclear estava criada, viabilizada por um grande financiamento público e a criatividade de equipas de cientistas os mais iminentes (cujas convicções, comportamentos e trajectos futuros foram os mais diversos).
Desde a 1ª Conferencia das Nações Unidas para a Aplicação Pacífica da Energia Atómica, Genebra 1955, que o recurso à energia nuclear tem sido apontado como um futuro de abundância. Vários países exploraram diferentes conceitos de reactor e de ciclo de combustível nuclear, todavia a expansão do parque electronuclear deu-se a ritmo globalmente modesto. Vários constrangimentos têm-se evidenciado e até agravado: a segurança dos reactores dos modelos adoptados, o reprocessamento do combustível irradiado (isto é após “incineração” no reactor) para recuperação e reciclagem de combustível, e a deposição definitiva dos resíduos (radioactivos) da “incineração” nuclear.
Mas as aplicações militares da energia nuclear avançaram rapidamente e com sucesso. Nos EUA, em 1951 o Congresso aprovou a construção de submarinos de propulsão nuclear e, em 1955, o Nautilus (dotado de um reactor nuclear fabricado pela Westinghouse Co.) foi lançado ao mar. Três anos volvidos, a União Soviética lançou também o seu primeiro submarino de propulsão nuclear. Hoje, para além dos EUA e União Soviética/Rússia, também a França, China, Índia e Reino unido dispõem de submarinos nucleares, num total que se estima em várias centenas. Com uma carga de combustível (altamente enriquecido em urânio-235) bastante para operar durante 30 anos, e capazes de se manterem submersos durante muitos meses (só para reabastecimento e/ou mudança de guarnição), são utilizados para transportar cada um dezenas ou centenas de mísseis balísticos ou de cruzeiro os quais, quando dotados de ogivas nucleares, constituem armas nucleares estratégicas. E, para além dos submarinos, as grandes potências militares detêm ainda porta-aviões e outros navios de propulsão nuclear.
Na esfera civil o progresso foi mais lento, não obstante que sob a jurisdição da autoridade do mesmo estado. É certo que o muito pesado investimento inicial exigido por centrais electronucleares, que só a longo prazo (algumas décadas) seria recuperado, exigiria a intervenção do estado em multiformes apoios, incluindo o financiamento às indústrias que teriam a cargo o respectivo fabrico e posterior exploração. Mas podemos conjecturar que os reactores desenvolvidos e multiplicados para fins civis tivessem tido como primeira finalidade ou álibi, durante algumas décadas, converter urânio em plutónio (um combustível nuclear militarmente mais interessante), enquanto a produção de electricidade seria um subproduto, que contribuiria para atenuar o elevadíssimo custo económico de um programa nuclear cuja íntima vocação primeira era militar.
Os reactores nucleares e as centrais electronucleares têm sido objecto de desenvolvimento e fabrico através de empresas seja públicas seja privadas incluindo grandes conglomerados industriais - Westinghouse e General Electric (EUA), Mitsubishi, Hitachi, Toshiba (Japão), ABB (Suíça), AREVA (França), CNNC e SNPT (R.P. China) e Rosatom (Federação Russa). Algumas destas empresas fabricam reactores para fins quer pacíficos quer militares (casos da Westinghouse e da Rosatom). Estes interesses empresariais e suas capacidades tecnológicas estão intimamente interligados com os poderes políticos com que mutuamente se alimentam e promovem, e são ainda instrumentos de acção diplomática e de influência económica externa por parte dessas potências.
O ciclo do combustível nuclear, desde a extracção mineira de urânio até à deposição temporária ou definitiva dos resíduos radioactivos, tem nas fases de enriquecimento e na de processamento e reciclagem de combustível as suas etapas mais sensíveis, em virtude de ser aí que poderão, ou não, ser atingidas as especificações de combustível com aplicabilidade militar. Por isso, os fluxos e os teores de material nuclear estão sujeitos, em tais fases, à monitorização pela Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), caso os países de acolhimento sejam signatários do Tratado de Não Proliferação.
As grandes instalações de enriquecimento em países signatários do TNP - US Enrichement Corp (EUA), Rosatom (Rússia), Eurodif (França), Urenco (Reino Unido, Países Baixos, Alemanha, EUA) e CNNC (China), que totalizam 50 mil toneladas (unidades de trabalho separativo) de capacidade – são por essa via controladas. Mas outros países dispõem de unidades de enriquecimento cuja operação está ou não sob monitorização da AIEA, e há ainda notícia de tráfego de tecnologia ou de combustível que escapa à supervisão internacional. É nesta zona de silêncios e de enganos que os monopólios das potências nucleares procuram impor-se, cumprindo ou contornando os tratados NPT e SALT, e que a proliferação nuclear procura insinuar-se.
Quanto ao reprocessamento de combustível irradiado, para recuperação do plutónio e do urânio-235, existe disponível informação sobre as unidades públicas ou comerciais operando no Reino Unido (BNG, Sellafield), França (AREVA), Japão (Rokkasho), Rússia (MINATOM) e Índia, para fins civis, no total de cerca de 5600 toneladas/ano de capacidade; e também informação, menos segura, sobre capacidade de reprocessamento para fins civis e militares, nesses mesmos países e ainda nos EUA (unidades operadas pelo Ministério da Defesa), China (CNNC) e Paquistão (PNPFC).
Quanto aos resíduos radioactivos, o seu acondicionamento e deposição definitiva têm sido adiados pela indústria, por aí se acumulando um outro potencial de risco.
Os stocks mundiais de combustível nuclear ascendem a perto de 300 toneladas de plutónio, 2000 toneladas de urânio altamente enriquecido, 45 mil toneladas de urânio reciclado, e 1200 mil toneladas de urânio empobrecido (ou seja o urânio-238). Recorde-se que a bomba de Nagasaki continha “apenas” 6 kg de plutónio com o poder destrutivo de 21 mil toneladas de TNT.
Porém, o reprocessamento de combustível irradiado descarregado dos reactores é absolutamente necessário para disponibilizar combustível (reciclado ou convertido) em quantidade bastante para fazer da energia nuclear uma alternativa duradoura aos combustíveis fósseis; todavia poucos países procedem ao reprocessamento do combustível.
Esta situação irracional é de explicação complexa, mas não será separável da origem da indústria nuclear, desenvolvida para fins militares, no seio do complexo militar-industrial. Dessa circunstância histórica resultou que o conhecimento tecnológico sobre os reactores e sobre o ciclo de combustível foram adquiridos e continuaram reservados como segredos de estado, ou perseguidos como ameaça militar; os governos das potências nuclearizadas pretendem o controlo apertado do acesso ao combustível nuclear (sempre com maior ou menor utilidade militar). E o “urânio empobrecido” (“depleted uranium”) é encaminhado não para a produção pacífica de energia electronuclear, como deveria ser, mas sim também para fins militares, em vista das suas excepcionais propriedades mecânicas e térmicas, em munições, ogivas, blindagens de carros de combate, etc. De modo que fica prejudicada a sua aplicação para fins civis.
Concluímos que o que é bom para a indústria dos armamentos ameaça tornar-se a prazo em constrangimento inultrapassável para a indústria electronuclear.
Poderemos conjecturar que as aplicações pacíficas da energia nuclear poderão ter futuro sim, mas unicamente sob a direcção do estado, no quadro de uma política económica não submetida ao primado da ganância e da agressividade bélica do imperialismo.
BIBLIOGRAFIA
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