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16/09/2011

A eventual redução de concelhos e freguesias

Demétrio Alves

Uma reforma administrativa séria determinaria, em qualquer país e independentemente do sistema político, muito trabalho, muito debate e, sobretudo, a consciência de que não é coisa que se faça em poucos meses, sem dinheiro e apenas com um lápis, um mapa e uma calculadora.
Ora, o que nós agora temos aí, ditado pela Troika, e porque isso lhe chegou aos ouvidos a partir de fontes nacionais, é a imposição de uma reforma administrativa com incidência, entre muitas outras coisas, no número de concelhos e freguesias, que diminuiriam de forma drástica, por motivos quase exclusivamente orçamentais (diminuição da despesa pública).

A polémica em torno da questão da divisão administrativa do país é um tema
recorrente entre nós, apaixonando de forma extrema os povos e os dirigentes
políticos.
Há não muito tempo, em Fevereiro de 2006, anunciou-se que a Lei-Quadro de
Criação de Autarquias Locais passaria a chamar-se “Lei-Quadro de Criação,
Fusão e Extinção de Autarquias Locais, para pôr em marcha a fusão de
freguesias com dimensões mínimas”. A operação, segundo o secretário que
então tinha a tutela do assunto (Eduardo Cabrita), começaria pelas áreas
metropolitanas de Lisboa e Porto, nos municípios com mais de 50 mil
habitantes. A ANAFRE reagiu energicamente e os jornais passaram a dizer que
o governo apenas queria agrupar algumas freguesias das zonas urbanas.
Depois, o assunto foi adormecido.
Antes disso, em 2003, o presidente da república (Jorge Sampaio) vetou uma
nova lei-quadro dos municípios aprovada na Assembleia da República pela
maioria PSD/PP, suspendendo a criação, entre outros, dos concelhos de Fátima
e de Canas de Senhorim.
As razões invocadas para o chumbo presidencial prenderam-se com a ausência
no diploma de «critérios firmes, gerais e abstractos» que consubstanciassem
«o esforço de aperfeiçoamento de atribuições e competências das autarquias
locais e de adequação da respectiva escala às novas necessidades de
satisfação dos anseios das comunidades».
De facto, a tentativa de contornar a Lei 142/85, de 18 de Novembro
introduzindo um aditamento “habilidoso” ao art.º 2º que possibilitaria a
criação de novos concelhos, mesmo que não tivessem um mínimo de 10 000
eleitores (30 000 nas áreas de alta densidade populacional) e uma área
mínima de 24 km2 (500 km2 nas áreas de baixa densidade de população), era
manifestamente oportunista.
Sampaio lembrava no seu veto presidencial que estavam na calha iniciativas
tendentes à criação de 18 novos municípios, tendo sublinhado ainda que se
deveria proceder a um amplo debate sobre o recorte territorial do sistema
municipal, propondo a elaboração de um Livro Branco.
Muito antes disso, em 1998, poucos meses após as eleições autárquicas, foi
apresentado, na Assembleia da República, um projecto global com vista à
criação de algumas dezenas de novos municípios.
No rescaldo do referendo acerca da regionalização administrativa do
território continental, o PSD, que militou pelo não e ganhou, pretendia
sublinhar que “o futuro passaria por um aprofundamento da municipalização”
e, por isso, dizia então, se deveria criar mais municípios.
Do extenso pacote inicial foi possível chegarem à votação final três novos
municípios: Odivelas, Trofa e Vizela. Isso aconteceu porque estes eram os
projectos cujo preparo administrativo era suficiente e, também, porque houve
uma (estranha) sintonia nas vontades partidárias com assento parlamentar.
As circunstâncias políticas então vividas na Assembleia da República vieram
a determinar a autonomização de Odivelas e, em coerência com o que tinha
explicitado em tempo oportuno (no acto de apresentação pública da
candidatura), demiti-me da presidência da câmara municipal de Loures porque
entendia, como continuo a entender, que se tratava de um acto desnecessário,
oportunista e, pela forma como foi conduzido, inconstitucional.
Como escreveu Gournay “em todos os países e em todas as épocas, os homens
sempre se mostraram descontentes com a sua administração” e, por isso, uma
das fórmulas recorrentes a que os novos governos deitam mão para cair nas
boas graças da “opinião pública”, é anunciar uma comissão que irá estudar a
“reforma da administração pública”. Depois, com o tempo e perante as
“realidades”, a coisa esmorece.
É necessário ter em conta que uma reforma administrativa séria determinaria,
em qualquer país e independentemente do sistema político, muito trabalho,
muito debate e, sobretudo, representa, pelo menos numa primeira fase,
aumento da despesa. Não é coisa que se faça em poucos meses, sem dinheiro e
apenas com um lápis, um mapa e uma calculadora.
Ora, o que nós agora temos aí, ditado pela Troika, e porque isso lhe chegou
aos ouvidos a partir de fontes nacionais, é a imposição de uma reforma
administrativa com incidência, entre muitas outras coisas, no número de
concelhos e freguesias, que diminuiriam de forma drástica, por motivos quase
exclusivamente orçamentais (diminuição da despesa pública).
Esta imposição é apresentada aos portugueses como uma necessidade de
modernização e racionalização que adeqúe o país aos standards europeus.
Torna-se, então, necessário esclarecer que a Europa não tem fundamentos
éticos e políticos para impor a Portugal uma realidade que ela própria não
verifica na maior parte dos seus membros originários.
De facto, desde há cerca de 175 anos que foi feita em Portugal uma reforma
administrativa profunda, com incidência, entre muitos outros aspectos, no
desenho territorial do sistema político-administrativo, reduzindo em cerca
de 400 o número dos concelhos há data existentes e introduzindo metodologias
que evitaram que o número de municípios crescesse até cerca de 1000.
Com o advento do liberalismo, Mouzinho da Silveira primeiro (1832), através
de uma reforma então muito criticada e apodada de estar impregnada de
“francesismo” e de centralismo, e Passos Manuel depois, na sequência do
setembrismo (1836), introduziram as bases da administração moderna e liberal
no nosso país. Uma das medidas introduzidas em 1836 foi a já referida
redução do número de concelhos, que ficou transitoriamente fixado em 351, de
modo a permitir a viabilidade e eficácia da sua administração. Quanto às
freguesias a situação manteve-se incerta, do ponto de vista administrativo,
até finais do século XIX.
Esta grande reforma no formato da administração ao nível territorial não
teve paralelo na Europa durante cerca de um século.
No caso da Alemanha, países nórdicos, Bélgica e Holanda, só se operou uma
reforma administrativa com expressão significativa na redução do número de
concelhos nos anos sessenta do século XX. E, mesmo assim, a Bélgica ficou
com 600 municípios e a Holanda com 500 (hoje tem 430)!
Na Inglaterra ocorreu no início dos anos 70, sob o impulso neoliberal, a uma
redução de 1500 para cerca de 450 no número das local authorities. No Reino
Unido existem hoje 406 entidades equivalentes aos municípios portugueses,
embora haja, também, 28+3 autoridades autárquicas de nível regional.
Na França, onde “chaque paroisse, chaque commune”, na Espanha e na Itália
nunca se procedeu a qualquer diminuição sensível do número de concelhos
mantendo-se respectivamente em 36 682, 8 116 e 8 094!
E não se pense que são casos ímpares. A República Checa, que é o país com o
mais baixo número de habitantes/concelho (1 900) tem 6250 concelhos e a
Eslováquia 2928.
É interessante verificar que, na União Europeia a 27, do ponto de vista da
“racionalidade” aritmética desta matéria, os países que se encontram em
“melhor” situação são, por ordem decrescente: Reino Unido, Dinamarca,
Lituânia, Irlanda, Países Baixos, Grécia, Portugal e a Suécia! Ou seja, isto
demonstra de forma clara que não há qualquer relação racional entre o nível
de desenvolvimento, o grau de dificuldade orçamental pública e o tipo de
desenho administrativo territorial!
Parece, portanto, poder concluir-se que a urgência com que determinadas
entidades querem concretizar uma reforma que leve ao corte no número de
municípios portugueses é desprovida de fundamento.
A reforma da administração pública é, se feita numa base de honestidade
intelectual e seriedade política, necessária e positiva, incluindo nela, em
algumas situações bem ponderadas, a redução do número de freguesias e, até,
de municípios, mas, e sempre, ao mesmo tempo que se opera à alteração do
número de entidades da administração central e se concretiza uma
regionalização efectiva, neste caso, através de uma metodologia gradual que
se vem, aliás, propondo há alguns anos. Não é, contudo, possível proceder a
esta reforma, difícil em si mesma, sob a batuta e de acordo com os
princípios defendidos pela Troika.
Mesmo segundo uma perspectiva política que se imagina ser próxima às forças
partidárias da actual maioria, não se afigura prudente o governo deixar
enredar-se neste processo, que se antecipa ser de enorme conflituosidade
institucional e social. Ora, para conflitos, já lhe devem chegar aqueles que
são certos.

http://www.odiario.info/?p=2187

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