À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

24/03/2011

Um discurso esclarecedor (De quê? Sobre quem o fez!)

Sérgio Ribeiro

"Neste torvelinho, notas para não se esquecer um insurpreendente discurso do método do falso economédico à cabeceira do doente imaginário mas realmente paciente.
As primeiras tentativas de «construção» sistematizada de um pensamento económico tiveram por base a analogia com a circulação do sangue no corpo humano. Para o que não foi indiferente, obviamente, o facto de o «chefe» dessa primeira «escola económica» – dos fisiocratas – ser um médico, o dr. Quesnay.
Isso sabe o recentemente empossado Presidente da República, há menos de dois meses eleito pela «esmagadora» maioria de um em cada quatro portugueses votantes e menos de metade dos que votaram, de profissão economista e que tem feito questão, à maneira do médico Quesnay, em fazer diagnósticos, alguns bem tardios mas sempre como se fossem prognósticos e ele, bruxo, se estivesse a antecipar ou, oráculo, a dizer a última e definitiva palavra.

A pose no discurso de posse

No seu discurso na tomada de posse, para além de outras abordagens laterais, Cavaco Silva reincidiu na do diagnóstico e, verdade seja dita, embora centrando o estado do «paciente», de Portugal que não do povo português, nos últimos dez anos, esse diagnóstico não ficaria mal em qualquer currículo profissional.
No entanto, seria evidentemente insuficiente. Mesmo apenas como economista, por criteriosa que tivesse sido a escolha das fontes e dados estatísticos, e por brilhante que tivesse sido a sua «arrumação» dos números, quadros e legendas – e não se pode dizer que o tenham sido – nunca seria bastante o diagnóstico.

De economistas e de médicos, como de loucos…

Mantendo o recurso à analogia da economia com a medicina (e de médico e de louco parece que todos temos um pouco, talvez sobretudo os economistas), acrescentaria, já, que nunca um médico pode ficar-se por dizer como está o paciente. Tem de procurar saber porquê e de propor terapia ou terapias.
Cavaco Silva, nesse aguardado discurso, em que demonstrou não querer frustrar as expectativas (o que não quer dizer que não o tenha feito), nada disse sobre as causas da situação que pretendeu, professoralmente, caracterizar e muito menos referiu os responsáveis.

As causas anteriores
ainda que historicamente próximas

E as causas do «estado de saúde» da nossa economia estão nas opções políticas que têm sido levadas a execução, estão nas opções de políticas ao serviço de interesses de (uma) classe, no contexto das relações de forças sociais, quer internas quer internacionais, e entre si articuladas.
As causas remontam há mais de três décadas, quando essas relações de forças sociais permitiram que, pouco a pouco, fossem sendo recuperadas situações de domínio na vida social, por parte de grupos económicos e financeiros, com o auxílio do exterior, através das cartas ao FMI, com a «Europa connosco», sempre prevalecendo, politicamente e como opção estratégica quase sempre escondida, sobre as conquistas sociais alcançadas em curtos mas históricos meses de luta e de caminhos abertos para um futuro outro. Que era preciso, para o sistema, travar, subverter e inverter.

Os choques brutais
na nossa recente História

Prosseguindo com a analogia sanitária, Portugal, nesta década e meia, sofreu dois choques brutais.
Um, vitamínico, de força e de esperança, logo seguido de um outro, anafilático, de transformação brutal do rumo apenas encetado, com abandono das reservas vitais, de desprezo pelo mar, pelo solo, pelo subsolo, tudo rendido à introdução agressiva, e aos avanços, de uma financeirização banqueirizada, substituída a produção e a distribuição pelo crédito, pelas taxas de juro, pelo endividamento.
Sempre contra (anemiando) o trabalho que produz riqueza, logo, inevitavelmente contra os trabalhadores e os empreendedores produtivos, em favor (e a mando) dos «senhores do dinheiro», de dinheiro ou apropriado por herança ou exploração, ou de empréstimo, ou de tráficos (de influências e outros), ou fictício porque sem qualquer base material. Um processo não linear, com resistências também não lineares, com altos e baixos, um processo de avanços e recuos, ele próprio criador de dificuldades pelas suas intrínsecas contradições.

Ignorando o histórico
e os responsáveis

Fazer o diagnóstico sem referenciar as causas parece, a este leigo que sou em medicina, dar atenção à febre e ignorar o que a possa estar provocando.
Mas as causas também têm, no corpo social, responsáveis, os que provocam as malfeitorias, os que agridem a natural/social ordem das coisas, e do seu andamento. Por aceleração nuns casos, por travagem e até destruição em outros.
Cavaco Silva ilustra esta posição quando, ao diagnosticar a fraqueza da nossa economia, o desaproveitamento dos nossos recursos, louvaminha o nosso mar e ignora o que levou ao seu desaproveitamento nosso – e não se trata, apenas, da pesca –, e faz porque seja esquecido que esteve dez anos como executor-primeiro de uma política que desprezou essa nossa «vantagem comparativa» numa negociação permanente como foi, e é, a integração do nosso Estado como membro, sem deixar de ser soberano, de um espaço mais largo, europeu.
Porque Cavaco Silva antes foi o veículo mais longo e mais notório da desactivação e entrega do aproveitamento do mar nosso a quem o aproveitasse, para agora termos de importar (e ser parte de dívida) o peixe que comemos, não termos os benefícios potenciais da nossa localização e condições geográficas, pontos de partida e passagem para tantos caminhos e circulação por mares já tantas vezes navegados.
Um diagnóstico sem antecedentes clínicos e sem análise dos factores de agressão anteriores. Et pour cause, ou melhor: e por boas (dele) razões.

Diagnosticar sem terapia

Para o outro lado, para o lado da frente, para o pós-diagnóstico, também Cavaco Silva, no seu discurso, foi incompleto ou incompetente, enquanto putativo clínico. Nem um comprimidozinho receitou.
Sintomaticamente, Cavaco Silva, a modos de substituição de recomendar ou aconselhar (ao menos...) terapias, apenas apelou às partes novas do corpo social, num demagógico aproveitamento de uma onda, entre o Festival da canção e a manifestação «espontânea» do dia 12 de Março.
Ora um esculápio que se preze não deixa o paciente, no final da consulta, sem uns conselhos, umas prescrições, sem adiantar uma terapêutica. Ou mais que uma.

Quem só sabe de finanças,
de mais não sabe

Acontece que o dr. Cavaco Silva só sabe de finanças (do Estado e das suas, pessoais). Ele pode, com a prosápia que o caracteriza, dizer-se economista – e o melhor, senão o único –, mas este qualificativo exige que, da economia, se saiba mais do que as manigâncias das estatísticas monetarizadas, das cont(h)abilidades manipuladoras de défices financeiros, das taxas de juro.
Para se merecer o qualificativo, exige-se, na minha evidentemente modesta e (por isso mesmo) falível opinião, que não se dê o salto que afaste o candidato a economista de tudo o que seja a linha de pensamento pós S. Tomás de Aquino (que tanto atacou a usura): dos mercantilistas para os fisiocratas, dos fisiocratas para os clássicos, dos clássicos para os monetaristas, e no keyneseanismo só em último recurso e como bóia de salvação, que essa coisa da «procura efectiva» pode tornar-se complicada. Exige que não se dê esse salto em que se faz de conta que não houve Marx, que a História são estórias que se contam «à maneira», e que o materialismo e a dialéctica (juntinhos) não passam de sonhos maus de que já se teria acordado.

O que a realidade
não deixará de provar

Cá estamos, com a realidade, para lhe provar que, com ou sem livros, o futuro é esse para que os livros que ele não leu – e que continuam a ser escritos – apontam. Não porque tenham modelos pré-estabelecidos, porque incluam receitas infalíveis, terapêuticas «milagrosas» ou recuperadoras, mas porque começaram a desenhar as chaves para as portas que abrem o futuro, chaves fabricadas por quem estudou – e estuda – as causas das situações, denunciou – e denuncia – os responsáveis. Porque se vencerão os receios de abrir essas portas. Porque esse futuro porá o capitalismo no passado, e será o socialismo.
O dr. Cavaco Silva? Enquanto economista (como ele se pretende) é um mau médico. Enquanto Presidente da República… é uma pena! E, às vezes, uma vergonha para todos nós por ser o que é, e como lá chegou."

http://www.avante.pt/pt/1947/temas/113193/ 

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