Correia da Fonseca
A generalidade da televisão portuguesa foi muito discreta ao anunciar a vitória eleitoral do presidente Evo Morales. É certo que essa discrição foi ajudada pelo justo relevo dado ao início da Conferência de Copenhaga, facto de primeiríssima importância no contexto internacional. Não obstante, compreende-se que a TV portuguesa, democrática e atlântica, não tenha grande simpatia por um homem que, para além de se assumir como sendo de esquerda, amigo de Fidel e de Chavez, ainda se atreveu a expulsar em 2008 o embaixador dos Estados Unidos, crime que agravou ao afirmar que a Bolívia vive melhor sem a presença daquele diplomata. Já acontecera que em Outubro passado, quando por iniciativa do presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, Miguel d’Escoto, ao presidente boliviano foi atribuído o título de Herói Mundial da Mãe Terra, as três operadoras portuguesas de televisão se haviam dispensado de nos dar a notícia. Cheias de razão ou, pelo menos, cheias das suas razões. Agora, naturalmente, não tiveram outro remédio: a TV pode ajeitar a realidade mas nem sempre pode propriamente suprimi-la. Mas a omissão daquele facto e a redução ao mínimo da inevitável notícia da reeleição de Morales podem talvez levar-nos a imaginar como andamos, enquanto telespectadores, mal servidos em matéria de informações acerca do que se vai passando na América Latina. Entende-se: as coisas por lá vão mal encaminhadas para os grandes negócios norte-americanos e, parafraseando um antigo secretário de Estado norte-americano, bem se pode dizer que o que vai mal para as grandes empresas USA vai mal para os Estados Unidos, o grande país que é como pai e mãe de alguma actividade informativa em Portugal. Assim, e para não irmos mais longe, podemos interpretar o desafecto relativamente a Evo Morales e outros como efeito de um louvável sentimento de fidelidade filial por parte do telejornalismo lusitano. E ficarmos por aqui.
Como Luís XV
Entretanto, a passada segunda-feira teve por tónica da informação televisiva, como já acima foi referido, a abertura da Cimeira de Copenhaga. E é claro que com toda a justificação: como se sabe, a degradação ambiental atingiu dimensões tais que pode estar em questão a sobrevivência da própria espécie humana, designadamente se as coisas continuarem como até aqui. Sendo assim, é obviamente urgente travar o sinistro deslize para a autodestruição, encontrar os caminhos para essa travagem, parar a gigantesca máquina que nos trouxe a todos para a beira deste abismo. Tratando-se, porém, de encontrar uma solução, não será decerto inadequado que se procure identificar as mais pesadas causas do desastre em curso e, não sei porquê, parece duvidoso que esse trabalho seja feito em Copenhaga ou que, pelo menos, dele se notem ali sequer vestígios. Contudo, há factos, há indícios, há evidências. Sabe-se que a gula negocista não hesita em sacrificar os mais óbvios princípios da preservação ambiental quando se trata de arrecadar lucros. Sabe-se que a dinâmica interna do capitalismo na sua fase imperialista obriga à conquista de novas fontes de matérias-primas e de novos mercados por todo o planeta, e isto a qualquer preço. Sabe-se que a exploração dos países pobres pelos poderes fácticos do capitalismo implica não só a pauperização das vítimas mas também a infracção das mais elementares regras de preservação ambiental. De tudo isto, que ainda está longe de ser tudo, emerge uma espécie de retrato-robot do criminoso: o retrato-robot do capitalismo. De onde uma conclusão dificilmente evitável: é preciso detê-lo para que nos salvemos todos e sobretudo os que vierem depois de nós. De facto, o esmagador domínio capitalista/imperialista sobre os quatro cantos do planeta tem vindo a agir como que seguindo a velha regra de Luís XV (de quem, de resto, a generalidade dos dirigentes capitalistas saberá apenas que foi um europeu da «velha Europa», e isto se a tanto lhes chegar a sabedoria): «-Depois de mim, o dilúvio!». Pois bem: o dilúvio aí está, bem à vista. E a tarefa que a Cimeira de Copenhaga tem pela frente é a de sustá-lo, o que parece passar por, com excelentes modos, convencer os criminosos a deixarem de o ser embora com o sacrifício de alguns dólares. Para que se salve o planeta. Regressa à memória a antiga fábula do escorpião e da rã, já nestas colunas uma vez recordada e por isso não convocada de novo, agora. Mas lá que ela existe há séculos, isso é verdade. E é sábia.
Avante - 10.12.09
À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.
10/12/2009
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