À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

10/12/2009

Invernias

Anabela Fino

As cheias e as inundações são dois dos mais inextricáveis mistérios portugueses. Por qualquer motivo todos os anos – excepto em tempo de seca, naturalmente, que é matéria misteriosa de outros capítulos – os governantes nacionais dão pública nota do profundo espanto que os assola sempre que a chuva cai mais abundantemente e/ou os rios enchem e as águas e lamas, em vez de sumirem por obra e graça do espírito santo, como soe dizer-se, insistem em inundar ruas, casas, armazéns, garagens, lojas, fazer saltar tampas de esgotos, esburacar estradas, atrapalhar o trânsito... E se esse mistério que é a chuva vier tocado a vento forte, então é o descalabro, com telhados a saltar, ramos de árvores a cair, caixotes de lixo a deslizar de carro em carro que é um ver se te avias em amolgadelas, para além de um sem número de outras pequenas e grandes ocorrências a exigir presença de bombeiros quando não mesmo de assistência médica.
Há alguns anos, perante a persistência do fenómeno e depois de muito puxarem pela cabeça para descobrir «o que fazer», as cabecinhas pensadoras do País tomaram uma brilhante decisão, cuja foi criar a Protecção Civil, que a partir de então – e salvo opinião mais abalizada – faz o favor de decretar alertas coloridos para informar que vai chover ou ventar com mais ou menos intensidade, pelo que devemos fechar portas e janelas, evitar passeios à beira-mar e pescarias nas águas alterosas, como se assim ficássemos protegidos do crónico entupimento de sarjetas, do rebentamento de esgotos subdimensionados, do esboroar de telhados decrépitos, das casas construídas nos leitos dos rios, da impermeabilização dos solos, dos contentores de lixo bailarinos, das árvores a cair de podres, etc., etc., etc. Está por apurar o saldo das prestações da Protecção Civil, mas toda a gente sabe ser voz corrente que lá proteger, proteger, propriamente dito não protege, e não rezem as crónicas haver grande consolação em saber com antecedência estar eminente o desastre quando não há meios para o evitar, como por exemplo fazer rapidamente um seguro contra todos os riscos de pessoas e bens, mudar temporariamente para um hotel ou pousada com piscina e jacusi incluídos, antecipar férias para entreter o 'mau tempo', fazer num instantinho uns desvios para a água seguir legitimamente o seu curso sem embater no curso da vida dos homens. Inferir daqui que a Protecção Civil não serve para nada seria não só injusto como manifestamente errado. Que o diga o Governo! Não fora a sua prestimosa colaboração e a esta hora toda a elite política da Europa civilizada estaria de cama, no mínimo com pneumonia tripla, a rogar-nos pragas e a questionar-se como tinha caído na esparrela de vir dar o amen ao Tratado de Lisboa em pleno mês de Dezembro e à beira rio, ali para a Torre de Belém. O que podia ter sido um cenário apocalíptico acabou por ser uma experiência requintada: uma gigantesca tenda transparente – ao que se diz pela módica quantia de um milhão de euros, fora o resto – que até deu para sair das limusinas sem molhar os delicados pés e ver o fogo de artifício sem salpicos de água. Um achado. Vamos a ver se a moda pega, que o pessoal começa a ficar cansado de águas pelas canelas quando acontece ser Inverno.
Avante - 10.12.09

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