À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

15/04/2010

A lei

Correia da Fonseca

Durante cerca de vinte minutos, entre o Jornal Nacional e uma das muitas novelas que asseguram à TVI o título de rainha das audiências (neste caso era «Mar de Paixão», título que desde logo permite que imaginemos milhares de telespectadores, talvez sobretudo de telespectadoras, em estado de fascínio perante as pungências diversas motivadas por amores e desamores escaldantes, cruzados e difíceis), a estação falou-nos dos desempregados. Foi uma reportagem intitulada «Estrada do Desemprego» que não terá sido uma obra-prima, que pode ter sido a reportagem possível, mas que teve pelo menos o mérito não pequeno de em pleno «horário nobre» vir lembrar o horror que percorre o País de Norte a Sul, que alastra como uma doença infecciosa que não encontra resistências, mas de que, contudo, a TV só costuma dar-nos informações pontuais: hoje um surto aqui, amanhã um outro mais além, palavras consternadas agora sem que depois disso fiquemos a saber como nos tempos seguintes continuaram vivos os que foram atingidos pela peculiar epidemia. Se é que continuaram vivos. Porque «Estrada do Desemprego» recolheu palavras de pelo menos uma trabalhadora desempregada que já por três vezes tentou o suicídio, registou a informação de um suicídio consumado por um outro desempregado, mas um dos dados que decerto ficará para sempre reservado é o do número de trabalhadores que o desemprego empurrou para a morte voluntária. Sabe-se que por razões de profilaxia social os media se coíbem de noticiar os suicídios havidos quaisquer que sejam as suas motivações, e que a medida se justifica porque a tentação do suicídio pode ser contagiosa. Mas é claro que a ignorância dos números não desmente que o desemprego e os sofrimentos vários e terríveis que ele engendra produzem a morte. Pelo que, como bem se entende, uma política que pactue com o desemprego ou que, mais simplesmente, não o enfrente como é preciso enfrentá-lo, é verdadeiramente criminosa, culpada de crimes de morte.

Louvor e simplificação

Apesar dos evidentes bons sentimentos, a reportagem não se demorou a penetrar um poucochinho no quotidiano dos trabalhadores desempregados para ver de que será ele feito. Ouviu-se uma trabalhadora dizer que «lá em casa há três desempregados», uma outra a falar de marido e mulher simultaneamente desempregados como aliás tantos casos mais, mas sempre a reportagem se quedou no limiar desses desastres sem entrar dentro deles para saber das consequências concretas. Em compensação, digamos assim, pelo menos por três vezes ouvimos um economista falar do assunto, e não um economista qualquer mas sim o dr. João César das Neves que, como é sabido, ganhou alguma celebridade pelo sabor já desusadamente «retro» das suas opiniões. Foi ele que, quase emblematicamente instalado no fofinho interior de um automóvel, explicou que o mal da situação não resulta do facto de encerrarem tantas empresas, motivando desemprego, mas sim de não surgirem nenhumas ou quase nenhumas empresas novas, pois isso de fecharem umas e abrirem outras corresponde à própria normalidade, à verdadeira lei da vida económica em que vivemos. Ficámos assim a saber que as novas empresas que abrirem, se abrirem, virão salvar do desemprego os trabalhadores que por aí dificilmente sobrevivem no fio da navalha do desespero; os que trabalharam vinte ou trinta anos numa só profissão; os que têm quarenta ou cinquenta anos de idade e há muito esgotaram o subsídio de desemprego; os que se viram obrigados a uma reforma prematura com uma mensalidade de miséria. Por mim, fiquei reconfortado, pelo menos por uns momentos: não há nada como ser economista para simplificar as coisas. Sobretudo quando se é João César das Neves e graças a esse privilégio se pode até insinuar um certo louvor do capitalismo mesmo em tempos de crise. Mas logo a seguir, a partir das escassas amostras da realidade que a reportagem trouxera, imaginei tudo o que ela não narrara mas existe. Cada vez mais. E percebi que as soluções têm de ser apontadas por outros economistas que desçam dos estofos dos automóveis, pisem a dureza das realidades e olhem de perto os que se arrastam na estrada que deu título à reportagem.

http://www.avante.pt/noticia.asp?id=33204&area=33

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