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06/01/2011

Ressuscitando o que nunca morreu: «duas velocidades» e «núcleo super - integrado periferia»

Sérgio Ribeiro

Na chamada «construção europeia», não me parece possível (ou sério…) tratar das suas actuais tendências sem recuar pelo menos até à década de 70, ao desmantelamento do «sistema monetário» capitalista, criado no pós-guerra e às tentativas de o compensar com mecanismos ou um sistema regionais, como resultaria do relatório Werner (que, anterior ao alargamento de 6 para 9, apontava para uma UEM e para uma moeda única até 1980!), iniciativa que se viria a reduzir a um «sistema monetário europeu» minimalista, que se juntava a um Fundo Europeu de Cooperação Monetária, de 1972, logo depois da decisão de Nixon, de Agosto de 1971, de tornar inconvertível o dólar, e assim fazer desmoronar o que vinha de Bretton-Woods (acordo de 1944 entre 45 países).
É também após essa decisão unilateral dos EUA que o relatório Tindemans cumpre incumbência das então chamadas cimeiras da CEE – reuniões ocasionais de chefes de Estado e de Governo, antes da institucionalização do Conselho Europeu –, e o seu conhecimento tem acrescido significado no actual momento (histórico). Para além da definição de várias linhas de estruturação (como a eleição directa para o Parlamento Europeu) e de acção, que entroncam na deriva neoliberal e monetarista do imperialismo do final dos anos 70/começo dos anos 80 e que estão referidas na história «oficial» da integração capitalista europeia, esse relatório apontava para uma estratégia de «duas velocidades» assente numa divisão dos estados-membros em um núcleo super-integrado e uma periferia, sendo o núcleo super-integrado formado pelos estados «fundadores», com a prevalência de um directório informal franco-alemão, que desde o início marca o processo. Acontece que a estratégia então desenhada é pouco conhecida, até porque não referida na tal história «oficial», e é sempre ocultada por uma peneira.

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Pode, no entanto, afirmar-se que na dita «Europa» não havia, então, uma periferia. Esta começa a ter alguma expressão quando à Irlanda, que entrara em 1972 com o 1.º alargamento, e ao Sul da Itália, se vieram juntar, primeiro, a Grécia e, depois, a Espanha e Portugal.
Só a 12 se fez a revisão do Tratado de Roma, assinado por seis, e se fez avançar a dinâmica do mercado interno, com a complementaridade (no Acto Único) de um princípio de coesão económica e social, não só resultado da relação de forças sociais mas também com a intenção de evitar o agravamento para níveis insuportáveis das assimetrias e desigualdades que a dinâmica do mercado interno necessariamente provocaria. Assim se criando um grupo de países chamado «da coesão».
O facto, que hoje é importante lembrar, é que, no início de 1979, antes dos alargamentos, entrou em vigor o referido «sistema monetário europeu», com uma «unidade de conta» (o ECU,  média ponderada das moedas nacionais) e um «mecanismo de taxas de câmbio» (MTC), que as faria serpentear num túnel, sistema que iria vigorar até ser substituído pela moeda única e o Banco Central Europeu na União Económica e Monetária.
As (es)forçadas tentativas que levaram a estas mudanças foram paralelas a outras mudanças e alargamentos, que prosseguiram e criaram a situação de, por um lado, i) se ter fechado a orla periférica em redor de um núcleo central, o não formalizado núcleo super-integrado, com a Alemanha reforçada pela extensão a Leste, por território alargado e também por uma periferia nesse ponto cardial, e, por outro lado, ii) se acentuar a tendência federalista com a criação da UEM e os passos (alguns frustrados) para uma União Política na esteira das Conferências Inter-Governamentais (CIG) que se reflectem no Tratado de Maastrich, e este consagra, com todas as dificuldades e contradições próprias do processo histórico e do funcionamento do capitalismo.
Na passagem do «sistema monetário europeu» à UEM, estiveram sempre subjacente as «duas velocidades» e o «directório», com uma tendência não escamoteável de que a União Europeia teria de construir mecanismos e instrumentos que, embora federalizantes (e a moeda única e o BCE são instrumento e entidade federalistas), se adaptassem aos diferentes níveis, por mais únicos que se afirmassem esses mecanismos e instrumentos.
Nos trabalhos da comissão do PE que fora criada para acompanhar a criação da moeda única foi evidente que os critérios nominativos, sempre afirmados rígidos e inflexíveis, deixariam de o ser, ganhariam flexibilidade e até permissividade, para entrarem na UEM moedas de estados-membros do «centro» que os não cumprissem (caso da franco francês e do próprio marco), por terem tendência a cumpri-los…, enquanto outros estados da «periferia» que, com grande sacrifício de conquistas sociais dos seus povos (como era o caso de Portugal), cumprissem os critérios poderiam não ser «aceites» por esses resultados não serem considerados «sustentáveis»!

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Essa posição e contradição teria sido superada pela adopção de um pacto, o PECPacto de Estabilidade e Crescimento – de 1997, que representa «o enquadramento regulamentar para a coordenação das políticas orçamentais nacionais na União Económica e Monetária (UEM). O PEC foi estabelecido com o objectivo de salvaguardar a solidez das finanças públicas, indispensável ao bom funcionamento da UEM, e comporta uma vertente preventiva e uma vertente dissuasora» (como se pode ler na história «oficial» na net).
Não há, portanto, «novidades». Nem na sigla PEC…
O que há, e é necessário encarar com grande atenção, é um reforço das vertentes preventiva e dissuasora, não se ficando esta por avisos e eventuais sanções, e outro tipo de intervenção sobre os orçamentos nacionais, como instrumentos privilegiados da estratégia dos interesses dominantes. Também o objectivo central da criação da UEM, a estabilidade financeira, pode estar a ser considerado não concretizado, ou concretizável, dada a presença na moeda única de moedas de algumas «economias nacionais» não sustentadas financeiramente, não obstante todas as vantagens nas relações centro-periferia que já dela obtiveram os países do «centro», numa crescente interdependência entre os estados com evidente agravamento das assimetrias («interdependência assimétrica»).
Sendo este um tempo histórico de encruzilhada, há que não perder de vista os caminhos que a ela nos trouxeram. E, a partir daí, procurar ver quais os cenários possíveis.
Não se pode, por isso, deixar de sublinhar a percepção de que a presença das moedas dos países periféricos no euro, com um estatuto igual ao do marco, não é – e nunca foi – pacífica para os interesses que predominam na posição política que a Alemanha (e países da sua zona de influência monetária) interpreta. O que muito condiciona ou determina esses cenários.
Como, num outro plano, a situação na luta de classes (que é a História, enquanto houver classes) também o faz. E, aí, temos um papel a representar.
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Há que ter também em atenção que a criação do euro não obedeceu, tecnicamente, a pressupostos que se possam considerar consistentes:
1. não foi criada, sequer nos seus prolegómenos, uma zona monetária «óptima»;
2. a dinâmica da serpente no túnel com um estreitamento progressivo das margens de oscilação das taxas cambiais não MTC não funcionou, antes se inverteu em 1993 e obrigou a adiar os prazos antes marcados (ver ilustrações);
3. a definição das taxas cambiais para os países que iriam entrar no euro, foi feita sem salvaguardar interesses nacionais muito determinantes das suas soberanias (Portugal, com as suas actividades de exportação e de turismo, sofreu um duro golpe pela sobrevalorização do escudo antes da sua absorção no euro).

(do livro Décadas de EUROPA, Sérgio Ribeiro, edição do autor, 1994)

http://www.avante.pt/pt/1936/temas/112014/

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