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27/05/2010

Brincar aos luxos

Correia da Fonseca

As chamadas Galas dos Globos de Ouro da SIC nasceram inevitavelmente «com o destino marcado», perdoe-se-me a fórmula de clara inspiração fadista: o de serem uma versão provinciana das entregas dos Oscares de Hollywood. Não é exactamente um pecado mortal que assim seja, muito menos se trata de um fenómeno raro, pois bem se sabe que a tentação de imitar a gente crescida ou a gente supostamente notável é um pendor que sempre persegue os que se sabem menores em qualquer sentido. Mas o inconveniente situa-se exactamente nessa menoridade tornada mais evidente pela frustrada tentativa de igualar os modelos. Há, de resto, uma abissal diferença de escala entre os Oscares e os Globos de Ouro da SIC: aqueles são uma gigantesca operação comercial com impacto transcontinental, estes são uma tentativa algo ingénua de autopromoção. Mas são também o auto-retrato de um segmento desta sociedade que se supõe distinto e talvez civilizado porque as damas ostentam vestidos caros e alguns cavalheiros envergam smokings alugados ou não. Quanto propriamente aos Globos, de atribuição sempre ou quase sempre discutível como ocorre com todos os prémios, servem pelo menos para chamar as atenções para méritos que existem entre nós e muitas vezes são subavaliados se não ignorados. É, sem dúvida, uma virtude: já cansa o permanente sussurro que nos garante sermos os piores do mundo. É certo que também aqui, na atribuição dos Globos, até é capaz de estar presente o efeito da luta de classes, esse dado sociopolítico fundamental que um alemão identificou vai para dois séculos e que o nosso actual primeiro-ministro, perspicaz, descobriu que já não existe se é que alguma vez existiu. Mas é preciso perceber que não há milagres. Que até mesmo Fátima é recusada por vozes cristãs e católicas e que o Coliseu dos Recreios está longe de se parecer com a Cova de Iria. Pelo que é certo haver méritos. Não sendo de mais dizer que ainda bem.

De súbito, a certeza

Mas o que nisto dos Globos de Ouro da SIC será mais interessante é que uma boa parte dos telespectadores que acorrem a ver a festa, e talvez sobretudo das telespectadoras, não o faz para saber quem é coroado como o melhor actor de Teatro ou como o melhor realizador de Cinema, mas sim para mirar e remirar os vestidos das senhoras e outros luxos complementares. De resto, a SIC teve o cuidado de em reportagem prévia nos informar dos cuidados havidos com esse particular aspecto da festa e dos preços pagos. Não eram preços baixos e eram muitas as damas. Uma sumária operação de multiplicar conduzir-nos-ia a valores altos e talvez especialmente chocantes nestes dias em que muito se ouve falar em sacrifícios. Poderá porventura alegar-se que uma parte daquelas sumptuosas vestimentas estava ali para promoção dos costureiros que as haviam assinado, e por isso a especialíssimo preço. Ainda assim, porém, resta o que não é de modo nenhum ignorável: que aquele desfile de luxos mais ou menos espectaculares a pretexto de premiar méritos artísticos e culturais resulta em operação publicitária de metas sociais talvez embriagantes de cabecinhas pouco sólidas. Olha-se aquilo, e não faltará quem se maravilhe com a aparente concentração de «gente bonita», como é designado no jargão específico o grupo social que pode gastar num só dia, investindo em aparências de vária ordem, o que muitos milhares de outros não podem gastar num mês de despesas básicas. Mas esse é, para seu mal, o que está por dentro da casca brilhante daquele fruto, e é qualquer coisa que repugna, hoje ainda mais que algum tempo atrás ou pelo menos com maior evidência. É que entretanto vieram à TV e aos media em geral os sábios, os que receberam alvará que lhes permite ditar sentenças, e falaram de sacrifícios, da inevitabilidade de cortes em salários e em subsídios, de outras agressões afins ainda não identificadas mas já pressentíveis. E naquela noite, de súbito, perante o mostruário de vaidades concentradas no Coliseu dos Recreios, muitos terão sido tocados pela certeza de que os tais sacrifícios não serão para todos. Não tanto em resultado do que viam quanto pelo que aquele desfile lhes lembrava. Pois talvez aqueles brilhos fossem mais aparências que sólidas realidades, mais um momento para brincar aos luxos que uma mostra de luxos constantes e consistentes, mas a questão é que aquela noite pode ter despertado entendimentos até então um pouco distraídos. E as indignações sequentes.

http://www.avante.pt/noticia.asp?id=33716&area=33

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