À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

22/04/2010

Cumplicidade

Correia da Fonseca

Estes são os dias em que se comemora o 25 de Abril. Ou melhor: os dias em que as celebrações de Abril são mais amplas e mais intensas, pois na verdade Abril é todos os dias lembrado e silenciosamente festejado por milhares de portugueses que não o esquecem, que dele fazem ponto de orientação da sua cidadania, que com aplicação maior ou menor lutam pela defesa e aprofundamento da herança que Abril nos deixou. Por esta altura, muitas escolas são visitadas por mulheres e homens que por Abril lutaram ou, mais simplesmente, que o testemunharam, e que no contacto que estabelecem com os alunos lhes contam o que eles não sabem, explicam o que porventura os intriga, despertam-nos para a importância do património que receberam e de que na maior parte dos casos nem sequer se dão conta. Deparam então com impressionantes doses de ignorância que os alarmam: apercebem-se de que enorme parte dos alunos que contactam não faz ideia do país de pesadelo e crime em que os portugueses viveram durante quase cinco décadas, de quanto custou pôr fim a esse período sinistro, do elevado preço pago pelas gerações que o sofreram. Porque ninguém lhes falou dele. Porque a omissão mantida relativamente a Abril e à grande infâmia a que Abril pôs fim é colmatada com catadupas de informações acerca de temas menoríssimos, estímulos para centros de interesse anestesiantes. É sabido, mas muito esquecido, que a mais eficaz forma de censura não é a que apenas suprime brutalmente as informações importantes, mas sim a que substitui o vazio que essa supressão motivaria por materiais informativos capazes de assassinarem a lucidez. E é esse processo que está em curso. Há já anos e anos.

Alguns chamar-lhe-iam…

Dessa estratégia que conduz ao esquecimento ou ignorância de Abril, do que Abril foi, do que continua a ser e da sua permanente necessidade, tem sido primeira responsável a televisão portuguesa em geral e de um modo especial a RTP, operadora estatal. Diz-se agora, e decerto com fundamento, que grande parte dos jovens actuais desdenha a TV, que trocou pelos meios informáticos de comunicação. Será verdade, mas isso não significa que a televisão tenha deixado de ser o mais poderoso agente de formação da chamada opinião pública, e só por leviandade ou má-fé poderá sustentar-se que os jovens estão imunes ou são indiferentes aos fluxos de informação ou desinformação que circulam nos media tradicionais, nestes se incluindo a televisão até em posição dominante. Não se imagina como verosímil que os jovens usem intensamente o computador para saberem do que se passa no Iraque ou na pequena cidade do interior onde fechou mais uma indústria deslocalizada com rumo ao Oriente ou ao Leste europeu. Na verdade, o que eles, os jovens, sabem ou julgam saber do mundo e do País vem, ainda que por via indirecta, dos meios de comunicação social tradicionais, e o Web serve-lhes para outras coisas. Deste quadro factual resulta claramente que a ignorância juvenil relativamente à ditadura fascista e aos seus horrores vários e de diversa dimensão, às raízes que a alimentaram e às nostalgias mal disfarçadas que ainda inspira, é da primordial responsabilidade da TV sem prejuízo, naturalmente, de muitas outras responsabilidades coadjuvantes. Veja-se a programação televisiva que ano após ano nos é oferecida por esta altura e que se reclama como comemorativa: umas cantigas, uns velhos filmes, a sessão na AR, pouco mais. Nada de entusiasmante e sobretudo nada de entusiasmado, o que se nota sobremaneira na parcimónia usada na cobertura nos desfiles populares. Mas o mais grave atentado contra o conhecimento de Abril não se situa no que acontece no dia 25 de cada ano, mas sim no que ocorre ao longo dos outros dias de todos os anos, designadamente na própria gestão dos programas da estação pública. É não apenas o silêncio acerca de Abril e das portas por ele abertas, como disse o poeta, mas também uma programação toda ela injectada pelos vírus do individualismo que desmobiliza o civismo, da superficialidade que liquida a clarividência, da propaganda político-económica que pressiona no sentido dos «valores» anti-Abril. Assim, a ocultação complementa-se com a efectiva embora surda hostilidade. É uma forma complexa, quase sofisticada, de cumplicidade com a efectiva recuperação do «24» que há trinta e cinco anos está em curso. Alguns, mais exigentes, chamar-lhe-iam traição.

http://www.avante.pt/noticia.asp?id=33291&area=33

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