À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

22/04/2010

As negociatas da Fundação Berardo

Manuel Augusto Araújo

Desde o princípio, o processo da Fundação Berardo é tortuoso. Desesperado por encontrar montra para as obras de arte que ia acumulando, o comendador iniciou um processo de chantagem ao Estado ameaçando com a ida da colecção para outras paragens. Nunca se ficou a saber quais eram essas urbes, ávidas de acolherem aquele acervo, uma pedra angular da arte contemporânea! Pelo que se ia lendo nos média, hordas de interessados acumulavam-se à porta do comendador que, patrioticamente, resistia confortado pelas prosas assombradas com essa hipótese que iria ferir sem remissão a cultura nacional. O país tremia apavorado assistindo ao esforço do comendador em não deixar franquear as portas da sua colecção, arriscando-se a ser o Martim Moniz dos nossos dias, atropelado por multidões dispostas a tudo para se banquetearem com os prazeres de alma inauditos que a visão daquelas obras provocaria. Depois de saciados iriam instalá-la, com pompa e circunstância, algures. Ao prazer imaterial alimentador dos sentidos, juntar-se-iam as benesses materiais que se derramariam sobre o lugar escolhido. Felizmente não deixámos partir a colecção e hoje é ver como Belém está em ruptura por causa das filas de milhares de pessoas que diariamente se acotovelam para visitar a colecção, apesar do preço exorbitante dos bilhetes de entrada.
Num golpe de asa salvou-se a honra pátria. Entregou-se de mão beijada uma fatia considerável do Centro Cultural de Belém ao comendador para o usar como centro comercial dos seus objectos de arte. Encarregou-se uma entidade independente de fazer o cálculo do valor das obras que integravam a colecção, nada como especialistas independentes não fosse o diabo tecê-las e lixar o comendador. Legalizou-se a situação estabelecendo uma parceria público-privada com a forma de Fundação que iria gerir a colecção durante um período de dez anos ao fim dos quais o Estado ficaria com a opção de a adquirir. Um ponto algo controverso foi consignado: todos os anos o Estado e o comendador «entrariam» com € 500 000 (quinhentos mil euros) cada um para continuar a enriquecer a colecção. Situação algo confusa, no fim se houvesse um divórcio e o Estado desistisse de adquirir a colecção, para onde iriam as obras entretanto adquiridas? Um pormenor nas dádivas feitas ao comendador Berardo que exponha a sua colecção com todos os custos suportados por todos nós contribuintes. Nem um eurozito saía do bolso Berardo, excepto os tais quinhentos mil euros para aquisição de obras, o que origina nova baralhada. O Estado cumpria escrupulosamente com a sua parte, entregando à Fundação anualmente 500 mil euros para compras. O comendador, além de não entrar com dinheiro vivo, cumpria a sua parte indo buscar obras ao fundo do seu baú para as vender à Fundação engordando a, ainda nominalmente, sua colecção. Na prática, Berardo via o património da colecção acrescentado com obras avaliadas num milhão de euros, e embolsava esse valor com a venda de obras que não se sabe quanto lhe custaram. Uma árvore das patacas. Um negócio que não lembraria nem ao mais olho vivo cigano. E quem eram os tratantes dessa negociata? Todos. Tanto os representantes do Estado como os de Berardo na administração da Fundação. Todos mancomunados pelo genuíno desejo de ampliar a colecção com obras «do maior interesse». Tudo gente que rebenta de amor à arte por todas as costuras e que estão acima de qualquer suspeita mesmo quando transitaram das cadeiras da administração da Fundação a mando Berardo para as cadeiras d Ministério da Cultura ou estiveram de algum modo envolvidos na feitura e na instalação da colecção no CCB. Tudo feito dentro da maior legalidade e transparência, sempre ao serviço da arte e dos mais altos valores estéticos, como se lê nos Relatórios e Contas da Fundação que, ao que parece, ninguém no ministério lia.
O que nunca é esclarecido é quais foram as mais-valias recolhidas por Berardo nessas transacções. É isso que deve ser investigado, para lá do real ou fictício interesse das obras adquiridas, um valor sempre muito subjectivo. Temos o dever de exigir que o Ministério da Cultura nos explique euro a euro quanto é que Berardo embolsou nessas negociatas. Só um tonto ou um incapaz acredita que o comendador vendeu ou deu as obras pelo preço por que as adquiriu. Quem as comprou ou avalizou a sua compra se não sabia, devia saber. É uma transacção comercial como qualquer outra e o superior interesse artístico é conversa da treta! Para situações confusas já basta ter sido permitido ao comendador Berardo hipotecar as obras estacionadas na Fundação, para se safar do endividamento que contraiu à banca para comprar acções do BCP-Millenium. Se a hipoteca for vencida lá vamos ter mais uma trapalhada, consequência da irresponsabilidade colectiva da Fundação e do Estado. As explicações conhecidas da administração da Fundação são patéticas, nada explicam. O Ministério da Cultura, tão preocupado e perdido em querelas museológicas e melómanas, fica em silêncio enquanto estas escandaleiras rebentam. Devia assumir uma posição clara, rápida e forte sobre esse assunto. Devia sancionar os seus representantes cúmplices nesta garabulha. Devia, mas, pelo andar da carruagem, duvidamos que o faça.

http://www.avante.pt/noticia.asp?id=33292&area=50

1 comentário:

Anónimo disse...

"o Estado ficaria com a opção de a adquirir"

Pelo que ouvi, os portugueses obrigam-se a comprar a colecção caso o Joe queira.

Portanto não estamos perante uma opção mas sim uma obrigação unilateral. Penalizando assim todos os portugueses.

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