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25/01/2009

Brandos costumes, fraudes ardentes

Carlos Pimenta - Economista e Professor Universitário. Assina a coluna «Gestão de Fraude», periodicamente, em visao.pt

Todos nós sabemos o que é uma acção desonesta, mas o que é a honestidade, isso, ninguém sabe. (ANTON TCHERKHOV, in Montreynaud, F. - Dicionário de Citações Lisboa: Editorial Inquérito, 1985)

1. Ludibriar com engenho, para silenciosamente obter vantagem à custa de outros, ou a que outros não tiveram acesso, é arte velha, afirmando alguns que é inerente à natureza humana. Mesmo quando nos imaginamos caldeados em brandos costumes, somos pouco propensos a condenar tais práticas, certamente reprováveis eticamente, frequentemente atentatórias das leis que nos regem. Leis que, afinal, encaramos como obstáculos a contornar. A evasão fiscal é jogo de vãs glórias. Olhando o espelho, confirmamos a presença no rosto que nos olha os traços da honestidade, emergindo de uma calda de opacidade e pacatez. Afinal somos todos fruto de uma cultura que respira a maresia em fim de tarde tranquilo.

Contudo nos últimos vinte anos as fraudes apresentam-se cada vez mais frequentes e assumem crescentemente uma dimensão económica relevante.

Ninguém lhe escapa: do Parlamento Europeu às pequenas empresas; dos bancos aos hospitais; do Estado aos particulares. Todos nós somos potenciais alvos. Da apropriação e utilização indevida de recursos à corrupção; da fuga ao fisco às transacções de branqueamento de capitais; da manipulação dos registos contabilísticos à utilização de cheques e documentos de identificação falsos, das declarações aleivosas aos convites por e-mail para se ser fiel depositário de fortunas inexistentes; da falsificação de cartões de crédito ou de pagamento à venda do que não existe, há uma lista infinita de ilegalidades e ilicitudes que a imaginação e a compreensão humanas têm dificuldade em inventariar.

A crise económica que actualmente vivemos evidenciou, com a força das catástrofes, que a fraude tem-se entrelaçado com os negócios mais empreendedores e criadores de rendimento, que se tem malevolamente apoderado dos meios tecnológicos que permitiram a humanidade aproximar os homens num diálogo interplanetário. A crise despoletou situações de fraude que estavam encobertas, que deixaram de poder manter-se e reproduzir-se com o esfumar da liquidez e das facilidades de crédito.

Para todos nós tornou-se habitual defrontarmo-nos quotidianamente com notícias sobre fraudes que envolvem muitos milhões de euros. Noutros países e em Portugal, e nem lá nem cá é acontecimento fortuito, efeito de mentes alheias à ética e prenhes de ganância.

Os factos desmentem qualquer ilusão. Segundo a estimativa do académico alemão Schneider (veja-se, por exemplo, Schneider, Friedrich. 2004. The Size of the Shadow Economies of 145 Countries all over the World: First Results over the Period 1999 to 2003. IZA - Discussion Paper , #. 1431), em 2007 a «economia sombra» portuguesa – englobando uma parte das fraudes e indiciando um ambiente favorável à sua prática, mas também incluindo outras actividades ilegais diversas – corresponderia a uma pilha de notas de 100 € quase da altura da Torre dos Clérigos. Apenas uma parte das fraudes, quiçá as mais viáveis de quantificar, representam entre 1,5% e 2,0% do Produto Interno Bruto português, isto é, entre 3 e 4 mil milhões de dólares em 2007. Só a fraude ocupacional nas empresas representa 10% do seu volume de vendas, isto é, as 500 maiores empresas portuguesas (segundo os dados de “As 500 Maiores & Melhores”, Revista Exame de Outubro de 2007) foram durante o ano passado, vítimas de fraude ocupacional em aproximadamente 9 mil milhões de euros. Estudos diversos revelam inequivocamente que os traços culturais portugueses são mais propícios à aceitação e realização da fraude que muitos outros povos europeus (ver, por exemplo, Tsakumis, George T. e outros. 2007. The relation between national cultural dimensions and tax evasion. Journal of International Accounting, Auditing and Taxation 16 (2):131-147.)

2. Apesar dos dados anteriores serem dramáticos, outros temas criminais nos preocupam bem mais: a violência já nos roça nos interstícios do nosso quotidiano. Tornaram-se corriqueiros os relatos de actos de violência em assaltos, em ajuste de contas entre grupos rivais, em raptos e assassínios de contornos mais nebulosos. A intensidade ou frequência destes acontecimentos revelados geram-nos, de quando em vez, uma revolta incontida, mas rapidamente a crispação acidental suaviza e retomamos a complacência perante o que não controlamos. A crença de que códigos, polícias e políticos sejam capazes de extirpar estes tumores sociais foi-se esvaindo e progressivamente integramo-los nos nossos usos e costume, esperando passivamente ou agindo de forma a que tais situações só aconteçam aos outros. O terrorismo está fora do nosso controlo, assume frequentemente proporções ciclópicas, mas vamo-nos consolando, sobressaltados, com o facto do terrorismo ainda não ter feito estragos de monta próximo de nós. Mantemos a esperança que este jardim à beira mar plantado se mantenha imune. Narcotizamo-nos no reconhecimento de que pode haver alguma prevenção, como o demonstram as notícias de desmantelamento de alguns actos projectados.

Terrorismo, violência e fraude, são apesar de tudo, cenários que nos assombram em encruzilhadas e intensidades diferentes.

A fraude é silenciosa, revela-se esporadicamente mesmo quando existe duradoiramente, não parece assumir dor, perda de vidas humanas ou pôr em causa a ordem pública. Frequentemente envolve cifras enormes, que o nosso salário ou poupanças acumuladas não permitem conceber lucidamente, mas passa ao nosso lado. Desde que não ponha em causa os depósitos que fizemos no banco – esperemos que não, para isso há as entidades reguladoras, o Governo e Deus! –, não nos atinja com algum produto falsificado, tóxico ou inimigo da natureza, ou não afecte o nosso clube de futebol são acontecimento que pouco têm a ver connosco. A própria descrição dos acontecimentos é suficientemente nebulosa, com terminologia incompreensível, incapaz de alertar a nossa consciência.

A violência sim, essa é que nos preocupa verdadeiramente. Convive connosco, pode bater-nos à porta e ser dolorosa.

3. O crime violento revela-se e o terrorismo assassina. A fraude económica actua silenciosa, com um deslizar brando. Contudo os seus tentáculos espalham-se como vírus contaminando perigosamente todo o tecido social, a cada um de nós e a todos.

O crime organizado, o terrorismo e a fraude são facetas de uma mesma realidade internacional omnipresente, são metástases dos cancros que destroem a cidadania, obscurecem a democracia e metamorfoseiam-na em plutocracia, que degeneram as relações éticas entre os homens, que enfraquecem a actividade económica e agrava as desigualdades sociais, que deterioram a qualidade de vida e a sobrevivência ambiental. As instituições, vítimas ou prevaricadores, estão presentes em todo o nosso quotidiano: da empresa a quem compramos ou a quem confiamos as nossas poupanças ao Estado a que pertencemos; do clube desportivo pelo qual nos emocionamos ao partido político em que confiamos; do amigo com quem convivemos a nós próprios em algumas situações.

No limite podemos dizer, por exemplo, que a insubordinação e a insegurança escolar e as operações obscuras em offshores envolvendo conglomerados de empresas são peças do mesmo puzzle, construído na degenerescência das relações morais e no império do capital fictício ou fraudulento.

Estamos rodeados de «economia sombra» e de fraude. Estamos rodeados e por ela somos inundados.

4. A fraude e o crime económico propagam-se nos interstícios da nossa indiferença. Mais, a fraude é contagiosa (Ver Goel, R.K. & Nelson, M.A. - Are corrupt acts contagious? Evidence from the United States. Journal of Policy Modeling Vol. 29. n.º 6 (2007). p. 839-850).

A fraude acontece, mas não é inevitável. É possível detectar, combater e condenar. É possível prevenir e restringir a sua amplitude. Uma opinião pública esclarecida, um conhecimento científico interdisciplinar de muitos e uma atitude de perscrutação e vigilância são componentes importantes desse processo.

Este espaço visa contribuir para esse esclarecimento, para a troca de ideias. As crónicas serão, ao longo dos tempos, de estilos e abordagens muito diferentes como heterogéneas são as preocupações e formações dos diversos intervenientes, unidos pela importância do combate à fraude, pela investigação, acção e ensino em torno destas problemáticas.

A sua informação, a sua opinião, a sua divulgação destas crónicas são um enriquecimento e uma honra para todos nós.
In Visão.pt (25.01'09)

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