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06/05/2010

Mais uma subversão. Mais um grande negócio. - A revisão constitucional do PSD

Anselmo Dias

«Despartidarizar a Administração, desgovernamentalizar o País e desestatizar a sociedade» eis o projecto que o novo líder do PSD, vulgarmente conhecido pelo Rapaz do Ângelo, proclamou solenemente no último congresso do seu partido. «Temos de mexer na Constituição» afirmou Passos Coelho, porque segundo ele «o Estado não tem de ter negócios».

Quem afirma isto é um ex-administrador da Fomentinvest, participada em 15% pelo Grupo BES, a cujos quadros havia pertencido o antigo ministro da economia do PS, Manuel Pinho, grupo que, em tempos, havia apoiado a ida de um ex-líder do PSD, Durão Barroso, aos Estados Unidos a fim de tirar uma pós-graduação.
Quando se declara que «Temos de mexer na Constituição», é certo e sabido que, no momento actual, o objectivo último é a sua vertente económica, o leit motive que faz andar o «Rapaz do Ângelo». A ligação deste último aos grandes negócios está bem exemplificada na participação na tentativa de compra da GALP por parte da Carlyle, ligada ao ex-director da CIA, Franc Carlucci.
Enfim, com tão boas companhias e com tão boas intenções vale a pena parafrasear a expressão popular «...diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és...».
É, pois, neste contexto e nesta envolvência que Passos Coelho quer, até Dezembro do corrente ano, mexer na Constituição, tendo como pressuposto que há Estado a mais na economia e nas funções sociais do Estado, designadamente na segurança social, na educação e na saúde, sectores, especialmente o último, bem representados nos novos órgãos de direcção do PSD por aqueles que estão ligados ao Grupo Espírito Santo e ao Grupo Mello.
É evidente que não basta o desejo do PSD de proceder a uma nova alteração da Constituição, tendo em atenção que é necessário haver na AR uma maioria qualificada de 2/3 dos votos.
Mas quanto a tal exigência não há problemas.
O PS no momento oportuno lá estará, como sempre esteve, com o seu voto disponível para subverter a Constituição.
Há dúvidas quanto a isto? Vejamos então o percurso seguido.

A descaracterização da Constituição

O ataque à Constituição saída da Revolução de Abril começou no próprio dia em que foi aprovada. Desde logo pelo CDS-PP, que votou contra. E, implicitamente, pelo PSD que disse sim, quando queria dizer não, como se veio a verificar.
Quanto ao PS, passado pouco tempo meteu, primeiramente, «o seu socialismo na gaveta», remetendo-o, depois, embora não declaradamente, para o caneiro de Alcântara.
Assinada em 2/4/76, a Constituição de Abril determinava como tarefas fundamentais do Estado a socialização dos meios de produção e a abolição da exploração do homem pelo homem. E impunha ao Estado o dever de realizar a reforma agrária, de efectivar o desenvolvimento das relações de produção socialistas, de promover a igualdade entre cidadãos através da transformação das estruturas económico-sociais, na consideração de que todas as nacionalizações seriam conquistas irreversíveis, a par da repartição igualitária da riqueza e dos rendimentos, tendo com suporte estrutural um adequado sistema fiscal.
Tais propósitos programáticos, não se encaixando nas ideias e nas práticas daqueles que endeusam a economia de mercado, haviam que ser destruídos, não de uma vez só mas graduadamente, em função da oportunidade negocial e das relações de força vigentes em cada momento.
E foi assim que entre Setembro de 1982 e Agosto de 2005 foram levadas a cabo sete revisões constitucionais, tantas quantas as etapas contra-revolucionárias concretizadas por essa tríade formada pelo PS, PSD e CDS-PP.
Vejamos, então, de uma forma sintética, o retrocesso político, económico, social e cultural derivado das sucessivas alterações constitucionais.
Com a 1.ª revisão (1982) o objectivo principal da direita era claro: retirar dos órgãos de soberania do Estado o Conselho da Revolução, de cujas atribuições salientamos: «... funções de conselho do Presidente da República e de garante do regular funcionamento das instituições democráticas, de garante do cumprimento da Constituição e da fidelidade ao espírito da Revolução Portuguesa de 25 de Abril de 1974...».
A existência deste órgão e suas atribuições constituíam, na opinião da direita, uma menoridade institucional, dado que a nossa Constituição seria um normativo tutelado pelo poder militar que além de ser garante da Constituição detinha ainda poderes legislativos em matéria militar, facto inexistente nas chamadas democracias ocidentais.
Invocando a Constituição, os adversários do Conselho da Revolução começaram antes de 1980 a apresentar, à revelia da lei, propostas de antecipação de revisão. Não o tendo conseguido, alcançaram posteriormente o que pretendiam (embora parcialmente), num processo iniciado em 1981 e concluído em 1982.
Para além da extinção do Conselho da Revolução, a direita, que pugnava pelo desaparecimento de todas as formulações ligadas ao projecto de sociedade socialista e à titularidade da propriedade estatal, não conseguiu ir tão longe quanto queria.
E como votaram os 250 deputados de então? A favor votaram o PSD, CDS-PP, PPM, UEDS, ASDI e PS. O MDP absteve-se. PCP e UDP votaram contra.
E foi com esta santificada aliança que o Conselho da Revolução e os artigos relativos a «o poder das classes trabalhadoras» e ao «processo revolucionário» foram banidos da Constituição.
A 2.ª revisão (1989) foi, como não podia deixar de ser, obtida por acordo entre o PSD e o PS, precedido de um acto público (Outubro/1988) e concluído em Julho do ano seguinte.
Qual a matriz desta revisão? Foi, por um lado, meter o «socialismo na gaveta» e, por outro, destruir o sector empresarial do Estado, possibilitando a alguns uma enorme acumulação de capital por via das privatizações.
Se anteriormente tinham ficado intactos importantes conceitos, tais como: «sociedade sem classes», «transição para o socialismo», «socialização dos principais meios de produção», «abolir a exploração e a opressão do homem pelo homem», com a 2.ª revisão constitucional tais conceitos foram completamente arredados.
A título meramente exemplificativo, vejamos algumas alterações:
Onde estava «Portugal é uma República soberana... empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes», passou a estar «Portugal é uma República soberana... empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária».
Onde estava «São tarefas fundamentais do Estado: promover o bem-estar..., mediante a transformação das estruturas económicas e sociais, designadamente a socialização dos principais meios de produção, e abolir a exploração e a opressão do homem pelo homem», passou a estar «São tarefas fundamentais do Estado: promover o bem-estar..., mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais».
Onde estava «São tarefas fundamentais do Estado: Eliminar e impedir a formação de monopólios privados, através de nacionalizações ou de outras formas», passou a estar «Eliminar e impedir a formação de monopólios privados».
Onde estava «Realizar a reforma agrária», passou a estar «Eliminar os latifúndios e reordenar o minifúndio».
Onde estava «Todas as nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974 são conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras», passou a estar «A reprivatização da titularidade ou do direito de exploração de meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974 só poderá efectuar-se nos termos de lei-quadro aprovada por maioria absoluta de deputados em efectividade de funções».
São, também, extintas as formulações quanto à construção de uma sociedade cuja organização económico-social deveria assentar no desenvolvimento das relações de produção socialistas.
No plano social esta revisão fica na história por ter transformado o acesso gratuito aos cuidados de saúde em «tendencialmente» gratuitos.
A par da extinção da «gratuitidade» do Serviço Nacional de Saúde foi destruída a possibilidade de uma ocupação mais racional do território por via da nacionalização ou municipalização dos solos urbanos, possibilitando a ocupação irracional de espaços vocacionados para agricultura.
Noutros artigos não há tanta clareza semântica, no pressuposto de que a diluição das formulações seria, como invariavelmente foi, sublimada pela acção governativa, isto sem que os chamados garantes da Constituição, os presidentes da República (o actual e todos os anteriores), viessem a terreiro exigir o seu cumprimento.
Na 3.ª revisão (1992) as alterações reflectem, sobretudo, a sujeição da nossa Constituição ao direito comunitário, com tudo o que isso significa de submissão, não obstante constar do Artigo 1.º que «Portugal é uma República soberana». Ora tal soberania ficou claramente afectada ao ser retirado ao Banco de Portugal «o exclusivo da emissão de moeda».
Na 4.ª revisão (1997) as alterações são mais extensas (158 alterações com nova redacção), revolvendo cerca de 78% do articulado constitucional. Foi-se ao ponto de, por exemplo, no artigo 81.º, se substituir a palavra «povo» por «pessoas» e de riscar a palavra «classes».
O que teria levado o PS e o PSD a substituir «povo» por «pessoas»?
Teria sido uma questão meramente semântica, delírio ideológico ou, tão somente, mais uma investida contra tudo que estivesse ligado ao mundo do trabalho?
A par da substituição da palavra «povo» e do saneamento do conceito de «classes», o que resultou desta profunda revisão constitucional foi o desmantelar de toda a estrutura jurídica relativa à organização económica que, como todos sabem, constitui a base material em que se alicerça uma sociedade mais solidária.
Acresce a tudo isto, entre outras regressões, a extinção do artigo que expressamente referia que «O ensino deve contribuir para superação de desigualdades económicas, sociais e culturais...».
A 5.ª revisão
(2001) destinou-se, sobretudo, a introduzir na nossa Constituição a aceitação da «... jurisdição do Tribunal Penal Internacional, nas condições de complementaridade e demais termos estabelecidos no Estatuto de Roma».
Acresceram, ainda, alterações na área das relações internacionais, nos símbolos nacionais, na expulsão, extradição e direito de asilo, inviolabilidade do domicilio e da correspondência e na restrição ao exercício de direitos, numa votação, que mereceu, de pé, os aplausos do PS, do PSD e do CDS-PP.
A 6.ª revisão«As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».
Importa reter não só a forma como se processou esta votação como, também, o que foi dito na altura.
E o que foi dito é lapidar quanto às claríssimas intenções do CDS-PP, do PSD e do PS quanto à descaracterização já introduzida na Constituição e ao texto que a mesma deve ter no futuro.
O então líder parlamentar do PSD, Guilherme Silva, frisou que lamentava «... que estejamos, em parte daquilo que não passou, a preparar a próxima revisão constitucional» e que «... a tradição em matéria de revisão constitucional é a derrota da esquerda...».
O PS não só não ficou ofendido com tais declarações como, pela voz de Alberto Martins, declarou que: «Os objectivos essenciais do PS foram alcançados», ao que nós acrescentamos: alguém tem dúvidas?
O CDS-PP não ficou atrás, tendo o então líder da bancada, Telmo Correia, referido: «Votámos contra a Constituição de 76 porque considerávamos que era uma Constituição repleta de referências marxistas e do socialismo real», «...cada revisão foi uma derrota do socialismo marxista e uma vitória da democracia...», «... chegará o dia em que remeteremos para a História um preâmbulo que já faz parte da História...».
Não obstante ter havido apenas os votos contra do PCP, de «Os Verdes», do BE e de um deputado do PS, a verdade é que esta revisão suscitou inúmeras oposições por parte de muitos professores de direito, a que se juntaram outras figuras públicas, muitas delas afectas a várias correntes de opinião.
Num dos documentos em que se repudiava esta revisão constitucional era possível ler-se: «É também politicamente incompreensível porque se tratou de um acto totalmente imprudente. Ao admitir a secundarização do texto fundamental em face das normas comunitárias, o Estado Português desarmou-se constitucionalmente perante o processo de integração europeia».
O então Presidente da República, confrontado com esta e outras manifestações em defesa da Constituição, e mesmo sabendo que «não existe nenhuma norma jurídica nacional ou internacional que seja superior aos princípios e regras fundamentais da nossa Constituição», promulgou-a, ficando Portugal, gravosamente, com um mínimo de autonomia legal em relação ao processo de integração e à matriz neoliberal da construção europeia, cujo modelo o povo português ignora totalmente.
A 7.ª revisão (2005) foi uma revisão extraordinária destinada a introduzir um novo artigo sobre o Tratado Europeu.
Finalizemos com um comentário e com uma conclusão.
Comentário: Por falta de espaço não nos é possível,
por um lado, relatar toda a hipócrita, cínica e safada argumentação desenvolvida ao longo dos últimos 30 anos pelo PS, PSD e CDS-PP sobre aquilo que, em suas opiniões, seriam os entraves do texto inicial da Constituição à modernização do País;
por outro lado, lembrar as promessas garantidas por essa gente de que a conformação da Constituição à economia de mercado possibilitaria ao País integrar o chamado «pelotão da frente» alicerçado em idílicos e risonhos níveis de crescimento e de desenvolvimento.
Quem, a propósito de tal demagogia, não se lembra que essa argumentação, embora não estanque, teve as seguintes fases:
a primeira, destilando ódio, esteve ligada ao combate do que restava da influência do Movimento das Forças Armadas no processo democrático;
a segunda esteve ligada à retirada de toda e qualquer formulação tendente à existência de uma sociedade socialista;
a terceira esteve ligada a pôr termo à existência de um forte e influente sector empresarial do Estado;
a quarta teve a ver com a secundarização do Estado e a sua subalternização aos ditames da União Europeia;
a quinta tem a ver com as funções sociais do Estado. É evidente que, desde há muito tempo, as funções sociais do Estado estão a ser atacadas. Não obstante tudo o que já foi destruído, a verdade dos factos é que ainda continuam a fazer parte da Constituição o Artigo, 63.º relativo à segurança social, o Artigo 64.º relativo à saúde, o Artigo 67.º relativo à família, o Artigo 72.º relativo à terceira idade e o Artigo73.º relativo à educação, entre outros. Eis tantos sectores quantos os nichos de negócio a desenvolver. Rever a Constituição e apagar tais direitos é o propósito do PSD. O PS, como sempre, far-lhe-à a vontade, salvo se o povo português, como se espera, lutar contra tal desiderato.
Conclusão: Como se não bastassem todas estas malfeitorias surge, agora, em concorrência com o PS, um recém ex-administrador da Fomentinvest, Passos Coelho, a reclamar que o «Estado não tem de ter negócios»z, abrindo assim caminho a desmantelar não apenas aquilo que resta do já reduzido sector empresarial do Estado, como a reclamar outras fatias de negócio onde a taxa de rentabilidade é reconhecidamente elevada, como é o caso da saúde, a que se juntarão o ensino e as partes rentáveis da segurança social.
E o PS, que papel lhe está reservado?
O papel que sempre teve: aliar-se à direita e garantir os votos suficientes para que a 8.ª revisão constitucional venha à luz do dia em benefício dos grandes interesses privados e em prejuízo do povo português.
Contudo, enquanto não é formalizada tal votação, o PS está apostado não apenas em alienar o pouco que resta do sector empresarial do Estado, como em impor aos trabalhadores, aos reformados e aos mais desfavorecidos enormes sacrifícios, a pretexto de uma crise cuja génese está na política dos autores do desmantelamento ideológico e programático da nossa Constituição.

http://www.avante.pt/noticia.asp?id=33496&area=19

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