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20/05/2010

A arraia-miúda e a grande estética

Manuel Augusto Araújo

Dezoito trabalhadores da Fundação de Serralves que exercem tarefas essenciais ao seu bom funcionamento, relacionadas com os serviços de recepção, atendimento, bengaleiro e telefonista, foram informados pela directora-geral que os seus «contratos de prestação de serviços» cessariam a partir do dia 12 de Abril. Numa entidade em que o orçamento é maioritária e largamente suportado por transferências de verbas do Orçamento do Estado, via Ministério da Cultura, a que se somam as da Câmara Municipal do Porto, é chocante que se violem os direitos dos trabalhadores de forma tão despudorada. Alguns estão na Fundação de Serralves há dezassete anos a recibo verde, em clara violação das leis do Estado, o mesmo que a sustenta e suporta com dinheiro de todos nós, contribuintes, com a particularidade, nada despicienda, de Serralves receber bastante mais dinheiro que os Museus Nacionais, Coches, Arte Antiga e Arqueologia, sem se perceber quais os critérios para essa discrepância, muito ocultada para se louvaminhar as virtudes das parcerias público-privadas, em que o maior contribuinte abdica da presidência e da maioria na administração. Mistérios públicos para alimentar ficções privadas.
No caso que se relata, a fazer fé nos jornais, os poucos que a ele se referiram, o cinismo ultrapassa o aceitável. A directora de Recursos Humanos classifica esse conjunto de funcionários de «bolsa de colaboradores» porque «são eles que organizam as escalas de serviço», como se alguém, a começar pela própria, acreditasse que fosse possível fazer isso à revelia do funcionamento do Museu de Serralves, sem o aval de um técnico superior da Fundação ou como se eles trabalhassem em Serralves carregando todos os dias de casa os meios técnicos necessários para exercer as suas funções, não cumprissem horários necessariamente consonantes com as exigências e prioridades do museu e não tivessem mesmo que justificar as faltas ao trabalho. Acrescenta que não se ofereceu nenhuma indemnização porque «se o fizéssemos seria admitir que tinham contrato de trabalho». Com esses dribles da realidade, a doutora da mula ruça deve estar cheia de empáfia a pensar que somos todos parvos; porque se acredita mesmo no que diz o caso mesmo é muito mais grave e merece cuidados especializados. A completar esse quadro sinistro revela que a Direcção Geral propôs que os trabalhadores criassem uma empresa, pelo que deveriam procurar orientações na IN Serralves, a incubadora das indústrias criativas da Fundação. Ficámos assim a saber para que serve a incubadora e a largueza de critérios que usa para aceitar projectos e inflacionar as estatísticas. Apesar dos tempos que se vivem serem propícios a esses torcicolos das evidências, o caso continua a não deixar de ser surpreendente numa Fundação que tem dois administradores nomeados pelo Estado, Rui Guimarães e a deputada europeia Elisa Ferreira, que acompanham dois ex-ministros: Braga da Cruz e Luís Campos e Cunha, o tal que anda sempre a defender as virtudes das privatizações e do menos Estado e que aqui é nomeado pelos privados para rapar a gamela do Estado. Para essa gente tudo deve estar nos conformes. Essas coisas do desemprego da arraia-miúda e a prática de ilegalidades são minudências quando todos os patacos que se poupam são benvindos e contribuem para gastar à tripa forra num acervo sofrível, como o que finalmente foi dado ver, ou numa programação de exposições discutível onde este ano se irão gastar quase 4 milhões de euros, desde que a opinião corporativa não abra brechas está tudo azul. Sobretudo agora que esperam que o Estado, essa vaca sempre pronta a ser mungida por esta gente encadernada e serventuária do pensamento dominante económico, estético, social e político, financie o pólo Serralves 21, em Matosinhos, entregue à dupla de arquitectos Kazuyo Sejima/Ruye Nishizama, cumprindo os critérios da arquitectura star-system para que a administração de tão excelsa Fundação se sinta lambuzada de koltura e exiba essas nódoas! É a mediocridade em marcha! Sinal dos tempos é não se ouvir em Serralves nenhuma voz contra a violação da lei nem solidária com esses trabalhadores. Provavelmente porque uns se calam, receando o futuro o que não abona a favor da democracia interna, outros lavam as mãos nas águas lustrais estéticas não se misturando com cousas menores e outros porque são os alegres executantes das cabalas do flexiemprego, uma prática velha e relha que há séculos lixa os trabalhadores em nome da modernidade.

http://www.avante.pt/noticia.asp?id=33628&area=50

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