À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

09/08/2009

É falso que o salário mensal na Administração Pública seja superior em 75% ao do sector privado como divulgaram os media

Eugénio Rosa

Na semana de 13 a 17 de Julho de 2009, muitos órgãos de comunicação social nacional e regional, incluindo regiões autónomas, lançaram uma gigantesca e articulada campanha de manipulação da opinião publica utilizando alguns dados, retirados do seu contexto, de um estudo divulgado no Boletim Económico – Verão de 2009 do Banco de Portugal que acabara de ser publicado.

O Diário de Noticias de 17.7.2009, citando a Agência Lusa, escrevia que “os funcionários públicos auferem um salário mensal claramente acima dos seus congéneres do sector privado e o diferencial aumentou ao longo do tempo, passando de 50% em 1996 para quase 75% em 2005”. Muitos outros órgãos de informação, incluindo a TV, utilizaram os mesmo dados para fazer caixas na 1ª página fazendo passar a mensagem junto da opinião pública que os “funcionários públicos continuam a ser um privilegiados”, justificando assim a politica deste governo contra estes trabalhadores (uma ajuda para a campanha eleitoral de Sócrates), por um lado, e, por outro lado, preparando já a opinião pública para que o futuro governo continue a tomar medidas contra os funcionários públicos. No sábado seguinte, o DN, com “caixa” de 1ª página e artigo de opinião do director, continuava a mesma campanha agora utilizando os dias de férias e o horário da Administração Pública.

Uma análise objectiva e séria de todo o estudo divulgado pelo Banco de Portugal, e não apenas de algumas linhas desenquadradas do seu contexto, como fizeram a Agência Lusa e outros órgãos de comunicação social, leva a conclusões diferentes das divulgadas pela generalidade dos media. E isto apesar do estudo do Banco de Portugal se caracterizar pela falta de transparência e conter importantes deficiências e lacunas técnicas. É isso o que se vai procurar mostrar neste estudo.

O SALÁRIO MEDIO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA TEM DE SER SUPERIOR AO DO SECTOR PRIVADO PORQUE A PERCENTAGEM DE TRABALHADORES COM O ENSINO SUPERIOR É CINCO VEZES SUPERIOR AO DO SECTOR PRIVADO

Na pág. 65 do estudo do Banco de Portugal pode-se ler, como foi divulgado pela Agência Lusa e outros media, que “os trabalhadores do sector público auferem um salário médio mensal claramente acima dos seus congéneres do sector privado, tendo o respectivo diferencial aumentado ao longo do tempo, de cerca de 50% em 1996 para quase 75% em 2005”.

Mas esta conclusão baseia-se em salários brutos médios, que não têm em conta as diferenças grandes que existem quer a nível de escolaridade quer mesmo em relação a qualificações e profissões (por ex., no sector privado não existem juízes, mas os seus vencimentos entram no cálculo do salário médio utilizado pelos media), entre a Administração Pública e o sector privado. O próprio estudo divulgado pelo Banco de Portugal, na pág. 66, chama a atenção para isso: “ Os diferenciais brutos que temos vindo a referir podem ser indicadores erróneos de desigualdade salarial, já que remunerações mais elevadas podem ser justificadas, por exemplo, por uma maior dotação de capital humano”, ou seja, por uma maior escolaridade e qualificação. Apesar desta advertência dos autores do estudo, os media ocultaram-na e utilizaram aqueles valores “erróneos”.

O estudo do Banco de Portugal refere uma importante diferença que se verifica neste campo entre o sector público e o sector privado, que tem um reflexo muito grande no nível de remunerações auferidas pelos trabalhadores, que é a seguinte: “A proporção de funcionários públicos que reportam educação universitária ronda os 50% em 2005, enquanto no sector privado esta corresponde a pouco mais de 10%” (pág. 66). Para que se possa avaliar o efeito no salário dos diferentes níveis de escolaridade, apresentamos no quadro seguinte uma simulação construída com base, relativamente ao nível de rendimentos dos trabalhadores por conta de outrem, nos valores obtidos no inquérito às despesas das famílias 2005/2006 realizado pelo INE e, em relação às estruturas de escolaridade existente no sector público e no sector privado, os dados do Boletim do Observatório do Emprego Publico publicado pela DGAEP do Ministério das Finanças e da Administração Pública.

QUADRO I – Efeito do nível de escolaridade no rendimento médio dos trabalhadores da Administração Pública e do sector privado em 2005

RÚBRICAS

Ensino básico

Secundário e pós secundário

Superior

Rendimento médio anual

Rendimento médio anual – TCO (*)

9.335 €

16.743 €

28.538 €

% Trabalhadores em relação total(**)

Administração Pública

41,8

12,9

45,3

18.990 €

Sector Privado

72,5

14,5

13

12.906 €

FONTE (*) Inquérito às Despesas das Famílias 2005/2006 - INE;(**) Boletim do Emprego Público – Out. 2008 - DGAEP

Em 2005, segundo o INE, em Portugal o rendimento médio anual de um trabalhador por conta de outrem com o ensino básico era de 9.335 euros/ano (este valor foi obtido com base na média aritmética dos rendimentos dos indivíduos com o 1º , 2º e 3º ciclos); o de um com o ensino secundário era de 16.743 euros/ano; e o de um com o ensino superior era de 28.538 euros/ano.

Utilizando estes valores de rendimento tanto para o sector privado como para o sector público, e calculando o rendimento médio com base numa media ponderada que tem como pesos precisamente a percentagem da repartição dos trabalhadores por níveis de escolaridade quer na Administração Pública quer no sector privado, obtém-se um valor médio global de 18.990 euros para a Administração Pública e de 12.906 euros para o sector privado. Isto significa que, entrando apenas com o efeito escolaridade, o rendimento médio de um trabalhador na Administração Publica teria de ser superior em 47% (+ 6.804 euros) ao sector privado. Portanto, apenas pelo facto da percentagem de trabalhadores com o ensino superior na Administração Publica ser muito superior ao sector privado, só por esta razão e utilizando apenas dados oficiais, conclui-se que o rendimento na função pública tem de ser 3,5 vezes superior ao do sector privado. E isto se trabalharmos com dados da DGEAP do Ministério das Finanças. Se utilizarmos os dados do estudo do Banco de Portugal utilizado pelos media (a percentagem de trabalhadores com o ensino superior na Administração Pública – 50% - ser 5 vezes superior à percentagem no sector privado – 10%), então o rendimento médio na Função Publica teria de ser superior, só devido ao efeito escolaridade, em cerca de 58% ao rendimento médio de um trabalhador do sector privado. Por aqui se vê a dimensão da manipulação feita pela generalidade dos media, a falta de rigor e de preparação, para não dizer outra coisa, dos jornalistas que divulgaram aquela noticia.

A DIFERENÇA SALARIAL ENTRE A ADMINISTRAÇÃO PUBLICA E O SECTOR PRIVADO É EXPLICADA TAMBÉM PELAS DIFERENÇAS DE QUALIFICAÇÕES

Para além do efeito escolaridade, também se observam diferenças importantes nas áreas das qualificações e da experiência. Na página 68 do estudo do Banco de Portugal chama-se a atenção para o facto de que “a disparidade salarial bruta entre os dois sectores apresentada na última secção é largamente explicada pelas diferenças nas características da mão de obra”.

Como reconhece o estudo divulgado pelo Banco de Portugal, entrando em conta com este factor, observa-se “em termos do salário mensal, que a diferença passou de 10% em 1996, para 15% ou um pouco mais na década que se seguiu” (pág. 68), portanto valores muito inferiores aos 50% e 75% divulgados pelos media. E mesmo esta diferença não corresponde à realidade.

Em primeiro lugar, interessa chamar a atenção para a forma como são valorizados no estudo do Banco de Portugal os factores que diferenciam o sector público do sector privado (nível de escolaridade, qualificações, experiência), cujos critérios não divulgados e, por isso, não são conhecidos, portanto não são controláveis e, consequentemente, não é transparente. No próprio estudo se refere que “quando se controla também para a categoria profissional (disponível apenas para 1999), o prémio, ou seja, a diferença, diminui” (pág. 68). É evidente o carácter limitado e mesmo erróneo, sob o ponto de vista técnico, do estudo mesmo nesta área pois, relativamente a uma variável importante – categoria profissional –, esse factor não é considerado para 2005, por não haver dados, o que naturalmente enviesa os resultados e conclusões.

Em segundo lugar, o “premio salarial” referido no estudo, ou seja, a diferença média entre os salários praticados na função pública e no sector privado, é ainda fortemente influenciada pela diferença de salários praticados nas zonas menos desenvolvidos do País onde o sector privado aproveita a situação de maior escassez de emprego para impor salários de miséria, por um lado, e, por outro lado, pela forte desigualdade que existe no sector privado entre os salários dos homens e das mulheres. Como refere o próprio estudo, “observam-se diferenças substanciais no nível de prémio, ou seja, de diferença de salários entre o sector público e o sector privado, consoante o género e a região de local de trabalho. Considerando os valores relativos ao ano de 2005, o “prémio” médio varia entre cerca de 3% para indivíduos do sexo masculino cujo local se situa em áreas mais desenvolvidas ( para os quais ainda em 1996 existia uma penalização), e mais de 40% para as mulheres cujos empregos estão localizados em zonas menos desenvolvidas” (pág. 70), que são os distritos de Beja, Bragança, Castelo Branco, Évora, Guarda, Portalegre, Vila Real, Viseu e RA dos Açores. Portanto, segundo o estudo do Banco de Portugal, e com todas as limitações e deficiências que temos vindo a referir, nas zonas desenvolvidas do País, em relação aos homens, os salários médios praticados na Administração Pública são apenas superiores em 3% aos do sector privado. Apenas nas zonas menos desenvolvidas do País, e somente relativamente às mulheres, é que os salários da Administração Pública são superiores em 40% aos do sector privado. E isto não resulta da Administração Pública pagar mais nessas regiões, mas sim do sector privado aproveitar a escassez de emprego para impor às trabalhadoras salários que atingem menos 40% aos praticados pela Administração Pública a nível de todo o País. A Administração Pública, por praticar os mesmos salários em todo o País, para idêntico nível de escolaridade e de qualificação, acaba por funcionar como um instrumento importante de equidade e de garantia de respeito do principio constitucional – salário igual para trabalho igual – , o que não sucede com o sector privado, que é fonte de graves desigualdades salariais. As desigualdades salariais entre as regiões mais desenvolvidas e menos desenvolvidas, e de género, seriam ainda maiores que as existentes se não existisse a Administração Pública.

O próprio estudo do Banco de Portugal refere que a “actividade do sector público é enquadrada por condicionalismos de equidade e redistribuição que se sobrepõem a um propósito de maximização do lucro (como sucede no sector privado, acrescentamos nós) . Assim, a uniformidade salarial neste sector tem efeitos redistributivos entre regiões e, nesta medida, pode servir um objectivo de politicas públicas” (pág. 70). Mais um aspecto ocultado e silenciado pelos media.

PARA IDENTICAS CATEGORIAS PROFISSIONAIS OS SALÁRIOS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA SÃO MUITO INFERIORES AOS DO SECTOR PRIVADO

Em 2006, o governo de Sócrates, contratou a CAPGEMINI, que é uma das maiores empresas do mundo de serviços de consultoria (www.capgemini.com ), para fazer um “Estudo Comparativo de Sistemas de Remuneração entre os Sectores Público e Privado. E as conclusões a que esta empresa chegou desagradaram de tal forma o governo que este não divulgou o estudo fazendo-o desaparecer (na Assembleia da República, durante o debate do Orçamento do Estado, em que participamos, solicitamos ao ministro das Finanças que o fornecesse aos deputados, o que ele recusou). De acordo com as conclusões desse estudo, os salários médios na Administração Pública eram inferiores aos dos sector privados, por categorias profissionais, nas seguintes percentagens: (1) Grupo técnico : entre -188% e -156%; (2) Grupo Técnico-profissional: entre -75% e -46%; (3) Grupo administrativo: entre -89% e -55%; (4)Grupo de auxiliares : entre – 19% e – 27%; (5) Grupo de operários : entre -26% e – 65%.

O próprio estudo divulgado pelo Banco de Portugal reconhece que se a análise for feita por categorias, conclui-se que se verifica uma forte penalização salarial dos trabalhadores da Administração Pública. O estudo do Banco de Portugal faz uma análise mais pormenorizada por categorias apenas dos salários dos trabalhadores com formação superior. E chega a conclusões totalmente opostas àquelas que foram divulgadas pelos órgãos de informação portugueses.

Exceptuando as profissões predominantemente ou mesmo exclusivamente públicas, como é a dos juízes, em relação às restantes profissões verificava-se já em 2005 uma penalização salarial dos trabalhadores da Administração Pública com formação superior, já que os seus salários eram, em média, inferiores aos do sector privado em -5,9% (quadro 4, pág. 76). E há profissões em que penalização é muito maior. Por ex., os salários dos trabalhadores de informática da Administração Pública eram inferiores aos do sector privado em -13,8%; os economistas em -18,6%; e os salários dos não especialistas em -9,3%.

E isto em termos médios, porque se a análise for mais desagregada, por ex., apenas em relação aos com formação superior e de mais elevada qualificação e responsabilidade (os do 3º Quartil) a penalização salarial dos trabalhadores da Administração Pública é muito maior, passando de -5,9%, referido anteriormente, para -25,7%. Portanto, nas profissões em que o sector público concorre com o privado, os salários na Administração Pública dos trabalhadores com formação superior e com mais elevada qualificação são inferiores aos do sector privado em -25,7%. E isto segundo o próprio estudo do Banco de Portugal, que é um estudo que, por um lado, não é transparente (desconhece-se os critérios como foram valorizadas as grandes diferenças existentes entre o sector público e o sector privado, nomeadamente escolaridade, qualificações, experiência) e, por outro lado, não são consideradas várias variáveis importantes que diferenciam os dois sectores (a não correspondência das categorias profissionais, nomeadamente em relação ao ano de 2005 em que não existem dados disponíveis como refere o estudo do Banco de Portugal).

Existe um outro aspecto importante que foi também silenciado pelos órgãos de comunicação social nacionais. Durante muitos anos, a Administração Pública era o principal empregador de novos licenciados. Com o actual governo, a Administração Politica deixou de ser uma entidade criadora de emprego e passou a ser uma entidade que destrói emprego. Como consequência, o número de jovens de licenciados no desemprego aumentou significativamente, o que determinou que o sector privado aproveite esse “excesso” de licenciados para baixar os salários pagos. Fala-se agora já de uma “geração de jovens licenciados de 500/600 euros por mês” (alguns até não ganham nada durante 4 a 6 meses em estágios fictícios) O próprio estudo do Banco de Portugal reconhece que devido ao “abrandamento do recrutamento por parte do sector público, as empresas passaram a ter de concorrer menos por estes trabalhadores e são susceptíveis de ter baixado o salário de entrada.” (pág. 74) Mais uma consequência negativa para os jovens licenciados da politica deste governo.

A desigualdade salarial entre o sector público e o sector privado, com os trabalhadores da Administração Pública fortemente penalizados, aumentou ainda mais no período 2005/2008, ou seja, com Sócrates, devido aos salários nominais no sector privado terem aumentado em 13,6% (3,9% em 2005; 2,7% em 2006; 3,4% em 2007; e 3% em 2008) segundo o Relatório do Banco de Portugal de 2008, enquanto no sector público os vencimentos subiram apenas 7,5% (2,2%, em 2005; 1,5% em 2006 e em 2007; e 2,1% em 2008) de acordo com Portarias deste governo.

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