À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

10/11/2011

Quando o sistema espirra

Ana Sousa Dias

Shimura nunca é acusador ao falar da "mulher instalada em minha casa". Porque não há ninguém que entenda melhor o efeito da Crise na vida dela do que quem ouve falar dasreduções de pessoal no emprego.
Uma mulher desempregada viveu durante um ano na casa de um homem que não conhecia. Quando ele estava, ela escondia-se num armário, onde dormia. Mal ele saía para trabalhar, ela aventurava-se pelo interior e até pelo exterior, para arranjar comida no lixo de um restaurante. Se o tempo estava mau, arriscava tirar do frigorífico um iogurte ou uns goles de sumo. Inquieto com as pequenas alterações no seu pequeno mundo, o dono da casa, meteorologista metódico, instalou uma webcam na cozinha e descobriu a inesperada hóspede.
Esta é uma história verdadeira, passada em 2008 na cidade japonesa de Nagasáqui, e foi noticiada então na Imprensa. Um jornalista da agência Reuters construiu a partir do episódio um belíssimo romance, premiado pela Academia Francesa. Em pano de fundo, numa rede feita de subtilezas, está a Crise, assim mesmo, com maiúscula, a tal que nasceu da ganância e da irresponsabilidade dos senhores da finança e caiu sobre os mais desprotegidos como se estes tivessem alguma culpa. Enfim, coisas que deste lado do mundo, tal como no Japão, estão bem quentes.
A propósito, ainda ontem Manuel Carvalho da Silva e João Proença entregaram o pré-aviso de greve geral para o dia 24. Adiante. "Nagasáqui", o livro de Éric Faye, foi agora publicado em Portugal pela Gradiva e tem menos de 100 páginas, não é sequer preciso ter uma longa insónia para saboreá-lo.
Quando presta declarações em tribunal, Shimura nunca é acusador ao falar da "mulher instalada em minha casa". Porque não há ninguém que entenda melhor o efeito da Crise na vida dela do que alguém em cujo emprego começam a ser anunciadas reduções de pessoal : "É caso para pensar que há menos fenómenos climáticos ou que os mares vão fechar", reflecte o meteorologista.
Talvez também por cá estejam a reduzir-se os fenómenos do clima e, já agora, da educação, da saúde, dos transportes, e por aí fora, uma vez que as reduções de pessoal andam nos jornais todos os dias. O clima anda estranho.
A mulher instalada na casa de Shimura começou por perder o emprego, depois foi despejada de casa, dormiu onde calhou até que descobriu ali um porto de abrigo. Clandestino e exíguo, mas quente.
Homem e mulher não chegaram a conhecer um do outro mais do que pequenos sinais. E no entanto ambos sofrem a insónia da preocupação pelo outro, uma preocupação profunda, não quero encontrar outra palavra, uma preocupação feita de humanidade. Eles são os protagonistas da história e a Crise é simplesmente o sistema que espirra e nós "voltamos a ficar trémulos e obtusos, muito pequenos".

http://www.jn.pt/Opiniao/default.aspx?content_id=2112714&opiniao=Ana%20Sousa%20Dias

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