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31/10/2011

Elogios envenenados

Carvalho da Silva

A declaração final apresentada na madrugada da passada quinta-feira, como desfecho da Cimeira de Chefes de Estado e de Governo Europeus, refere-se à situação do nosso país expressando que "Portugal está a fazer progressos positivos no seu programa e está determinado em continuar a levar a cabo medidas que suportem a sustentabilidade orçamental e melhorar a competitividade". No mesmo texto, Portugal é "convidado" a "estar disposto a tomar quaisquer medidas necessárias" para atingir as metas que estão traçadas.
O que significam estes elogio e incentivo?
Esta interrogação pode e deve ser complementada com três outros questionamentos: i) Nesta cimeira, foram delineadas bases sólidas para as políticas da União Europeia (UE) que possam favorecer, objectivamente, Portugal? ii) Os portugueses estão a constatar alguma melhoria da sua vida com os resultados das políticas que vêm sendo aplicadas? iii) O Orçamento do Estado para 2012, em discussão na Assembleia da República, projecta-nos perspectivas de ultrapassagem da crise social, económica (e política) que Portugal vem registando?
As soluções estruturais para os problemas com que a UE se depara continuam por encontrar. Vão-se arrastando no tempo ao sabor de tacticismo políticos inerentes ao objectivo de manutenção no poder que a Sr.ª Merckel e companhia prosseguem, enquanto financeiros sem escrúpulos, especuladores e agiotas aproveitam para fazer pressões e obter ganhos.
A EU continua a tratar do problema - a sua "crise sistémica" - como se ele fosse meramente financeiro, quando são mais que evidentes as suas dimensões económicas e profundamente políticas.
No plano político era preciso a adopção de uma estratégia progressista e universalista, afirmando o projecto europeu com valores solidários respeitadores das culturas e identidades dos povos, povos esses que deviam ser chamados a uma participação responsável e responsabilizadora, em vez de serem submetidos a amputações de soberania e ao enfraquecimento da democracia.
Numa perspectiva de resolução dos problemas económicos era necessário começar por recentrar o papel do Banco Central Europeu, colocando-o ao serviço do crescimento económico, do emprego e da criação de condições para os países em dificuldades poderem reestruturar as suas dívidas.
Ora, como estas políticas não serão adoptadas, torna-se impossível esperar que venham dali resultados positivos para Portugal.
O povo português está debaixo de um ciclo de austeridade, de recessão económica e deterioração orçamental que não sabemos até onde se prolongará e quais os seus impactos totais. Mas, não podemos aceitar isto como inevitável.
Quando se analisa a proposta de Orçamento do Estado para 2012, o quadro é bem sombrio. A crise económica será bem mais grave que nas crises de 1978 e 1983 e existem algumas previsões macro que surgem manipuladas, para justificarem novos pacotes de medidas de austeridade daqui a alguns meses.
Os elogios envenenados (para o povo português) feitos pela UE pretendem, exactamente, apoiar o Governo na execução de políticas injustas de empobrecimento e de desemprego, ao mesmo tempo que já vão apontando o caminho do aumento das doses dessa austeridade sem sentido.
Como é possível que da última reunião do Conselho de Estado saia um comunicado onde, debaixo de uma pretensa interpretação do "interesse nacional" se plasme, como verdadeiro, que no "Programa de Assistência" da troika estão compromissos que permitirão conjugada e simultaneamente "sanear as finanças públicas", "o pagamento das dívidas" e "reformar estrutura da economia, para que esta possa crescer com solidez, criar emprego e reduzir a dependência externa"?
Não somos cegos! Não precisamos de mais e mais empobrecimento!
Precisamos, sim, de começar a discutir a sério a travagem do descalabro, de análises de verdade, situando os portugueses nas realidades com que estão confrontados e é urgente definir políticas e responsabilidades para novos caminhos. De forma alguma podemos ignorar ou secundarizar o que se passa na UE, mas chega de atentismos sem sentido.

http://www.jn.pt/Opiniao/default.aspx?opiniao=Carvalho%20da%20Silva

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